segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O RACHÃO DA PAREDE



O RACHÃO DA PAREDE*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Ninguém poderia ser mais diligente e pontual do que Zé Amaro. Acordava com os canários, bebia seu café e ia direto para suas ocupações, dos quais retirava o sustento seu e da mulher. Não andava atrás de luxo, mas não queria que lhe faltasse para o trivial. Viviam os dois sozinhos para sua casa sem qualquer preocupação com a vida dos outros. Ajudar, sim, ajudava quando podiam e sem esperar que lhes viessem pedir. E apesar de pobres, mereciam a consideração e o respeito de seus circunstantes.
Mas, um dia Zé Amaro sumiu. Sumiu e uma vivalma sequer foi saber notícias dele. Curtiu momentos difíceis, mas se aguentou com os seus minguados recursos.
            O reumatismo endurecera-lhe um joelho impossibilitando seus movimentos para o trabalho. Era somente o que lhe faltava. Não adiantara ter sido bom até então. Que explicação lhe daria para justificar tamanho infortúnio. Se fosse um homem mau, haveriam de dizer que era castigo e que os maus por si só se destroem. Mas no seu caso, não haveria cabimento. Mesmo assim Zé Amaro não desesperava. Em todo caso falou com o padre da freguesia e ele lhe disse que o sofrimento era o caminho do céu, os desígnios de Deus. Já um espírita, seu conhecido sentenciou que estava pagando coisas de encarnações anteriores. Era ter paciência até purificar-se.
            - Purificar-me de que e para que. Quem vai me sustentar, e a minha mulher. Não creio nessas histórias. Isto é conversa para boi dormir. Já sei o que vou fazer. Vou ao médico. E o médico lhe deu uma receita. O tratamento dependeria de despesas, de dinheiro e era o que ele não tinha. Sentiu-se só e abandonado. Mas não iria entregar-se assim à toa. Procurou um curandeiro e prometeu-lhe a única cabrinha que possuía.
            - Não há de ser nada. Umas duas boas garrafadas vão amolecer-lhe as juntas. O que cura essas coisas é raiz de pau. O mais é besteira. Padre não entende de nada. Só sabe rezar e isto mesmo, às vezes nem entende o que reza. E nem acredita. Doutor sem dinheiro à frente, não funciona. E espiritismo, nem se fala. Só serve para amolecer o espírito do sujeito. Aliás, para acreditar nessas bobagens já é necessário ter o juízo fraco. Vou preparar-lhe a meizinha e verá o resultado. Não esmoreça nem se impressione. Volte amanhã.
            - Mas, até me curar, como iremos viver eu e a mulher?
            - Venda a cabra e vá se arremediando.
            - E como lhe pagarei?
            - Quando estiver curado e se quiser pagar. O que vale é a sua cura, poder andar como antes e trabalhar.
            A cura não foi fácil. A doença era braba. Depois das duas garrafadas, o joelho de Zé Amaro começou amolecer e veio a terceira já mais branda.
            - É, como lhe dizia Zé Amaro, esses remédios de farmácia custam caro e não valem o que dizem. As ervas do mato, sim, quando se espalham pelo corpo as doenças se diluem e caem fora.
            Zé Amaro ficou bom e ainda tomou a quarta garrafada para consolidar. E comentava: - Tivesse eu esperado por receita de padre, doutor e espiritismo de garrafa d’água, para ver se não estaria aleijado para o resto da vida.
Voltou ao seu trabalho normal e fazia questão de se exibir para mostrar que estava recuperado. Encontrou-se com o padre e não tocou na questão. Mas, padre Boaventura aproveitou o ensejo para falar do milagre.
- Está vendo aí, seu Zé Amaro, está completamente curado. A fé, meu filho, a fé em Deus. Deus quando tarda já vem no caminho.
- Nada disso não, seu vigário. Foram as garrafadas de seu Ambrósio. Se eu tivesse esperado pelo milagre estaria por ai entrevado e roendo as unhas. Ninguém apareceu lá em casa, nem para nos levar um punhado de farinha. O mundo é assim mesmo. Só se existe quando se pode ser útil a alguém. Fora disso, o diabo pode ir levando de um em um.
- Mas foi Deus que lhe inspirou a procurar o mestre Ambrósio.
- Quem me inspirou foi a minha própria infelicidade e medo da fome. Havia de recorrer a tudo. Se fosse como o senhor diz, antes de ir ao curandeiro, não teria ido ao doutor, nem ao espírita, nem ao senhor mesmo. Mas não precisa se preocupar comigo não. Já estou bem e tenho forças para cuidar de minha vida e de minha mulher. Quando vendi minha cabrinha de leite, para comprar farinha para comer, minha mulher chegou a chorar e ninguém viu nada disso. Somente seu Ambrósio ia nos ver. Mas irei readquirir a cabra e guardar vintém por vintém para as eventualidades.
No entanto o major Bonaparte rico e politiqueiro tinha a casa cheia de gente, dia e noite. Mesmo assim, nem remédio, nem reza o salvou. E eu me salvei só, com os remédios de seu Ambrósio. E agora aprendi a viver. Ninguém suga mais o meu trabalho. Nem um recado levo mais de graça.
Quando não se pode mais servir, os urubus que lhe arranquem o fígado. Não se perde nada. Pobre é a água que lavou bexiguento. Não serve mais para nada. Ninguém vai nos pegar mais sem dinheiro para as emergências. O grande amigo dos pobres, e que, aliás, só trás uma coisa ruim, isto é, os falsos amigos, amigos dos tempos da bonança. Na miséria somem-se tudo, emburaca tudo. Uma cachorrada gafeirenta!
É bem certo que a dor é quem ensina a gemer. Faria o impossível para o mestre Ambrósio. Para os demais, dinheiro à vista e nem para todos. Alguns havia, que nem a dinheiro serviria.  Quando estava com o joelho emperrado, sentado ou espichado na rede, sem ter com que matar a fome, ninguém lhe aparecera. Que fosse tudo para a casa do diabo.
- Vai, menino, diz a seu Zé Amaro que me venha tirar uma goteira.
- Sim, já vou.
- Quanto me paga?
- O senhor nunca cobrou essas besteiras.
- É verdade, mas o reumatismo me ensinou a cobrar.
- E quanto é?
- Cinco mil reis.
- Isto tudo?
- E ainda é de graça. Chame outro.
- Mas seu Zé Amaro, sou um homem pobre.
- E eu também. Suba lá homem. Tirar uma goteira qualquer um tira.
- Mas posso cair.
- E eu também.
- Então suba, mas não facilite.
- Olhe, são duas goteiras e vai lhe custar mais três mil reis. Oito ao todo. E não faço por menos. Como é paga ou deixo uma?
- O senhor não era assim.
- É, mas fiquei. Depois que o reumatismo me pegou e ninguém foi me socorrer. Meu amigo hoje, é o meu dinheiro. Dinheiro que abre portas, janelas e consciências. Se eu cair do telhado, ficarei só novamente. Mas, como é tiro ou não a segunda goteira?
- Tire homem, tire... Mas será a última vez. Muito caro.
- E deste preço só esta vez. Das outras haverá aumento. Sei lá de que tamanho o reumatismo pode vir.
Com os oito no bolso, Zé Amaro deu um até breve e se foi.
- Explorador. Cobrar oito mil por duas goteirinhas à toa.
Quando chegou a casa já havia outro chamado. Conserto numa parede trincada na dependência da casa paroquial.
- Pronto, seu vigário.
- Serviçinho de nada.
- Onde é?
- Lá na dependência, (e mostrou o que era) é rápido.
Zé Amaro cortou reboco, preparou caliça, abriu parede para amarração, fechou tudo, rebocou e quando desceu, apresentou o serviço.
- Está bom seu vigário?
- Está. Só mandei lhe chamar por que já conhecia o seu trabalho. Fica seguro e garantido. E agora, quanto lhe devo?
- Apenas dezoito mil reis.
- Quan... Quanto!!!
- Somente dezoito, porque é para o reverendo.
- Que doidice é esta, Zé Amaro. Estás doido?
- Não, seu vigário. Estive. Antes do reumatismo. Agora estou lúcido.
- Não pode.
- Pode e não tiro um tostão. Quanto o senhor cobra por um batizado, um casamento ou uma missa de defunto, sem cansar, sem suar, sem gastar material?
- Ah! Isto é outra coisa. Passei doze anos no Seminário queimando as pestanas.
- É, e eu passei dois meses e meio entrevado, passando miséria e sofrendo. Ninguém foi lá me ver...
- Pago não.
- Não paga! Só sairei daqui com o dinheiro contado.
E sentou-se no batente da porta.
- Dizem que padre quer tudo de graça, mas comigo não. Espiche os cobres para cá. Do contrário cobrarei o tempo perdido.
O padre viu que não tinha jeito e pagou.
- Muito bem, reverendo. Quando precisar estarei às ordens.
- Nunca mais. Só sou furtado uma vez.
- Furtar é cobrar oito mil reis por um batizado, com quatro palavrinhas e água de cacimba benta. Mas aproveite que a maré vai passar. E não faça propaganda senão eu conto o seu paleio com a arrumadeira. Pensa que não percebi seu gaiato. E, além disso, a bichinha está fazendo barriga. Até logo, para não continuar falando dos seus segredos.
- Vem cá, Zé amaro. Toma mais estes cinco. Na verdade o serviço foi barato. Arriscado até a cair da escada.
- Quero, não. O que eu sei vale muito mais. Onde já se viu um segredo por cinco mil reis. Não vou falar nada não. Basta que continue meu amigo, guarde sempre um serviçinho pra mim e pague o que eu cobrar.
- Brevemente irei fazer a pintura da igreja e já está convidado.
- Então, faça festa e junte dinheiro...
Zé Amaro deu no pé gozando o medo do padre. Na realidade não havia notado nada. Botara uma verde, colheu madura. Como era fácil descobrir as coisas...
- Vai-te safadório. Além de furtar, ainda me deixa preso. Mas, como, se não fiz nada para se ver. O bicho botou um laço e eu caí na esparrela. Descarado. Bem que o reumatismo podia o ter deixado entrevado para o resto da vida. Caí feito um patinho. E a saída, agora, é fazer como ele quer. Quando se anda errado é assim. Basta ser apanhado de surpresa para dar com os burros n’água. E aquele espertalhão e manhoso, pegou-me de boca aberta, como um paspalhão. E será capas de bater com a língua nos dentes. Filho de uma gata. Mas, é quando as coisas têm que acontecer. A merda daquela parede estava rachada há tanto tempo e fui me lembrar de consertá-la. Irá me tirar o couro na pintura da igreja. O mais certo é arranjar uma transferência. Ir para outra paróquia, levando minha arrumadeira.
E pleiteou e conseguiu. Preparou as malas em silencio para sair de surpresa. Chamou Deolinda e participou-lhe a viagem.
- É uma pena seu padre, mas não irei com o senhor.
- Não pode ser menina.
- Pode. E não tem outro jeito. O senhor sabe que seu Zé Amaro enviuvou, não sabe?
- Sei, por quê?
- Vou viver com ele. Está tudo certo.
- Certo, como?
- Não quero mais ser mulher de padre.
- Ah! Bandido. Foi o rachão da parede mais caro que já vi. Miserável... Muda de idéia, Deolinda.
- Não tem mais jeito. Já estou buchuda dele.
- Como pode ser, menina?
- Padre. Foi no dia do conserto da parede. Quando pensei que não, já não havia mais jeito. Pensei que o senhor não iria se importar.
- Então, some-te de minha vista. Mas antes disso, vem cá para uma despedida.
- Não, que seu Zé Amaro me proibiu. E me disse que se eu o traísse iria contar tudo às fofoqueiras da cidade. E todo mundo, lá fora, pensa que eu sou uma moça.
- Mas quem irá saber?
- Minha consciência. Ficaria com remorso. Pague-me o que me deve que quero ir. Mas não será aquele dinheirinho do mês, não. Bote dinheiro para fora.
- Também queres me explorar!
- Não senhor. Foi seu Zé Amaro que me ensinou. Ele falou que contaria tudo se não me gratificasse bem.
- Puxa diabo! Nunca se pagou uma rachadura de parede tão cara!...

Em 9.9.1986
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.






           


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