quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

TUDO FOI SOMENTE UM SONHO




TUDO FOI SOMENTE UM SONHO*
                     João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

O Curiango era um menino levado da breca. Não se mexia que não fosse para fazer uma diabrura. No entanto, diante dos pais era um santo. Fala macia, comportamento exemplar, só para dar o entender que tudo quanto viessem contar a seu respeito era pura maldade.
- Não, meu filho, não senhor! Se há menino correto, sem defeitos, é esse meu filho, o Curiango. Dos outros não digo nada, pois são mesmo uns peraltas. A senhora, dona Cristina, é porque não conhece o Curiango. Não nos dá o menor trabalho. Até se pensa que é um menino doente.
- Pois olhe, minha filha não mente e me contou que ele levantou a saia dela e fez gestos obscenos. Se o senhor, seu Aluisio, não quer acreditar, isto é outra coisa. E não foi a primeira vez. O que ele deve ser é um grandíssimo sonso. Ponha o bicho debaixo do castigo que ele confessa tudo. E o pior é que nesse momento a menina estava desprevenida, sem aquela roupinha íntima. Um bom safadinho é o que ele é!
- Vem cá, Curiango. É verdade o que dona Cristina esta nos dizendo?
- Nem sei o que é, mas juro que não fiz nada de mal.
- Não acreditamos, mas vê lá se não estás mentindo. Diz ela que andas levantando a saia da filha, já uma mocinha e espiando.
- Deus me livre. Que coisa feia essa dona está dizendo. Deve ter sido outro. Vôte! Levantar a saia pra ver o que? Nem sei o que ela tem debaixo da saia. Ora que coisa, que história má contada.
- Aliás, não foi só de minha filha, já tem feito isto com outras e com a cara mais lisa deste mundo. O senhor não toma providencias, não é? Pois da primeira vez que ele repetir essa cretinice eu o pegarei. E será pior. Deixa-te estar, cabritinho safado.
- Está se vendo mesmo que a senhora não conhece o Curiango. Ninguém tem um filho tão inocente como este.
Dona Cristina saiu furiosa, resmungando e da porta de saída levantou a voz:
- Tal pai tal filho. Devem ser iguais. Vamos pra frente!
Curiango ficou na moita. Deixou correr os dias, esmerando-se em boa conduta. Uma semana depois entrou em casa com uma flecha e dona Cristina atrás, sem afinal o ter alcançado.
- Se te pego eu te mato, moleque ordinário.
A mãe apressou-se em ver o que era. Dona Cristina estava em chispas.
- O que foi agora, dona Cristina?
- O que foi? Pegou nos peitos da menina e tentou beijá-la. Este moleque é um perdido.
- Como é Curiango, fizestes isto?
- Eu???... Quero cair morto se fiz uma coisa dessas. Pra que eu iria pegar nos peitos de ninguém. Tem jeito uma coisa dessas. É mentira da Iris. Até parece que ela anda atrás de quem pegue mesmo nos peitos e levante-lhe a saia. Só pode ser. Vamos rezar o credo, mãe, para afugentar os maus espíritos que me perseguem.
Curiango dava o bote e escondia as unhas, mas continuava o santinho da família. Puro, purinho...
A filha Iris de dona Cristina era louquinha por Curiango. Fazia tudo àquilo para chamar a atenção. Já uma mocinha e Curiango um rapazinho cheio das granas era um ótimo partido para ela.
- Agora não tem mais jeito, dizia a mãe da Iris, à dona Arminda. A coisa está chegando ao extremo. O seu amorzinho Curiango convidou a menina para coisas indecorosas. Se a senhora não tomar providências drásticas, apelarei para a polícia.
- O que foi, afinal, o que fez o meu inocente Curiango. Deve estar acontecendo qualquer coisa de errado. Sua boa e pura menina deve é estar confundindo com outra pessoa, algum desparafusado.
- Nada e nada disso. É ele mesmo. Quem não conhece a belezinha de seu adorado filhinho. Convidou a Iris para fazer indecência, dizendo, inclusive, que depois se casariam. Já pensou a que limite está chegando o porco do seu filho. E note-se, ainda não contei ao meu marido. Se ele sonhar irá estrangulá-lo. Seu filho é um demônio.
- Vem cá, Curiango. Andastes fazendo propostas indecorosas à filha de dona Cristina? É verdade ou estás sendo mais uma vez caluniado?
- Nada disso, mãe. Deus que me está ouvindo e a senhora que tão bem me conhecem, sabem perfeitamente que não faria uma coisa dessas.
- Fala a verdade, pois já não agüento mais tanta reclamação. Será que estais enganando a mim e a teu pai?
- Querem mesmo saber a verdade, pois lá vai ela. A filha de dona Cristina é quem me vem tentando. Todas as vezes que me encontra. Foi ela mesma quem levantou a saia para mostrar as pernas, foi ela quem mandou que eu alisasse os peitinhos dela, foi ela quem me convidou para fazer porcaria, e eu, envergonhado, corri de perto. Ando fugindo dela e ela me perseguindo, já ia até pedir a papai para me transferir para outra escola. Quando a vejo, procuro desaparecer. A mocinha é endiabrada, louca, louquinha. Nem sei onde aprendeu tanta baboseira. Deve ter aprendido coma mãe.
- Cachorro, peste, moleque descarado, não tens uma gota de vergonha na sua cara? Cínico!
Dona Arminda, exclamou então!
- Está vendo a senhora, como são as coisas. É sua amada e pura filhinha quem está seduzindo meu filho e ainda se atreve a vir se queixar.
            - Vem cá dona Arminda, não quero mais saber de nada. Apenas quero que me diga como foi que conseguiu criar um canalha dessa ordem. Minha filha é uma menina honesta, recatada, limpa de corpo e alma. Este seu sujeitinho é quem não vale bulufas. E muita má sorte uma mãe ter um traste deste e ainda alardear que tem uma jóia em casa. Por favor, não diga mais isto a ninguém. Fique calada, quando falarem nesse pulha
E dona Cristina saiu vendendo azeite às camadas.
- Está vendo ai Curianguinho, como aquela megera te trata?
- Pois é, mãe. Aquilo é uma doida varrida. Não sabe nem a filha que tem. Deve estar seguindo o exemplo dela.
A coisa serenou durante alguns meses. Estava tudo na melhor paz, uma maior tranqüilidade, até que dona Cristina chegou desarvorada, com as mãos na cabeça em casa de dona Arminda.
- Vai me dar conta de minha filha. Desapareceu e só pode ter sido arte do seu menino Curiango. Meu marido anda atrás dela e até agora nem sinal.
- Eu é que lhe pergunto para onde sua belezinha levou o meu filho, um modelo de gente.
- Ah! Então o safadório também desapareceu, não é? Vem agora mesmo ao delegado. Minha filha é menor de idade e foi desviado pelo sacatrapo de seu filho, o santinho da dona Arminda.
Na semana seguinte, o delegado localizou os dois. Estavam num hotel da cidade vizinha, calma e tranqüilamente.
- Vocês são dois menores e ficarão sob a guarda da justiça, não poderão sair daqui.
- E o que é que vão fazer com a gente. Somos dois menores, mas já completando a maioridade. Não fizemos nada de mais. Apenas queremos apressar nosso casamento e isto dependerá apenas de licença de nossos pais. Além disso, já estamos quase de volta para casa. Não se preocupe seu delegado.
A mãe de Iris correu lá com a intenção de salvar a filha que o miserável do Curiango havia desviado. Menina inocente e pura, um exemplo de fidelidade, arrastada por um depravado que os pais fecharam os olhos a tudo e ainda o chamavam de modelar. Bandido desde o dia em que nasceu. Desta feita ele iria se haver com a policia e com o seu marido. Dona Cristina entrou hotel adentro como uma fúria. Perguntou pela filha, Iris, uma menina criada com o maior zelo e que fora iludida por um cafajeste.
- Como é o nome da senhora?
- Cristina, sim senhora, Cristina!
- Muito bem. Os dois estão no quarto e temos instrução para não perturbá-los. Só saem do quarto para o banho e para comer. Vê-se que é um casal que se adora. Nunca vi tanto amor. Volte depois, lá para uma hora da tarde.
- Nada disso, dona. A menina é minha filha e quero vê-la e levá-la agora mesmo.
- Não pode. Temos ordem de não interrompê-los. São uns hospedes maravilhosos.
- Qual é o quarto deles? Eu mesma irei chamá-la.
- Já lhe disse que não querem ser perturbados. Deixe os meninos se divertirem. Além disso, não queremos perder dois hospedes tão bons e pontuais.
- Já disse à senhora, que a menina é minha filha.
- Então não vá incomodá-la.
- Ou vai chamá-la ou irei recorrer a policia. Era só o que me faltava.
Afinal Iris apareceu, e na mais perfeita calma.
- Oh! Que bom. Veio nos visitar, mamãe. Como vai o papai e os manos? Nós aqui vamos otimamente. O Curiango é um amor.
- Estou te desconhecendo, Iris. Como mudastes tanto! Será que estou vendo mesmo minha filha.
- Ela mesma dona Cristina. É a sua filhinha em carne e osso.
- Como é que te deixastes levar por aquele miserável, menina. Por que não te aconselhastes comigo. Uma inocente como eras ser assim iludida por aquele maldito Curiango!
- Engano da senhora, mamãe. Ele nem queria assim. Eu é que o convenci. Andava louca pelo bichinho e peguei-o pela abertura. Nestes poucos dias chegaremos por lá. Curiango e eu somos as duas criaturas mais felizes deste Brasil. Nem imagina a senhora como gosta de mim e eu dele. Por favor, não interrompa nossa lua de mel. Quer falar com ele?
- Nem vê-lo!
- Mas a culpada fui eu.
- E aquelas histórias que me contavas?
- Era só para causar sensação. Tudo combinado por nos dois. Eram os preparativos. A coisa foi indo, indo, até que chegou ao que queríamos.
- E o que pretendem fazer?
- Já fizemos...
- Onde vão morar, sinha doidinha.
- Ou lá em casa ou na casa dele. Tanto faz. Tendo um quarto e comida, o resto é com a gente...
- Mas minha filha, como é que se muda assim. Pensava que era uma santinha, discuti com a mãe do Curiango e me fazes semelhante coisa.
- É o destino, mãe. O destino e o amor. Era doidinha pelo Curiango. Comecei achar o nome curioso e bonito, a coisa foi esquentando, esquentando, esquentando, nele e em mim, pegou fogo...
- Quero ver a cara do Curiango, esse demônio. Sei que não foste tu. Uma coisa dessa só pode ter partido dele. E agora tomas para ti mesma, a diabrura que fizeram.
- Um só não podia fazer nada. Tinha que ser os dois. Mas fui eu quem o assanhou. Mostrei-lhe isso, mostrei-lhe aquilo e findamos bagunçando o coreto. Mostrei-lhe um pedaço das pernas, ele alisou os meus jambinhos verdes do Pará. A gente achou graça e findamos fazendo uma aposta.
- Que aposta, desmiolada!
- Ver quem tirava a roupa toda mais depressa.
- E quem foi que vitoriou, isto é, ganhou a aposta de pouca vergonha?
- Empatamos. E daí por diante começou a vida nova. Bem, agora nos conhecemos bem, somos íntimos, matamos a gulodice e poderemos voltar a casa sem mais dar-lhes qualquer desgosto. E papai, como está. Violento, triste, preocupado? É possível e a única culpada sou eu, amargurada, mãe, arrependida, aniquilada. Tudo quanto eu imaginava, tudo quanto eu sentia e esperava da vida, diluiu-se, acabou-se, sumiu como uma rajada de vento que desfolha uma rosa e deixa apenas os espinhos. Tudo, tudo, era ilusão, sonhos passageiros. Apagou-se mesmo tudo, tudo. Sou uma menina desiludida, sem sonhos, sem desejos, como uma folha seca, sem cor, sem perfume, sem vida que o vento leva; ninguém sabe para onde...


*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



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