terça-feira, 10 de julho de 2012

PEITICA


PEITICA*
João Henriques da Silva
 (In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

Uma paixão roxa, é uma paixão aguda, desesperada e às vezes suicida.
O sujeito fica transtornado, endiabrado, cego. Peitica estava assim. Não podia ver alguém conversando ou mesmo perto de Alcir, uma moreninha de olhos esverdeados, cabelos curtos, boca pequena e corada como um botão de rosa que se prepara para sorrir. Peitica não tinha mais tranquilidade. Perdera o apetite, dormia pouco e se esquecia até de satisfazer suas necessidades primárias. Mas isto tudo não era nada.
O pior é que Alcir nem sabia que Peitica existia ou pensava nele. Menina pobre, sem vaidade nem se atrevia a olhar para ele, metido a rico. Peitica – José Sarmento – não tinha coragem de confessar sua paixão. Acreditava que Alcir, pela sua vida modesta e humilde, iria pensar que ele queria era aproveitar-se dela.
Mas, não havia ouro jeito senão enfrentar a situação, fazer juramentos, gritar aos seus ouvidos que estava perdidamente apaixonado, que também havia sido pobre como Job e o que pretendia era fazê-la feliz. Poderia, aquela altura, escolher uma moça rica ou pelo menos de família elevada na sociedade local, mas o que desejava era voltar às suas raízes, lembrar-se de seus dias de pobreza e dar a alguém uma vida igual à dele naquele momento. Mas não seria só por isto, que a queria. Sua paixão não tinha limites e, fosse ela de que categoria fosse, era a ela que ele desejava e queria.
Alcir ficou comovida e espantada. Declarou-lhe que era uma coisa impossível. Estavam muito distantes um do outro. O que não iriam dizer dela e dele, se casasse.
Certamente achariam que ele não tinha juízo, estaria se agachando demais ou havia abusado da moça. De mim diriam, no mínimo, que armara uma cilada para apanhar o coelho e sendo ainda uma menor, forçaria o casamento.
- Nem quero saber do que iriam dizer. O que me interessa é casar e viver contigo, menina. O resto eu tenho. Independência, uma vida folgada, mas me falta uma companheira, só para mim.
- Então, fale com a mamãe. Ela é quem vai decidir. Mas tem uma coisa. Não vai bulir comigo antes do casamento. E bastará tentar para ficar tudo desfeito. Sou pobre, mas não me entregaria a ninguém sem estar tudo legalizado. Casar na igreja e no Juiz. Tenho uma amiga que casou só na Igreja, o marido aproveitou-se dela, deixou-lhe um filho e a abandonou. Não teve direito a nada, porque casamento de igreja é só conversa fiada. Só serve para mandar a gente pra cama.
- Então, vou mandar preparar-lhe o enxoval, depois de falar com tua mãe.
E no mesmo instante, foi à casa de Alcir e fez o pedido.
- Nem sei o que lhe dizer, senhor, senhor – José Sarmento -. Não entendo como o senhor quer se casar, com uma menina pobre como esta, só com o curso primário e desajeitada.
- Nada disso. Gosto de Alcir, assim como ela é. Simples, humilde e pobre. Ela me trará felicidade e eu lhe darei um pouco mais de conforto. A ela e à senhora. Adoro esta menina. Encontrei-a casualmente e senti que era a pessoa que me enchia o coração.
- Ou será que havia alguma coisa entre os dois. Alcir é uma menina e sempre foi uma menina direita. Não acredito que o senhor a tenha enganado.
- Olhe, D. Florisbela, se ela tivesse facilitado qualquer coisa, jamais me casaria com ela. Seria um mau começo, um indício de que era fácil de ser enganada.
Caso-me com Alcir, não somente porque gosto, mas pela sua conduta que venho observando há muito tempo, sem que ela pressentisse.
Casaram-se. Alcir era na verdade, uma mulher ideal. Sem ciúmes, confiante, e excelente dona de casa e companheira. Moça sem ambição e que era capaz de qualquer sacrifício para a harmonia do casal e prosperidade dos negócios do marido.
- Como vai, minha “nega”. Passou bem o dia. Eu passei com saudades, que só se vão quando chego para ti ver. Durante o trabalho, sinto-me como se estivesse a mil quilômetros de distancia. Quando se quer bem é assim. Se houvesse me casado com outra, possivelmente seria tudo muito diferente. Talvez, uma mulher exigente, ciumenta, sem esse carinho que recebo de ti quando chego a casa. Esta é a maior alegria de viver. Vivemos nesta simplicidade, amor para lá, amor para cá, como se vivêssemos flutuando num céu todo estrelado. O que quero é que não te falte nada e que dês à tua mãe conforto e carinho, pois quem gerou e criou uma filha igual a ti, merece um altar no coração da gente. Não esperes que ela te peça nada. Procura adivinhar-lhe os desejos e pensamentos.
Eu não tive a sorte de conhecer minha mãe, isto é, Deus a levou quando pouco sabia  eu que perdi a joia mais preciosa deste mundo. Criei-me, por isto, um menino triste, sem os doces carinhos de mãe. Quando me entendi de gente passeia a considerar que talvez fosse bem melhor não ter nascido ou viajado com ela.
Quando te falei em casamento e me dissestes, fala com minha mãe, que é ela quem decide, tomei-a naquele instante, como minha segunda mãe. E, assim está sendo. Como é belo, e agradável e confiante ter uma mãe.
Meu pai casou-e com outra que teve filhos e cuidava deles enquanto me desprezava. Todos os males feitos que apareciam era eu o culpado. Fugi de casa e nunca me arrependi. Sentia saudades de meu pai e tempos depois, já um rapaz, ia vê-lo. E foi ele quem me deu o primeiro dinheiro com que instalei um boteco. Parti daí, desse dinheiro abençoado. Voltei depois para restituir-lhe. E encontrei-o abatido e desiludido da vida. A mulher o havia abandonado, fugido com um malandro. Não aceitou e procurei encoraja-lo. Todos os meses mando-lhe um pouco do que tenho, embora tente recusar. Propriamente ele não precisa, mas a velhice vai chegando silenciosamente. E o que não me faz falta poderá fazer a ele.
Já o convidei para vir morar com a gente, mas o seu apego à sua propriedade, onde sempre viveu, impedi-o de sair. Aliás, a vida dele está ali naquele pedaço de chão, nas fruteiras que plantou, nos animais que cria, nos campos, nos pássaros que são seus vizinhos canoros. Quando estou lá, sempre me pergunta se ouvi os galos de campina e os azulões que cantam no amanhecer.
– Não posso, meu filho, separar-me deles. Está vendo aquelas mangueiras, aqueles coqueiros, o tamarindeiro, quem os plantou fui eu. Vi-os crescendo e hoje botando frutos. Isto tudo me mataria de saudades, se os abandonasse. E minha idade, já não faz as mesmas amizades e vem então, a solidão. Vivo hoje dessas coisas que para muitos talvez pareçam insignificantes e sem valor. Não me dão dinheiro para viver, mas me dão aquilo que dinheiro não dá. A alegria de viver. Ninguém pode imaginar a alegria que tenho quando os meus três outros filhos, trepam-se nas fruteiras, apanham pitombas, colhem mangas, goiabas ou qualquer coisa que veio do meu trabalho. Só lamento uma coisa, que é não terem uma boa mãe ao seu lado, sobretudo a Lia, uma menina que tanto sente a falta de uma mãe para lhe dar carinho e assistência.
- Pai, nem convém relembrar. Talvez fosse muito pior. Vê-se que não tinha amor aos filhos. Se tivesse estaria aqui ao lado deles. E o senhor livrou-se de uma pessoa que não poderia merecer sua confiança. E por que não arranja uma companheira.
- Não, nãoi! Não tive sorte. A primeira era uma santa e Deus a levou sem dó nem piedade. E somente tu e eu sabemos a falta que nos fez. Veio à segunda, expulsou-te de casa e findou abandonando os outros. Mais tarde, provavelmente, será também abandonada. Seja, agora, o que a providencia quiser. Só desejo uma coisa, que seja feliz por lá e nunca mais a veja. Sim, ser feliz, para não se lembrar de casa.
Por Deus como a estrangularia. De gente ruim a gente procura não pisar nem na sombra. Enganei-me quando a escolhi. Casei-me pensando em ti. Precisava de uma mãe, mas dei uma madrasta, e, das piores. Mas é como dizias, é melhor sem ela.
Peitica tomou a si todos os encargos da família. A vida deveria ser igual para todos. Era dever de um filho que possuía meios para dar-lhe o conforto, que não deveria ser apenas seu. Qualquer desigualdade seria constrangedora para quem não havia perdido o sentimento filial e fraterno.
Alcir desdobrava-se para acompanhar o marido em sua dedicação à família. Já estava preparada para ser mãe. O filhinho já se agitava dentro dela e mesmo antes de nascer sentia um desejo imenso de beija-lo. Ela própria não acreditava que um dia viesse a ser tão feliz.
Peitica por sua vez, achava que Deus havia lhe dado muito mais do que merecia. Lamentava somente não ter ao seu lado uma mãezinha querida como os outros. Às vezes vinha-lhe a ideia de não perdoar quem a levou, quem lhe deu uma madrasta e quem lhe fez um menino abandonado. Não podia acreditar nas coisas que o padre Moisés pregava. Ou tudo estava errado ou o destino havia sido cruel demais com ele. Criança ainda, não tinha pecado para ser tão castigado. Também não acreditava que estivesse pagando pelos erros dos outros. Seria injusto e cruel.
Anos e anos se foram. E um dia chamaram à sua porta. Nem tinha ideia de quem pudesse ser. Foi atender. Era uma criatura aniquilada. Envelhecida, macerada e andrajosa. Uma sombra disforme de gente. Não reconheceu.
- O que quer minha senhora?
A resposta foram duas lágrimas que se despencavam dos olhos, mais tristes do que qualquer tristeza.
- Sou eu, Peitica, tua madrasta, aquela mesma que te fez fugir de casa e que abandonou teu pai. Foi o destino que me deu tantos empurrões e me fez cometer tantos desatinos. Já paguei demais por tudo quanto fiz. Não quero, entretanto, que me perdoem, quero que me socorram, não me deixem mais passar fome, nem mendigar como me tem acontecido até hoje. Poderás não acreditar, mais tudo quanto aconteceu comigo não foi por minha própria vontade. Tinha dentro de mim, uma coisa que me comandava, me empurrava, em dominava e me atirava, para o mal. Sem domínio próprio, precipitei-me no abismo, como uma sonâmbula. Fugi e fui abandonada pouco tempo depois. Com as primeiras grandes provocações, acordei e já era tarde. De sofrimento em sofrimento, de desengano em desengano, cheguei a este estado de miséria total. Nunca tive sequer, coragem para morrer. Faze de mim o que quiseres, mas, mas não me deixes passar mais fome e sem ter onde dormir. As noites de escuro e frio, ao relento, me apavoram.
Pelo amor de Deus, não quero mais tanta miséria. Eu fiz o que não queria e nem deveria fazer. Foi uma força estranha que me empurrou. E não foi o diabo, pois mesmo sendo diabo não seria tão mau. Imagina que tinha ciúmes de ti só porque eras filho do meu marido com outra mulher que nem mais existia. Um absurdo. Mas não era eu, era um morcego que queria acabara comigo. E acabou. Chupou-me todo o sangue, devorou a alegria de viver e reduziu-me a este trapo que sou.
Nem tenho coragem de ver teu pai que era tudo para mim. Traído e humilhado jamais poderia perdoar-me. E tem ele toda razão. Nunca me deu um desgosto, nunca deixou de rir para mim e me acariciar. Amava e amou os meus filhos perdidamente e sei que não me desejam ver. Abandonei-os quando mais precisava de uma mãe.
Tive o castigo bem merecido. E, agora, minha confissão e meu segredo mais grave. Envenenei o homem que me enganou e também me traiu. Procurei vingar-me por teu pai e por mim própria. E não tenho remorso por isto. Mas tenho um sentimento profundo. Não poder ver meu marido e meus filhos. Devem ter ódio de mim. E é justo. Manda-me dar um prato de comida, um resto qualquer. Não mereço mais. Não mereço, mas perdoa-me, se poderes. Tenho fome de tudo. Fome também de carinho, de um pouco de amor, desejo de que alguém olhe para mim, não apenas por piedade, mas como uma criatura que já sofreu demais e não suporta mais sofrer. Vai, dar-me um pouco de comida e logo depois irei embora. Não quero mais afligir ninguém.
- Vai não senhora. Entre. Irá recomeçar a viver. Ninguém erra por gosto. Erra-se por tentação e não se sabe por conta de quem...                                                 
21/8/1986
*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



sábado, 7 de julho de 2012

PIPOCA


PIPOCA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Pipoca nasceu e viveu até os 17 anos no Agreste Paraibano. Como não se dava com o clima, mudou-se para a zona do Cariri. Ali o ambiente seco e saudável poderia trazer-lhe bem estar. E foi assim. Um ano e pouco depois Pipoca já não era o mesmo. O apelido veio-lhe de sua quase mania de comer pipoca. A mãe tinha que ter paciência e botava o caco no fogão para as pipocas de André. Habituara-se e por Pipoca ficou.
            A família – pais e manos – Continuou no Agreste, no que era seu. Pipoca fora-se para casa de parente que, embora afastado, o aceitou com prazer. A mudança de clima e de normas de vida deu-lhe novo ânimo, um novo vigor. Não teve dúvida de que todo o seu mal estar provinha do clima frio e úmido do Agreste. E que Deus o livrasse de retornar. Visitaria a família, mas por poucos dias. Benção pai, benção mãe, até logo mais e lá se ia de volta.
            A casa do primo era como se fosse sua. Na ausência do Chico, assumia tudo com o maior respeito. Merecia total confiança. E a coisa ia indo muito bem até que um dia o caldo começou a entornar. A mulherzinha do primo começou a por os olhos compridos, como um desafio. Bonitinha, sem filho, dava sempre um jeitinho para ficar sozinha com ele. Parecia-lhe arte do diabo.
            Pipoca estava vendo a hora o primo e amigo perceber ou surpreender qualquer movimento comprometedor da mulher. E ele sabia que mulher quando começa a se derreter para o lado de um homem, já tendo um, torna-se atrevida e imprudente, sendo capaz de cometer doidices do diabo. E mesmo o seu primo não merecia qualquer espécie de deslealdade ou traição. E o tempo ia passando no meio daqueles desafios.
             A Jaci continuava insistindo e apertando o cerco. Ora passava roçando nele, ora mostrava mais um pouquinho do corpo, ora abrindo-se num sorrisinho atrevido e convidativo. Até que um dia a coisa precipitou-se. Chico viajara por dois longos dias e Jaci deu graças à sua boa sorte.  Dessa feita não iria escapar-lhe.
            André estava já dormindo quando sentiu um balanço na rede. Teve medo de assombração, mas logo ouviu: - “Sou eu, a Jaci”.
            - Você está louca...
            - Não , estou desesperada. Não me abandone, pelo amor que tem a sua mãe. Não resisto mais. Será um segredo para nós dois.
            - Mas não posso fazer isso. Chico é meu primo e meu grande amigo. Tem toda confiança em mim.
            - Sei muito bem disso. Mas não poderei mais esperar. Findarei enlouquecendo. Não custa nada e vou te confessar. Chico não tem relações comigo há muito tempo. Não tem mais força para isso. Ele tem pena de mim, mas infelizmente aconteceu.
            - Mesmo assim, criatura, é uma deslealdade.
            - Pior seria se fosse com outra pessoa. Com nós dois ficará em família. Entenda-me, por favor. Estou me valendo de você, como um recurso extremo. Caso não me queira terei que abandonar a casa, o que irá me doer terrivelmente.
            E Jaci não teve mais dilema. Caiu nos braços de André. O dia seguinte amanheceu tranquilo, sereno e tudo mudado. Jaci procurava esconder-se dentro de si mesmo. André entrou com o leite e as vacas já batiam o chocalho a caminho do pasto.
Olharam-se os dois sem uma palavra, sem um gesto. Entretanto, por dentro havia tumulto. Ninguém vira o que acontecera à noite, mas era muito provável que houvesse ficado uma prova inevitável. Bastaria esperar três ou quatro meses, apenas. E Chico, qual seria o seu comportamento, do jeito que ele era. Nem seria bom pensar. Caso André caísse fora, estaria se denunciado, caso ficasse teria de ajustar contas com o marido traído, puxa, diabo...
            A situação dava mesmo para ficar mudo. Durante o café, voltou a fala dos dois.
            - E agora, dizia Andre com a voz assustada.
            - E depois é que é o perigo. Fui uma louca, não achas. Poderia não ter chegado a tanto, mas, o diabo acende fogo sem fósforo. Por que Chico deixou a gente sozinhos. Bem que podia ver que era um perigo. E você seu bobo, porque não trancou a porta do quarto? Certamente foi de propósito. Quem sabe. Caso houvesse fechado evitaria que eu me aproximasse. Agora, o jeito é descobrir uma saída. Chico sabe que está totalmente incapacitado a gerar filho.
            - Vamos, então, cair fora. Temos tempo para pensar. E tem uma coisa. Ficaremos nos encontrando. Você também foi um safadório. Poderia não ter querido. Sabe que a mulher é a parte fraca. Aproveitou-se dessa fraqueza e de minhas angustias.
            - E quem diabo pode resistir às tentações de uma mulher bonita, nova e atraente. Vocês mesmas, - as mulheres – zombariam daqueles que recusassem. E sabes de uma verdade, vamos tomar cuidado, pois o Chico está para chegar. Nosso comportamento deverá ser o mesmo de antes da tua doidice. Qualquer mudança poderá despertar atenção.
            - Pois é. Se Chico desconfiar estarás perdido.
            - Não uses perfumes, nem penteados diferentes. Chico deve ser ciumento e com razão – e ciúme tem faro como cachorro de caça. Não deixes de ser a mesma Jaci que ele conhece. Nada de suspiros e muitos menos de olhadelas furtiva para o meu lado. Faças de conta que não estás me vendo. No mais a culpa será somente tua. E também nada de enjoo, caso se confirme o que se espera.
            No dia seguinte, Chico entrou em casa. Jaci tomou um susto, como se ele a tivesse encontrado nua. Traição tem dessas safadezas. Supõe-se que as pessoas traídas estão percebendo tudo.
            Andre tinha a impressão que Chico já estava sabendo de tudo e já estava de faca de ponta na mão, afiada dos dois lados. E bem que merecia uma represália. Chico, seu bom amigo, prestativo, benfeitor, confiante a ponto de deixa-lo sozinho com a esposa, não merecia ser traído. Era bom mesmo que lhe rasgasse as tripas com duas ou três boas facadas. O que fizera deveria ser mesmo arte do demônio. Ou seria que o mundo é que estava errado, proibindo a satisfação de desejos naturais? De qualquer forma poderia e tinha a obrigação de evitar tão suja traição. Pois não era. Mulheres livres estão sobrando por aí afora. Por que aquela doidinha não procurara outro. E agora caia em si.
            - Tudo que acontece é permitido por deus e se foi ele quem guiou Jaci a procura-lo não tinha, pois de que se penitenciar. De qualquer forma, só merecia mesmo era uma bela facada nas tripas... Há! Mulherinha espritada... Agora era esperar por Chico durante aqueles três meses seguintes. A barriguinha da espertinha dona Jaci iria começar a crescer e denunciá-la da safadeza. E não era brincadeira aquela faca de 12 polegadas que Chico sempre trazia na cinta. Puxa diabo. E tremia diante do hábito do idiota andar afiado o diabo daquela peixeirinha já amola do pé à ponta...  Andre vivia de olho na barriga da dona Jaci. E tinha a impressão de que todo dia crescia umas polegadas. O estouro seria para qualquer semana. E as facadas também.
            E foi indo, indo, até que Chico começou a notar e desconfiar que estava acontecendo alguma anormalidade. Teve pena da Jacizinha. Deveria ser a tal da “barriga d’água”. Teria que leva-la com urgência ao doutor.
            Vendeu um garrote, sem comentário e preparou-se para ir à cidade consultar o Dr. Josafá, lembrado por um amigo.
            Andre desconfiou do movimento do Chico e foi se preparando também. Não era nem doido para esperar pela lâmina de doze polegadas, afiada como andava. O caminho mais curto era cair na lenha, fugir de uma vez. Desaparecer, encantar-se. Não atinava para que diabo comprava-se uma faca de doze polegadas e ainda se andava afiando daquele jeito. Só podia ser mesmo, gente mal intencionada. Puta que o pariu...
            Chico levou Jaci ao médico. Precisava salvar a bichinha de qualquer maneira.
            O doutor examinou, virou para um lado e para outro, confessou a santinha, ouviu a história toda completinha e receitou: ou contaria tudo ao Chico, ou caísse fora com o autor da brincadeira. Não iria dizer nada e passaria uma medicação à toa para hidropisia.
            Já estavam em casa com a medicação inútil quando Jaci tomou uma decisão. O Andre um refinado covarde havia desertado e aquela atitude causou-lhe ódio e nojo. Homem que não tem peito para proteger uma mulher que se dera como ela o fez, não merecia nada mais do que repulsa e ódio. Então iria ver como se trata um covarde. O prazer que tivera no momento de sua doidice, mudava-se em ódio e vergonha. Cabra safado. Era isso que valia o amor desesperado de uma mulher. Pois iria ver. Iria sugerir a Chico que lhe enfiasse as doze polegadas bem no pé das virilhas. Havia sido violentada e ameaçada de morte se fizesse qualquer revelação...
            - Ah!. Está pensando que vou engolir essa tua conversa. Não, minha santinha de pau oco. Sabes onde mora tua família, não sabes benzinho. Pois bem, cai fora agora mesmo. Cria asas se poderes. Não mais quero ver o teu vulto ou sentir o teu cheiro de mulher à toa. E nem me digas até logo. Some, some. O que me aconteceu, poderia dar motivo a uma separação e não a uma patifaria. E se ainda achares pouco vai envergonhar tua família de gente tão boa e que deve ser poupada. Vai e some para onde ela nem tenha noticias tuas. Não vales nada. E eu fui um infeliz.
            Jaci foi direta para casa dos pais. Contou tudo e pediu perdão. Perdoada arrumou-se em casa, tomou a direção dos trabalhos caseiros.
            Era uma boa filha. Sempre fora. Chico na intimidade sabia que a culpa de tudo havia sido a perda do que não poderia perder. Um acidente, um trauma eram os responsáveis. Coitadinha da Jaci. E perguntava de si para si. Como impedir as loucuras de uma paixão. O silencio das noites insones e a solidão, sempre foram bons conselheiros. Agora, sozinho, sabia muito bem o quanto se deve pensar antes de uma atitude. Ah! Como Jaci era tão boazinha! Adormeceu e sonhou com ela sorrindo para ele...
            No dia seguinte Chico acordou com o sol nascendo. Angustiado com o silencio da casa, Chico passou a considerar sua invalidez matrimonial. Era irreversível o trauma. Sentiu-se desamparado e responsável pelo que lhe acontecera. Pobre menina! Dias seguidos no meio daquela tormenta, ocorreu-lhe uma ideia. Tomar o caminho de um convento. Desfez-se de tudo que possuía, despediu-se da família e transpôs o portão do Convento Santo Antonio de Pádua.
            Oito anos lá dentro, esquecido do mundo social e econômico, celebrava a Santa Missa na igreja dos Perdões, quando viu alguém que reconhecera. Era nem mais nem menos do que Jaci. |O mesmo rosto tranquilo, os olhos os mesmos irradiando sonhos e vida. Não conseguira fugir, escondeu-se. Procurou-a.
            - É você Jaci?
            - Sim, eu mesma, sem pai, sem mãe, sozinha na mesma casa antiga onde nasci.
            - E o filho ou filha?
            - Filho. Um rapazinho viçoso e alegre.
            - E o pai?
            - Morreu num desastre. Fez bem Deveria ter ido antes. E você, Chico?
            - Come vê. Um religioso, coisa sem significação e sem qualquer sentido. Um grande erro de minha vida.
            - Pois estou só. Vai fazer-me companhia, vamos rezar juntos...
            - Não, Jaci. Recuperei-me. Um milagre. Não quero mais causar-te desapontamento.
            - Tolice, larga esse saiote marrom e vamos viver o que não pudemos antes. Não pude ser honesta contigo porque os desejos explodiram. Mas, no momento só pensava em você. Desmaie sonhando contigo.
            - Na próxima semana estarei contigo.
            - Estarei a te esperar como se fosse uma virgem...
           
*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

CARA DE PAU


CARA DE PAU*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Por onde se anda sempre se encontrará um sujeito boa-vida, descarado, que se mete na casa dos outros com a maior intimidade e, às vezes, até exigente e chato. Na cidade e no campo.
            Seu Jacinto era da cidade e sempre dizia que adorava a vida rural. Era nas fazendas e nos sítios que se sentia bem de saúde e do espírito. Não se cansava de repetir o seu bom gosto. E, por isto mesmo, desocupado, vivendo ás custas da máquina de costura da mulher, também, coitada, professora municipal,não para em casa.
Conversador, desses cabras enjoados, descascador da vida alheia e papa-pirão, enfiava-se por toda parte, fazia de tudo  para demorar aonde chegava.
            Muitas vezes a mulher nem sabia onde o bicho andava e, de certa forma, sentia-se aliviada. Quando não saía, ficava-se a comer, dormir e conversar miolo de pote. Esmerava-se em narrar às visitas que fazia e sempre alegando que os convites não faltavam. Na verdade o que não faltava era preguiça e descaramento. Ninguém o suportava mais. Teriam que descobrir um meio de escorraçá-lo mandá-lo para a casa dos seiscentos mil evos. Resolveram, então, botar o espertalhão nos trabalhos das fazendas. Levá-lo invariavelmente para os afazeres da roça.
            Seria tarefa do primeiro que hospedasse o Cara de Pau. E tocou ao fazendeiro Adriano Macambira. Seu Jacinto chegou já pertinho do almoço. Cumprimentou a todos e abancou-se como fazia costumeiramente. Puxou pela língua, contou vantagens, narrou fatos incríveis, sentindo já o gosto da comida. Para o almoço não se fez de rogado. Achava que acanhamento, esquivanças, causava constrangimento ao dono de casa. O certo mesmo era fazer-se de casa, íntimo. Tudo muito bem. Depois do almoço, o descanso e o bate papo.
            - Pelo que se nota Seu Jacinto, o senhor gosta mesmo da vida das fazendas. Pouco convive na cidade.
            - Ah! Adoro o campo, onde se planta e colhe para sustento desses vagabundos das cidades que nada produzem e vivem de explorar o povo. No campo, sim, há trabalho honesto, gente ordeira, simples que enche a barriga desses pançudos de boa vida das cidades.
            - Muito bem, seu Januário. Gostamos de ver homens de sua fibra. Deixa a vidinha fácil e cômoda das cidades para se internar pelos matos.
            - Ora, se não fosse isto, nem sei como poderia viver.
            Uma hora da tarde. Hora de recomeçar o trabalho!
            - Vamos gente: temos muito que fazer. Hoje teremos que terminar a limpeza das aguadas. As chuvas estão para chegar e os barreiros devem estar prontos pra receber água nova.
            Seu Jacinto, sentado estava, sentado ficou. Aquilo não era com ele, hóspede de casa. Como de costume ficaria de palestra com outras pessoas da casa, mulheres e meninos, ou dando mais voltinhas pelo sítio, comendo uma goiaba aqui, um caju ali ou qualquer fruta que aparecia. Quando não se deitava à sombra de uma fruteira copada qualquer e tomava sua boa madorna.
            - E o senhor, seu Jacinto. Venha também. Vai nos dar uma ajuda. O serviço é pesado e urgente.
            Jacinto quase perde a fala. Aquilo era um disparate, meter um hóspede, gente da cidade, no serviço pesado. Falta de consideração, grossura legítima. Só poderia ser brincadeira.
            - Vamos, vamos, tome logo sua pá. A minha já está aqui. Hoje se tem que dar duro. Olhe aí os preparativos para chover. O senhor é forte, descansado e irá mostrar a essa gente como se trabalha.
            Não teve para onde fugir. Pisava no chão como se pisasse no caminho do inferno. E se maldizia em silêncio: - Coronel de uma figa. Sujeito mal educado, brutamonte, patife. Está pensando que sou algum de seus espoletas. Tenho nada a ver com açudeco de ninguém ou que morra tudo de sede. E de andar, andar, ruminando maiores impropérios, quando cuidou de si, estava em cima do trabalho.
            - Ponha-se aqui em baixo, seu Jacinto e vá paliando lama para cima deste barranco. O senhor tem bons pulsos e isso será uma brincadeira.
            Jacinto enfiou a pá na lama e estremeceu por dentro. A lama barrenta pesava demais. O suor molhou-lhe logo a camisa, o coração pulava desordenado, as forças sumiram-se, quando o coronel recomendou:
            – “Mais força seu Jacinto. Atire a lama mais longe”.
            Jacinto reinou subir a barranca jogar a ferramenta do outro lado do inferno e sumir. Considerava impossível encontrar alguém tão miserável a ponto de meter um hóspede no eito. Á tardinha, ao voltar para casa, despediu-se sem esperar pelo jantar e desapareceu resmungando e rogando pragas o caminho todo. Os outros fazendeiros havia de saber de tamanha e tão vil desconsideração.
Duas semanas depois, tomou outro rumo. Desta feita era a fazenda do senhor Gabriel, um pouco mais longe, mas de um homem bom e tratável que sabia receber seus visitantes. Deu as caras com o mesmo cinismo. Aboletou-se, papou o jantar, pegou uma boa rede de varandas e adormeceu como um justo. Mas antes do sono, estabeleceu o comparativo entre um homem de bem e compreensivo, e um cafajeste. Era inacreditável, a diferença. Mas era assim mesmo. Os dedos dos pés não eram iguais. O dia amanheceu belo e luminoso, convidando a um passeio pelos campos, admirando a natureza. Tivera um sono tranqüilo e reparador. Veio o café, quase um pequeno almoço. Refestelou-se acendeu o seu cigarro Caxias, de fumo forte e picado, aromático e preparava-se para um passeio pelos arredores.
- Vamos dar uma andadazinha seu Jacinto?
- Pois não. Vale a pena respirar este ar oxigenado, puro, vivificante. Isso dar vida e conforta mesmo.
E foram andando, andando como quem faz um saudável passeio matinal. Lá um pouco à frente, os operários e os filhos do fazendeiro construíam cerca de pau-a-pique.
Abrir levadas fundas no pedregulho, transportar madeira, e aprumar a cerca e socar o estacame bem firme.
- Vamos aqui seu Jacinto. Dê uma demãozinha. Serviço leve. Vá transportando madeira para o pé da obra e assim num instante se termina. Os operários gritavam – “Chega madeira” e seu Jacinto começara a suar. – “Traga de dois ou três paus, criatura”. De uma em uma o serviço não anda. E seu Jacinto afrouxou, cansado. Foi, então, que houve a mudança. Socar o pé de cerca. Com uma estaca rugosa e pesada. Era para descansar. Às onze horas, saída para o almoço.
 No caminho seu Jacinto avisou. Vão andando que já chego. Vou ali dar de corpo. Entrou na caatinga e nunca mais foi visto. O resto da cerca estava lá para fazer e era uma ameaça. Fossem matar os seiscentos diabos. Era só mesmo o que lhe faltava, trabalhar para um suvacudo daquele, da mesma laia do outro. Com as mãos e os braços ardendo, seu Jacinto chegou à cidade como se tivesse saído das caldeiras de Pedro Botelho.
A laia era a mesma. Matutos safados que não reconheciam a importância de uma visita.  Uma cambada de cornos... Em toda parte os visitantes são cercados de atenção e conforto. Um homem como eu, da cidade, recebido por aqueles mama-na-égua, como se fosse um espoleta. Jacinto encostou-se em casa com certo receio de cair nas mãos de outro safado. Mesmo assim, aumentava a impaciência. Socado dentro de casa não era pra o seu feitio e nem era de seus hábitos. Iria para outras bandas, distanciando-se assim dos dois pilantras.
Cedinho, engoliu o café, acendeu o pacaia deu até logo à mulher e tomou o caminho. Por volta das nove horas entrava no pátio da fazenda Serrotão. Hospedou-se, conversador e confiante. O coronel José da Costa fora atencioso. Conversou um pouco, montou a cavalo e saiu, dando uma desculpa ao hóspede. – “Fique bem à vontade”. Voltarei logo. E no meio dia regressou. Entra sai, sai e entra o relógio marcou duas horas e não saía almoço. Certamente estariam preparando pratos especiais. A fome estava danada, mas, esperava. A perfeição não quer pressa. Um almoço aprimorado, gostoso, exigia paciência. E aconteceu o imprevisto. Saíram todos para o campo e nada de se falar em almoço. O relógio da parede, sem qualquer contemplação, bateu quatro horas da tarde. Jacinto acendia as narinas e não percebia cheiro de comida ao fogo. Estava visto que a cambada havia almoçado às escondidas, o que era uma tremenda desconsideração.
- Filhos das putas... E botou o pé no caminho.
Aquela era a última visita às fazendas. A roça era para os roceiros, um bando de cabra de peia. Um homem de bem não se metia naqueles matos. Vagabundos, miseráveis...
12-8-86

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

MEU PEDAÇO DE CHÃO


MEU PEDAÇO DE CHÃO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Não se tinha como avaliar o amor de Cezário pela vida do campo. Quando tinha de ir à cidade, saía olhando para traz como quem está se afastando de uma namorada. A natureza lhe encantava em todos os momentos e em qualquer lugar.
O amanhecer, a luz se espalhando pelos campos, a chuva caindo e molhando o chão, o sol aquecendo todos os seres, as plantas nascendo, crescendo, florando, os passarinhos, os besouros, tinha pena do sol, à tardinha, quando se escondia para pegar no sono.
As noites de lua ou o céu estrelado deixavam-no numa espécie de prostração mística. Quando Nosso Senhor fizera todas essas coisas maravilhosas, deveria estar embalado por sonhos inspirados.
Quanto mais Cezário admirava as coisas da natureza, mais se embevecia e mais se apegava à vida da roça. Nas cidades era aquela coisa artificial, sem vida, somente casas e gente, gente e casas. Gente falando, gente discutindo, gente querendo enganar e furtar os outros. Sinos tocando e chamando para enterro, soldados pelas ruas para prender, comerciantes furtando no preço e no peso das mercadorias, vagabundos pelas esquinas tramando misérias e padres vestido de preto, como se estivesse de luto.
Ali, quando se via um pássaro era engaiolado e os besouros só apareciam encandeados pelos focos de luz. Voando pelo espaço, somente morcegos e corujas. Nem sabia como se poderia viver numa cidade daquelas. Fazia suas comprinhas e largava-se de volta. Ao sair da cidade criava alma nova.
Até um calango que corria medroso, causava-lhe encantamento. Nunca freqüentou escola, mas ninguém conhecia mais que ele a vida do campo, os seus segredos, as suas maravilhas. Era capaz de passar horas esquecido, olhando um passarinho tecer o ninho ou as formigas transportando suas provisões.
Mas Cezário danava-se quando assistia um gavião pegando um bichinho qualquer, quando poderia viver de outra coisa. Tinha certeza que Deus não o havia feito assim. Viciara-se com o tempo e por isto mesmo, foi não foi, os matava. E ninguém gostava deles.
Cezário tinha, no entanto, uma grande mágoa. Não possuía seu pedacinho de chão, onde cultivasse o que queria e protegesse os bichos do mato que ali vivessem, ou que ninguém matasse ninguém, a não serem cobras venenosas e bichos que perseguissem os outros.
Mas a terra não era sua e ali não faziam o que queria. Haveria de ter o seu cantinho de chão, onde tudo fosse dele. Adorava as chuvas, os ventos, os bichos, as matas, desde o pezinho de grama, até as árvores mais altas; onde ninguém daria pitaco.
Mas, como iria chegar até lá, trabalhando para os outros e fazendo umas rocinhas mixurucas. Poderia se casar com uma moça que houvesse herdado, mas isto não lhe seria fácil.
O certo mesmo seria guardar tostão por tostão no fundo da maleta ou num buraco da parede até mesmo privando-se de alguma coisa essencial. Acima de tudo estava o seu grande sonho. Se fosse necessário se mandaria para outra região onde terras fossem baratas. E por que não?
Resolvera sair do trabalho diário para o regime das empreitadas. Procuraria, assim, obter maior rendimento. Começaria pela madrugada e entraria pelo por do sol. Tentaria duplicar o ganho.
Quando ia a cidade fazia uma fezinha no jogo do bicho. Mas não tinha sorte. Não acertava nem no grupo. Pensou numa viúva proprietária perto dali, iria procurar serviço e já antevia que se ela recusasse a empreitar certo era que estaria desinteressada. Fez a tentativa e esperou como um caçador que está na espreita. Dona Mocinha, no entanto, não relutou.
Contratou o reparo geral das cercas. E como Cezário morava distante, deveria dormir na fazendola e até lhe servia de companhia. Cezário correu em casa para prepara-se com o que possuía de melhor. Cortar o cabelo, afiou melhor o visual, comprou um potinho de brilhantina, um pente novo, um afiador de navalha para manter a cara raspada e uma fisionomia mais agradável.
As mulheres não gostam de homens desleixados. Ás vezes, um pequeno detalhe, é um grande atrativo. O que preocupava era ser dona Mocinha uma mulher já vivida e experiente. Mas teria que adivinhar-lhe os gostos, observá-la atentamente. E, ao mesmo tempo, fazer-se de indiferente nas ocasiões propícia e fazer-se de desentendido para aguçar-lhe a curiosidade.
Cezário alojou-se num quartinho fora da casa. Não ficaria bem dormir dentro da casa de uma viuvinha ainda tão moça. Cezário gostou dessa atitude de dona Moçinha. Era uma prova de zelo e honestidade. A mulher lhe servia. Ela e a terra.
- Venha para o almoço, seu Cezário. Sente-se aí e vamos comer qualquer coisa.
- Não senhora. Depois almoçarei.
- Ora, homem, já estou enjoada de fazer refeições sozinha. A gente perde até o apetite.
Cezário sentou-se de frente, simulando acanhamento, mas na verdade, com grande alegria íntima. Procurava disfarçar, mas a dona Moçinha quebrou-lhe a timidez aparente e foi chegando onde queria.
- Olhe seu Cezário, talvez não soubesse o que é viver só, assim como eu. Tinha antes, a boa companhia de meu marido, mas, depois disso, eu creio que seria bem melhor ter morrido e ele ficado. Comer só, não ter com quem confidenciar, nem sair. Certamente o senhor nunca sentiu isso. E nem queira passar pelo que tenho passado.
- Ah! No começo não, mas com o passar do tempo tudo mudou. Já pensei muito em me casar. No entanto, ninguém ainda me quis, bem entendido, das mulheres que pretendia. Logo, sou um tanto retraído. Sempre me falta coragem para dizer às moças o que realmente sinto. Fico entalado.
- Isso acontece, mas a gente tem que se decidir. Eu, por exemplo, preciso de companhia e talvez esta companhia esteja bem perto de mim.
 Que tal, Cezário, se resolver nos casar? Gostei de teus modos. De tua dedicação e, francamente, sinto-me protegida depois que chegastes.
 É verdade que sou uma viúva e é possível que nem ao menos penses em mim, mas terás tempo para pensar e decidir. Cuidarias da fazenda, enquanto eu tomaria conta da casa e de ti.
- Como poderia ser isto. Só tenho mesmo a vida e esta sem qualquer coisa que possa interessar a alguém. Será que a senhora refletiu bastante? Mal sabe de onde sou.
- Olha Cezário, sei que não estou enganada. Conheço as pessoas pelo jeito de olhar, de se comportar e até pelo jeito de andar ou ficar em pé. Não é pelo fato apenas de não querer ficar só por mais tempo, é também porque o meu coração pede. Senti, desde o inicio uma afinidade entre nós.
- Tenho medo de não querer ser o que a senhora pensa que sou. É uma pessoa tão distinta que morreria de desgosto se viesse a se arrepender. Já disse que não possuo nada que possa oferecer.
- Quero, apenas, que me ofereça tua companhia de amigo. O resto dependerá de nós dois. Se quer correr o risco, só tenho mesmo que considerar-me a criatura mais feliz desde mundo.
- Jamais poderia julgar que essa felicidade estivesse tão perto de mim.
- Então vamos cuidar dos papéis e nos casarmos sem festas, sem convidados, casamento só para nós dois, e as testemunhas. Neste caso, toma conta de tudo. De mim é que só tomarás conta depois do casamento. Está bem entendido.
Cezário ficou encantado com o zelo da viúva. Fosse outra, talvez se aproveitasse para começar os idílios. Foi de imediato, preparar seus documentos. Casados, iniciou-se para Cezário, uma vida inteiramente nova. Estava com o seu grande sonho realizado.
Aquelas terras, aqueles campos e um bom pedaço de céu já era dele. Percorria os campos, pisando de leve nas ervas para não machucar-las e nem espantar ou assustar os pequenos animais. Se ouvia um pássaro cantar, ficava parado e embevecido. Uma flor aberta ou um botão a abrir-se eram como a doçura de um beijo na boca amorosa da natureza.
A fazenda nas mãos de Cezário, que além do mais, protegia religiosamente a flora e a fauna, progredia admiravelmente. Nada havia que se opusesse a felicidade dos dois. Parecia morrer de amores. A perseverança e a vontade de vencer deram a Cezário o que ele desejava.
O mundo poderia cair, agora, aos pedaços, contando que aquele recanto de amor pela natureza e pela viuvinha que lhe fizera feliz, fosse preservado. Uma lagartixa que se aquecia na cumeeira da casa, confirmou balançando a cabeça.

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.