domingo, 1 de outubro de 2023

DOMÉSTICA HUMILHADA

 

Doméstica humilhada

 

Lindalva, moça pobre, nascida numa pequeno arruado na beira do Rio são Francisco, hora e meia de lancha, rio acima, da cidade de Penedo nas Alagoas, queria ser gente, como se costuma dizer por aí. Vivia procurando aprender de um tudo. Recebia revisas, usadas de uma amiga que trazia da casa onde trabalhava. Capricho, Amiga, Contigo, Cinelândia, Sétimo Céu, Gente, Revistas do radio e tantas outras que aparecesse.  Pretendia ser uma moça da moda, atualizada, para quando fosse morar na rua, não passar vergonha.

Filha de pais exigentes e honestos. Criaram a filha como muito carinho e dedicação. Esperava que quando saísse da idade da boneca, arranjasse um bom casamento e desse prosseguimento ao mesmo ritmo de vida deles. Trabalhar em casa. Ser boa esposa e boa mãe.

Seu Berereu sempre dizia; - Minha filha, quero que você nos dê muitos netos, encha essa casa e nossa vidas com muitas alegrias.

Porém, Lindalva queria outra vida, cidade onde visse muita gente e conhecesse de tudo.

Pediu a Lurdinha que achasse um emprego para ela em Penedo, fosse de qualquer coisa, claro, mas que fosse honesto.

Num belo domingo recebeu a visita da amiga. Tinha certeza que trazia boas notícias.

- Nem te conto. Achei um lugar para trabalhar em casa de família. De um doutor, gente fina e rica. Acho que vai gostar do povo. Será que teu pai vai consentir? Acho muito difícil.

- Nega, vou inventar que quero estudar para ser professora, pois morando aqui não tenho como ir para a escola e trabalhando de dia a noite posso frequentar as aulas.

A peleja foi grande, dentro de casa, para convencer a família da nova vida que desejava viver na cidade.

Dia marcado para assumir o emprego desceu o rio na lancha Tupy que já vinha das bandas de Propriá. Lotada de beiradeiros que traziam suas mercadorias para vender na feira em Penedo. Esteiras feitas de taboa, bolsas de Ouricuri chamadas bocapiu, um bolo de nome má-casada, camarão saburica, pilombetas e rabo de jacaré salgadas, peças de barros da vila de carrapicho, frutas diversas e outros produtos da labuta desses comedores de farinha azeda.

De papel na mão com o endereço, Lindalva danou-se de ladeira acima a procura do Barro Duro, onde residia o tal do doutor.

Esse senhor de nome Alberto Siqueira Matos da Costa, era uma figura, como posso dizer: “subjetivamente classificado como mensoclítico, estrombólica, realpis, retombante, mediovagio, caviocárica, batráquio e estrogonoficamente sensível”. Repetindo ipsis litteris as palavras de um grande candidato a vereador da redondeza. No entanto não era doutor em nada, apenas um bom contador que saíra de uma vida simples e galgara uma posição social invejável. Subiu na vida levando também uma grande quantidade de arrogância, prepotência, bazófia, jactância, pedantismo e muita presunção. Os que não tinham muita aproximação com essa figura, os chamavam de Dr. Tolete. Era essa pessoa que a pobre da Lindalva ia trabalhar. Que Deus a protegesse!

Na casa da rua Getúlio Vargas, no número duzentos e vinte e três, Lindalva parou e receosamente bateu palmas. Uma, duas, três e quando ia mais uma vez chamar, uma voz lá de dentro gritou – Já vai!

Abriu-se a porta e apareceu uma moça muito elegante – parecida com aquelas das revistas que lia sempre.

- Pois não! O que deseja?

- Sou a moça que vem trabalhar aqui. Foi Lurdinha que trabalha aqui perto quem me mandou.

- Ah sim! Entre.

Ali começava o tirinete na vida da pobre moça. Humilhada, espezinhada, cobrada por tudo que existisse de errado na casa. Dormia pior do quer a Gata Borralheira, folga só uma vez no mês. A comida fornecida era a sobra da mesa. Contudo aguentava calada e obediente, não queria voltar com o rabo debaixo das pernas para casa. Esse martírio já tinha mais de seis meses e ela relutante sempre de cabeça baixa seguia seu destino, talvez sua vida se transformasse como nas revistas de novelas de repente.  Como nos contos onde um pretendente rico se enamorava de uma moça pobre.

Antônio Calazans, amigo, intimo e frequentador da mansão do dr. Matos, - era assim que queria que o chamasse. Um dia bebericando vinhos finos a beira da piscina, comentou cautelosamente com o amigo.

- Matos, essa moça que trabalha para vocês é muito prestativa, atenciosa, faz todos os seus mandados sem reclamar e sem se cansar. Acho que merecia um tratamento melhor de vocês. Só tratam com nomes pejorativos, gritando, xingando por qualquer demora no atendimento. Um dia ela não aguenta e vai embora e como se ver, está difícil arranjar outra assim com tempo integral.

Bebida vai e bebida vem, já meios amolengados pelo vício deixado por Baco, Dona Claudinete entrou na conversa e disse:

- É Calazans, você tem muita razão e eu já tenho conversando com Matos sobre isso. Ficar só tomando conta da casa eu não fico se ela for embora.
As outras nunca passaram mais de uma semana. O homem é muito abusado com as meninas.

Numa tomada inesperada e alcoolizada do patrão, resolveu mudar de ideia e acatar o pedido do amigo.

- Tá bom. Já que todo mundo está contra mim, vou aquiescer dessa vez. Chame Lindalva para a gente conversar sobre esse assunto. Empregado é empregado.

- Lindalva se aproxima dos patrões, já temendo mais uma enxurrada de nomes e pedidos urgentes.

- Minha jovem queria conversar com você diante dessas pessoas e que sejam também testemunhas. De agora em diante a gente vai manter um tratamento melhor com você. Acho que fui mesmo muito exigente, você sabe, chego do escritório aperreado com muitos problemas para resolver. Minha enxaqueca não me abandona nunca. Não paro de trabalhar. É um corre, corre, medonho. Queria lhe pedir desculpas e prometer que de agora em diante nunca mais vou lhe tratar com desdém. Você tem sido uma ótima companheira paras minha esposa, tomas conta da casa melhor do que todas as outras, por isso juro diante de todos que mudarei definitivamente meus abusos com você.

- Doutor Matos, reconheço tudo isso, sou uma pessoa necessitada. Saí do mato para vir estudar aqui em Penedo e como todo mundo saber que a vida não é fácil para se vencer. Jamais desistiria, mesmo sofrendo toda essa humilhação pelo senhor. Dona Claudinete sempre foi atenciosa comigo. Não chateava em nada. Tinha que resistir até onde meus nervos aguentasse e não endoidasse.

Queria também pedir desculpas ao senhor e jurar que nunca mais cuspirei e nem escarrarei dentro do copo da sua água de beber. Era um modo de me vingar do senhor. Não fazia por ruindade não, era apenas um modo de descontar.

 

Campina Grande 01 de outubro de 2023

Grijalva