BUCHO D’ÁGUA
Estava certo dia assistindo aula de
zoologia, na Universidade Federal da Paraíba; curso de Zootecnia em Areia, nesse
tempo de meu Deus, de dois mil e vinte e três, aula sobre protozoários; quando
a professora danou na tela um slide, com uma cabra de cabelo liso, mostrando um
sorriso de tristeza melancólica, uma pele de cor de jumento quando foge, nem
branco nem amarelo, nem negro e nem branco. Cor de nevoeiro do nosso cariri no
tempo de seca, quando o tempo se mete a enxerido e que à boca da noite, sai
aquele fumaceiro que a gente não sabe donde vem. Tinha uns moleques que diziam que era a
fumaça dos cigarros fumados por comadre Fulozinha ou o Saci Pererê. A barriga
do cabra parecia que por dentro tinha uma lamparina acessa, daquelas feitas com
lata de óleo Dom Dom; alimentada com gasóleo que produz uma luz amarelada.
A fessora disse que aquele cabra, estava
infectado pelo protozoário Schistosoma mansoni – Esquistossomose ou a tal da barriga d’água.
Pedi
a uma colega que viaja de carona para Campina Grande, que me lembrasse daquela
foto.
Pois de repente minha velha memória, sorriu!
Votei ao ano de mil novecentos e setenta e um. Em Penedo Alagoas, sítio Cerquinha
das Laranjeiras, terra pequena e desarrumada talvez umas cinco tarefas que meu
pai havia comprado. Casa muito singela, que servia de moradia ao seu Zé Vicente
e família; uma velha casa de farinha ainda funcionando que os vizinhos a usavam
pagando uma Conga pela farinha produzida. Muitas laranjeiras semi-sufocadas
pelos enxertos de passarinhos e muitos galhos mortos. Lá pra baixo onde o rio
Perucaba encerrava os limites do sítio e os alagados, tínhamos um pequeno porto
e uma canoa que ainda fora incluída na compra da terra. Este rio banha os
municípios de Girau de Ponciano, Arapiraca, Lagoa da Canoa, Feira Grande, São
Sebastião, Igreja Nova, beirava nosso sítio e se derramava no Rio são Francisco,
em Penedo. Os alagados nossos vizinhos se estendiam por muitos hectares, donde
os ribeirinhos tiravam o de comer e as vezes quando sobrava vendiam nas feiras.
Camarão, carne de jacaré (a macaxeira – parte da calda), pequenos peixes, e o
escorregadio Mussum. Já que estamos falando também em zoologia, vou apresentar
o camarada que provocou está narrativa:
Mussum
(Synbranchus marmoratus)
O
peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada
sob a cabeça. O peixe de água doce chamado Mussum é conhecido
popularmente como Enguia-do-Pântano e Cobra-d’água.
Nome
científico Synbranchus marmoratus.
Distribuição
geográfica. Sua espécie é distribuída em todo o Brasil.
Habitat.
O Mussum é um peixe que habita lagos, córregos, brejos, pântanos e rios,
podendo sobreviver a longos períodos enterrado na lama.
Alimentação.
É um peixe carnívoro, com hábitos noturnos, alimentando-se de presas
vivas, principalmente crustáceos, moluscos e pequenos peixes, mas também
insetos, minhocas e materiais vegetais.
Reprodução.
O peixe Mussum, durante o período de reprodução, põe seus ovos em tocas,
que servem de ninhos. Cada ninho pode conter até 30 ovos e larvas em diferentes
estágios de crescimento, indícios de que este peixe produz múltiplas ninhadas,
ao longo da estação reprodutiva. É o macho quem protege a prole.
Características.
O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial
localizada sob a cabeça. Sua forma corporal lembra uma cobra. Seus olhos são
pequenos situados bem à frente da cabeça. Sua coloração vai do cinza-escuro ao
castanho, com manchinhas mais escuras esparsas pela cabeça e pelo corpo. Não
apresenta nadadeiras peitorais nem pélvicas, e as nadadeiras dorsal e anal
continuam com a caudal. Sua respiração também é aérea, ou seja, ele pode
respirar fora da água, graças à faringe altamente vascularizada, que funciona
como um pulmão. Pode atingir mais de 1 m de comprimento. (O danado também se
alimenta com os pequenos caramujos já contaminados pela silenciosa e invisível
pestinha que de mão em mão passava de um hospedeiro a outro
indo destruir seu finalmente agasalhador.)
Então,
entretanto, contudo e, todavia, vamos continuar a narrativa.
Todas
as sextas feiras eu ia pagar os auxiliares do sítio
Cerquinha e como sempre fui um bom boêmio, levava uma garrafa de Serra Negra,
aguardente na moda nos anos que esses fatos se deram. Partia de Penedo em
direção à vontade de tomar uma com camarão e ouvir as palestras de seu Zé
Vicente, nordestino, camarada inteligente e um verdadeiro contador de
presepadas matutas. Íamos até tantas horas nesses embalos fulgurais. Conversa
vai e conversa vem, sempre se falava em bons tira-gostos. Por coincidência numa
dessa feita, passava por nossa porteira, vizinhos que sempre entravam e nos
cumprimentava, participando dos causos narrados no momento.
Mané
buchudo, convidado a entrar e tomar uma das boas não se fez de rogado. Nas
nossas conversas jogadas fora, sobre principalmente tira-gosto, nos convida
para ir comer uma “Mussunzada” na sua casa na próxima sexta-feira.
Dito
e feito na data marcada estava meu irmão Robério, intelectual até as profundas
da medula e eu analfabeto que fazia raiva, fazendo o pagamento da folha do
pessoal e já iniciando o ritual da pinga com camarão; quando seu Zé Vicente nos
alertou do compromisso com a mussunzada, e, aí acompanhado por Geraldo (gago
que só uma peste) filho de seu Zé Vicente, começamos uma descida numa escuridão
que a bíblia nos diz: “Na escuridão, nós não sabemos onde estamos” em
direção ao começo das águas úmidas. Caminho escuro, esburacado e apertado entre
duas barreiras feitas pelas correntes d’águas, que nos invernos cada vez mais
se aprofundavam.
-
Boa noite seu Manoel. Chegamos! Fizemos essa tentativa três vezes, até que a
meia porta se abriu e vimos sair de dentro uma figura que parecia mais um
quadro do Rembrandt aqueles famosos auto-retratos. A gente de fora no escuro, e
Mané Buchudo de dentro da casa, iluminado pelas lamparinas de luz amareladas,
embaças e meladas de fumaça.
-
Entrem, a casa e de vosmecês! Desculpem não atender logo, eu e Mariquinha
estávamos entretidos ouvindo a novela no radinho. A gente estava ansioso para
saber quem tinha matado a escrava Isaura.
Entramos!
E vi logo de cara na parede dependurado várias estampas de santos. Conheci logo
Santa Barbara, Jesus, Maria e José. São João e São Pedro mais abaixo. Ao lado
esquerdo uma mesinha com várias imagens. Padre Cícero pintado de branco, porém
já escurecido pela fuligem da fumaça das lamparinas. Outras imagens que no
momento não lembro. Ao lado direito, várias fotos de familiares. Um calendário
marcando 1971 de uma casa comercial. Ao chão num canto um pote pequeno danificado
com uma touceira de comigo ninguém pode. É indicada contra o mau-olhado e para
afastar a inveja. Também protege o lar de energias negativas e de pessoas
mal-intencionadas. Só queria saber quem iria ter olho grande numa situação de
pobreza medonha como aquela.
Passamos
para o outro cômodo anexo ao primeiro. Uma mesa, quatro tamboretes, um pote com
um caneco de alumínio dependurado. Um fogão a lenha, aceso e panelas debruçadas
sobre o cujo dito. A camarinha ficava ao lado esquerdo separado por um
cortinado de tecido cor e marca indefinidas. Ao lado do fogãozinho corajoso e
teimoso quase se desmanchado, uma porta que dava saída para o terreiro. Não
havia janelas.
Foi
o que me lembro e que a maldita da Covid teve pena.
Sentamos
à mesa. Os três visitantes e o dono da casa, a patroa continuava na peleja das
panelas. Coloquei em cima da mesa a garrafa de cana e uns limões, esperando o
dito tira-gosto. Sem muitas delongas, dona Mariquinha danou uma panela de barro
recheada de mussum, cozinhado ao molho de água do velho Perucaba, temperado com
Schistosoma, sal e não sei o que mais diabo a quatro. Esparramou em cima da
mesa pratos de ágata meios pinicados pelo uso. Acho que era a melhor louça de
casa, só para os visitantes. Vários copos de vidro e alumio e uma frasco usado
de Bromil à guisa de pimenteira.
Começamos
a peleja. Caras feias na hora de tirar o gosto da maldita cana com o
desconhecido peixe. Mas, mesmo assim fomos emburacando a cana e o tal petisco.
Acabou a pinga e o escorregadio, como chamavam os índios de antigamente.
Conversa
vai, conversa vem, saiu o assunto de doenças.
-
Estão vendo meu estado? Morto, quase morto. – disse seu Mané. Não tenho mais
força para nada. A danada da maleita chega devagarinho à boca da noite e deixa o
cabra destinhorado. Além de queda coice – mostrando a barriga enorme – e mais
essa peste de bucho cheio d’água que parece que carrego um bruguelo de bode.
Aqui em casa só se fala em mazela. Fui ao doutor e o homem não resolve nada, só
fica passando cachete do tamanho de uma bolacha que pra descer tenho que tomar
meia quartinha d’água. Não sei mais o que vou desarnar para resolver minha
vida.
Nisso,
meu irmão Robério disse em cima da bucha. Rindo como sempre fazia suas
presepadas para animar a turma.
-
Oxente e Grijalva já não é quase um médico. Vai lhe receitar e dizer com
certeza a causa desse incômodo. Veio mesmo a calhar a gente vir comer o mussum.
Só assim o senhor vai ficar bonzinho.
O
que a cachaça não faz nas pessoas. Eu apenas tinha feito o vestibular para
medicina na Universidade Federal de Pernambuco e estava aguardando vaga.
Tínhamos ficado quinze estudantes de fora esperando um lugar ao sol ou como era
chamado na época, de excedente. A classe só permitia trinta vagas. No final,
após muita luta não conseguimos o intento.
Mas
como se diz que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, não contei
conversa e fui logo mandando o buchudo tirar a camisa e comecei a apalpar a
pança que alumiava mais do que um balão de sopro. Passei meia hora examinado e
diagnosticando o pobre do amarelo. Dei minha abalizada opinião, passando umas
meizinhas; folhas de losna, boldo, chá dente de leão e agrião d’água (já que o
assunto estava sendo apreciado) e logo nos despedimos; deixando muitas
esperanças em todos de uma cura milagrosa.
Tentamos
planejar a volta para Cerquinha da Laranjas. A escuridão era total, nem sinal
de estrelas. Apelei para ver as Três Marias, estrelas pertencentes à constelação de Órion,
uma constelação que fica completa no nosso céu, durante toda a noite, para nos
guiar. Nada. Breu total. Geraldo então teve uma ideia. Pediu emprestado um
velho pangaré para nos levar de ladeira acima. Selaram o bicho e com muita luta
subimos no Rocinante. Robério que era mais velho foi na sela e eu na garupa.
Geraldo com mais conhecimentos geográficos, puxando pelo cabresto velho pé de
pano. De vez enquanto eu descia forçosamente pela garupa e danava o espinhaço
no chão duro. Acho que aquelas quedas ainda hoje me acompanham com dores
insuportáveis de herança, que fiquei como seu beneficiário. Gritava que tinha
caído e a caravana parava para me recolher com muita dificuldade. Esse tirinete
aconteceu umas três vezes antes de vislumbrar a nossa salvação. Pegamos o Jeep
e finalmente fomos para nossa casa em Penedo.
Semana seguinte voltamos
para fazer o pagamento do pessoal como de costume. Os cumprimentos costumeiros,
as perguntas sobre o andamento do plantio de maracujá, O que tinha de frutas
para levar para minha mãe e claro, tomar uma garrafa de pinga com o velho
camarão, que dona Cícera ia mosquear.
- O homem morreu, e já
foi enterrado – disse seu Zé Vicente, de supetão.
- Que homem seu Zé?
- Seu Manoel Izidoro.
Ai Geraldo, gaguejando disse
- também depois de tanto aperto e mexida naquele barrigão, não tinha diabo que
aguentasse. Espoucou!
Ficamos sem jeito e com
medo de sermos parcialmente responsável pelo ocorrido. Acabou a vontade de
tomar a aguardente com camarão, pimenta e muito limão. Com a boca cheio d’água,
dissemos até logo e fizemos meia volta e nunca mais consultei ninguém. Pelo
menos que tivesse infectado pela esquistossomose e nunca
mais comi tira-gosto de mussum...