terça-feira, 29 de agosto de 2023

 

Pedro Careca

 

Existia na cidade de Sumidouro, um pouco longe, um pequeno bodegueiro que nunca ia para frente nos seus negócios. Porém nunca desistia. Dizia que era mau olhado ou algum trabalho feito para acabar com seu negócio. Era desses cabras que acreditava em tudo que lhe dissesse. Só vivia na picuinha.

Bodega de três portas estreitas como comumente são essas casas do interior ou do tempo antigo. Tempos passados, tinha sido uma farmácia homeopática do seu Florentino, homem metido a todos os afazeres que lembrasse doença ou saúde.  Havia herdado o ponto de um tio que o criara, num tempo de seca medonha, quase abandonado pelos pais que não possuía meios para criar mais um bruguelo.

Na frente da bodega, entre uma porta e outra, nunca faltava três potes com arruda, pinhão roxo e espada de São Jorge. Dentro da desarrumada e meio suja mercearia, não faltava uma vela de sete dias, acesa tendo como castiçal uma lata de tinta toda borrada pelo escorrimento da cera, formando uma verdadeira estalactite colorida; porque para cada santo que oferecia tinha uma cor diferente; a vela ficava trepada numa prateleira numa certa altura e no canto esquerdo para evitar que os ventos ou os olhares estanhos a apagasse.

Lá para os fundos ficava sua morada, oficina e depósito das mercadorias que nunca vendia. No quintal um pé de tamarindo, bananeiras, latas cheias de terra com mudas de ervas para chá e mau olhado. O cachorro Pereba, sempre zangado e impedido de ir para frente, latia com todos que entrasse no comércio do seu patrão.

Pedro Careca, era um homem de altura média dos nordestinos, alvo, barriga acentuada que impedia de afivelar o cinturão. Camisa aberta ao peito, apenas abotoado pelo último botão, calça arregaçada como se tivesse passado nalgum riacho. Nos pés um par de alpercatas de sola e na cabeça, para encobrir a carecona, um tipo de boné jogado à toa sobre os restos de cabelos grisalhos.

Vendia de tudo, ou pelo menos tentava. E nas horas vagas ou sem freguês, coisa que acontecia sempre, fabricava bugigangas. Do abano até candeeiro de flandres aproveitado de latas de óleo. De madeira, fazia carrinhos, mamulengos, porta toalhas. De barro, fabricava um bocado de utensílios para cozinha e até cachimbo.

Bastava alguém chegar perguntando se tinha tal objeto para vender ele dava logo uma resposta plausível. Tá para chegar semana que vem. Metia a ideia na cabeça e ia fabricar a tal peça. A pessoa nunca mais voltava para procurar o objeto e o estoque aumentava cada vez mais.

Algum dia aparece um filho da égua que goste disso, - dizia sempre que se lembrava da encomenda esquecida.

A bodega se enchia de trastes inúteis; se esvaziava de freguês e de dinheiro.

A cidade se espichara e a pobre bodega foi ficando para trás. Ontem era uma das ruas principais, hoje era arrabalde. Por isso na vendia quase nada. Bairro das pessoas mais longe do dinheiro.

- Bom dia seu Pedro, como vão as coisas?

- Não sei por que pergunta, seu Lourival – este tinha sido realmente criado pela vó *. Não tá vendo a grande freguesia, não?

- Ave maria, não precisa me morder não, homem!

- Todo dia me vem com a mesmice besteira de saber da minha vida e do meu negócio, como quisesse ajudar ou fazer algum milagre. 

- Não homem de Deus, não é que essa noite tive um sonho com o senhor e sua fábrica de peças. Coisa engraçada, via direitinho tudo o que vou lhe contar. O senhor contratava um magote de meninos e mandava de um em um perguntar pelas outras mercearias da cidade, se tinha, - vamos supor: cachimbo de barro; já que o senhor tem uma grade quantidade. No outro dia mandava outro menino fazer as mesmas perguntas nas mesmas casas e as mesmas pessoas, aconselhava que desse preferência ao dono ou gerente. Depois de uma semana o senhor arranjava um cabra mais vistoso e mandava oferecer a cuja dita mercadoria. No sonho via que vendia todos os seus inventos e as coisas, na sua vida, ficavam uma maravilha!

- Ou homem besta, vá pra lá com esse teu sonho de ilusão.

- Pois tá bom se não acredita vou desparecer noutro canto onde sou mais aceitável.

Essa noite Pedro Careca não dormiu, só pensando no sonho do Lourival. Será que dava certo, ou ia só se lascar de raiva e ainda por cima ter que pagar a molecada para mentir. Passou uma semana e a ideia continuava a perseguir para onde andasse ou pensasse.

Foi até a Rua do Emboca, que ficava por trás do seu prédio, e chamou seis meninos entre oito a dez anos para uma conversa na sua casa comercial logo depois do almoço.

- Bem, hoje é segunda feira quero que vocês todos os dias dessa semana saiam à rua procurando todas as mercearias ou outros tipos de comércios que vendam as coisas parecidas com as da minha loja.  Não saiam juntos, tem de ser separados um dos outros para ninguém desconfiar do que vou pedir para fazer. Hoje mesmo vão procurar nesses pontos de venda se tem esses artefatos que produzo. Na volta darei a cada qual dois reais.

Pedrinho, diga que foi seu pai, tio ou avô que mandou saber o preço de cachimbo de barro.

Zezinho, vai perguntar se tem abano de palha feita do milho para sua mãe.

Abel, pergunta quanto custa cofre de barro.

Chiquinho, vai se interessar por pegador de brasa.

Adelmo, saia a procura de fogareiro de lata de querosene.

Júca, que é o mais velho, diz que quer aprender tocar berimbau.

Podem passar nas mesmas lojas não tem importância. Todos os dias façam a mesma coisa, a mesma conversa, porém, vão trocando os tipos de objetos entre vocês para os donos das bodegas não desconfiarem.

Duas semanas desse rojão com a meninada, achou que já era tempo de mandar um vendedor oferecer seus produtos encalhados.

Contratou Dioclecio, que já tinha trabalhado na padaria de seu Germano e vendido pão e bolacha pelas ruas na bicicleta de três rodas. Montou um carro feito de banda de geladeira, com todas as bugigangas do seu estoque, danou uma buzina de borracha cromada que tinha tirado da velha bicicleta e mandou o sujeito ganhar o mundo oferecendo nas mesmas lojas que os meninos já tinham passado.

Seis horas da noite, chega de volta o Dioclecio na porta da Casa São Judas número 13, onde encontra seu Pedro sentado num tamborete pé de priquito, ansiosamente a espera do seu vendedor.

Quando viu a carroça meio vazia, perguntou:

- Foi roubado?

- Não senhor, vendi quase tudo. Vamos fazer as contas.

Nunca mais deixou de inventar seus piquaios e nem parou de usar o método do sonho de seu Lourival. Vivia arrodeados dos meninos, seus secretários e o seu vendedor preferido. Nunca mais faltou dinheiro para todos que trabalhavam no serviço de divulgação e venda do Empório do Careca.

 

25/08/23

Carijalva

 

 

*(Quando pulou da barriga - escritor pobre sai da barriga e não da cabeça as ideias -, o nome de Lourival, me lembrei dessa música cantado por Linda Batista no ano de 1945 de autoria de Marabá.)

 

O Lourival sempre foi abobalhado.

Dele até eu tenho dó.

Sabe por que

Ele é assim, minha gente?

Porque foi criado com vó. (bis)

 

O Lourival sempre foi assim,

Cheio de dengo, cheio de mágoa.

Toma café e depois de algum tempo

Ele pergunta:

"Vovó, eu posso beber água?"

 

Pode, pode, pode, Lourival!

Beber água não faz mal! (bis)