quarta-feira, 19 de abril de 2023

ILUSÕES DA VIDA

 



ILUSÕES DA VIDA

FRANCISCO OTAVIANO

Quem passou pela vida em branca nuvem,

E em plácido repouso adormeceu;

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu;

Foi espectro de homem, não foi homem,

Só passou pela vida, não viveu.

 

Francisco Otaviano (Francisco Otaviano de Almeida Rosa), advogado, jornalista, político, diplomata e poeta, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 26 de junho de 1826, e faleceu na mesma cidade em 28 de junho de 1889. É o patrono da cadeira n. 13, por escolha do fundador Visconde de Taunay.

Era filho do Dr. Otaviano Maria da Rosa, médico, e de Joana Maria da Rosa. Fez os primeiros estudos no colégio do professor Manuel Maria Cabral, e no decorrer da vida escolar dedicou-se principalmente às línguas, à História, à Geografia e à Filosofia. Matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1841, na qual se bacharelou em 1845. Regressou ao Rio, onde principiou a vida profissional na advocacia e no jornalismo, nos jornais Sentinela da Monarquia, Gazeta Oficial do Império do Brasil (1846-48), da qual se tornou diretor em 1847, Jornal do Comércio (1851-54) e Correio Mercantil. Foi eleito secretário do Instituto da Ordem dos Advogados, cargo que exerceu por nove anos; deputado geral (1852) e senador (1867). Como jornalista, empenhou-se com entusiasmo nas campanhas do Partido Liberal e tomou parte preponderante na elaboração da Lei do Ventre Livre, em 1871. Já participara da elaboração do Tratado da Tríplice Aliança, em 1865, quando foi convidado pelo Marquês de Olinda para ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros, mas não a aceitou, ficando em seu lugar Saraiva. Por ocasião da Guerra do Paraguai, foi enviado ao Uruguai e à Argentina, substituindo o Conselheiro Paranhos na Missão do Rio da Prata. A ele coube negociar e assinar, em Buenos Aires, em 1º de maio de 1865, o tratado de aliança ofensiva e defensiva entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai, no combate comum a Solano Lopez, do Paraguai. Recebeu o título do Conselho do Imperador e do Conselho Diretor da Instrução Pública.

Poeta desde menino, não se dedicou suficientemente à literatura. Ele mesmo exprimiu com frequência a tristeza de haver sido arrebatado à poesia pela política, por ele chamada de “Messalina impura”, num epíteto famoso. Apesar da carreira fácil, respeitável e brilhante, cultivou sempre a nostalgia das letras. Sua obra poética representa uma espécie de inspiração do homem médio, mas não banal, o que lhe dá, do ponto de vista psicológico, uma comunicabilidade aumentada pela transparência do verso, leve e corredio. Em torno do eixo central de sua personalidade literária se organizam as tendências comuns do tempo, num verso quase sempre harmonioso e bem cuidado.

Nas suas traduções de Horácio, Catulo, Byron, Shakespeare, Shelley, Victor Hugo, Goethe, revela-se também poeta excelente. Ficou para sempre inscrito entre os nossos poetas da fase romântica, como autor de duas ou três peças antológicas, mesmo que não tenha exercido a literatura com paixão, e o patriota que foi dá-lhe lugar entre os grandes vultos brasileiros do século XIX.

https://www.academia.org.br/academicos/francisco-otaviano/biografia

 

 

 

 

 

domingo, 2 de abril de 2023

BUCHO D'ÁGUA

BUCHO D’ÁGUA

 

 

Estava certo dia assistindo aula de zoologia, na Universidade Federal da Paraíba; curso de Zootecnia em Areia, nesse tempo de meu Deus, de dois mil e vinte e três, aula sobre protozoários; quando a professora danou na tela um slide, com uma cabra de cabelo liso, mostrando um sorriso de tristeza melancólica, uma pele de cor de jumento quando foge, nem branco nem amarelo, nem negro e nem branco. Cor de nevoeiro do nosso cariri no tempo de seca, quando o tempo se mete a enxerido e que à boca da noite, sai aquele fumaceiro que a gente não sabe donde vem.  Tinha uns moleques que diziam que era a fumaça dos cigarros fumados por comadre Fulozinha ou o Saci Pererê. A barriga do cabra parecia que por dentro tinha uma lamparina acessa, daquelas feitas com lata de óleo Dom Dom; alimentada com gasóleo que produz uma luz amarelada.

A fessora disse que aquele cabra, estava infectado pelo protozoário Schistosoma mansoni – Esquistossomose ou a tal da barriga d’água.

Pedi a uma colega que viaja de carona para Campina Grande, que me lembrasse daquela foto.

 Pois de repente minha velha memória, sorriu! Votei ao ano de mil novecentos e setenta e um. Em Penedo Alagoas, sítio Cerquinha das Laranjeiras, terra pequena e desarrumada talvez umas cinco tarefas que meu pai havia comprado. Casa muito singela, que servia de moradia ao seu Zé Vicente e família; uma velha casa de farinha ainda funcionando que os vizinhos a usavam pagando uma Conga pela farinha produzida. Muitas laranjeiras semi-sufocadas pelos enxertos de passarinhos e muitos galhos mortos. Lá pra baixo onde o rio Perucaba encerrava os limites do sítio e os alagados, tínhamos um pequeno porto e uma canoa que ainda fora incluída na compra da terra. Este rio banha os municípios de Girau de Ponciano, Arapiraca, Lagoa da Canoa, Feira Grande, São Sebastião, Igreja Nova, beirava nosso sítio e se derramava no Rio são Francisco, em Penedo. Os alagados nossos vizinhos se estendiam por muitos hectares, donde os ribeirinhos tiravam o de comer e as vezes quando sobrava vendiam nas feiras. Camarão, carne de jacaré (a macaxeira – parte da calda), pequenos peixes, e o escorregadio Mussum. Já que estamos falando também em zoologia, vou apresentar o camarada que provocou está narrativa:

 

Mussum (Synbranchus marmoratus)

 

O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada sob a cabeça. O peixe de água doce chamado Mussum é conhecido popularmente como Enguia-do-Pântano e Cobra-d’água.

Nome científico Synbranchus marmoratus.

Distribuição geográfica. Sua espécie é distribuída em todo o Brasil.

Habitat. O Mussum é um peixe que habita lagos, córregos, brejos, pântanos e rios, podendo sobreviver a longos períodos enterrado na lama.

Alimentação. É um peixe carnívoro, com hábitos noturnos, alimentando-se de presas vivas, principalmente crustáceos, moluscos e pequenos peixes, mas também insetos, minhocas e materiais vegetais.

Reprodução. O peixe Mussum, durante o período de reprodução, põe seus ovos em tocas, que servem de ninhos. Cada ninho pode conter até 30 ovos e larvas em diferentes estágios de crescimento, indícios de que este peixe produz múltiplas ninhadas, ao longo da estação reprodutiva. É o macho quem protege a prole.

Características. O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada sob a cabeça. Sua forma corporal lembra uma cobra. Seus olhos são pequenos situados bem à frente da cabeça. Sua coloração vai do cinza-escuro ao castanho, com manchinhas mais escuras esparsas pela cabeça e pelo corpo. Não apresenta nadadeiras peitorais nem pélvicas, e as nadadeiras dorsal e anal continuam com a caudal. Sua respiração também é aérea, ou seja, ele pode respirar fora da água, graças à faringe altamente vascularizada, que funciona como um pulmão. Pode atingir mais de 1 m de comprimento. (O danado também se alimenta com os pequenos caramujos já contaminados pela silenciosa e invisível pestinha que de mão em mão passava de um hospedeiro a outro indo destruir seu finalmente agasalhador.)

 

Então, entretanto, contudo e, todavia, vamos continuar a narrativa.

Todas as sextas feiras eu ia pagar os auxiliares do sítio Cerquinha e como sempre fui um bom boêmio, levava uma garrafa de Serra Negra, aguardente na moda nos anos que esses fatos se deram. Partia de Penedo em direção à vontade de tomar uma com camarão e ouvir as palestras de seu Zé Vicente, nordestino, camarada inteligente e um verdadeiro contador de presepadas matutas. Íamos até tantas horas nesses embalos fulgurais. Conversa vai e conversa vem, sempre se falava em bons tira-gostos. Por coincidência numa dessa feita, passava por nossa porteira, vizinhos que sempre entravam e nos cumprimentava, participando dos causos narrados no momento.

Mané buchudo, convidado a entrar e tomar uma das boas não se fez de rogado. Nas nossas conversas jogadas fora, sobre principalmente tira-gosto, nos convida para ir comer uma “Mussunzada” na sua casa na próxima sexta-feira.

Dito e feito na data marcada estava meu irmão Robério, intelectual até as profundas da medula e eu analfabeto que fazia raiva, fazendo o pagamento da folha do pessoal e já iniciando o ritual da pinga com camarão; quando seu Zé Vicente nos alertou do compromisso com a mussunzada, e, aí acompanhado por Geraldo (gago que só uma peste) filho de seu Zé Vicente, começamos uma descida numa escuridão que a bíblia nos diz: “Na escuridão, nós não sabemos onde estamos” em direção ao começo das águas úmidas. Caminho escuro, esburacado e apertado entre duas barreiras feitas pelas correntes d’águas, que nos invernos cada vez mais se aprofundavam.

- Boa noite seu Manoel. Chegamos! Fizemos essa tentativa três vezes, até que a meia porta se abriu e vimos sair de dentro uma figura que parecia mais um quadro do Rembrandt aqueles famosos auto-retratos. A gente de fora no escuro, e Mané Buchudo de dentro da casa, iluminado pelas lamparinas de luz amareladas, embaças e meladas de fumaça.

- Entrem, a casa e de vosmecês! Desculpem não atender logo, eu e Mariquinha estávamos entretidos ouvindo a novela no radinho. A gente estava ansioso para saber quem tinha matado a escrava Isaura.

Entramos! E vi logo de cara na parede dependurado várias estampas de santos. Conheci logo Santa Barbara, Jesus, Maria e José. São João e São Pedro mais abaixo. Ao lado esquerdo uma mesinha com várias imagens. Padre Cícero pintado de branco, porém já escurecido pela fuligem da fumaça das lamparinas. Outras imagens que no momento não lembro. Ao lado direito, várias fotos de familiares. Um calendário marcando 1971 de uma casa comercial. Ao chão num canto um pote pequeno danificado com uma touceira de comigo ninguém pode. É indicada contra o mau-olhado e para afastar a inveja. Também protege o lar de energias negativas e de pessoas mal-intencionadas. Só queria saber quem iria ter olho grande numa situação de pobreza medonha como aquela.

Passamos para o outro cômodo anexo ao primeiro. Uma mesa, quatro tamboretes, um pote com um caneco de alumínio dependurado. Um fogão a lenha, aceso e panelas debruçadas sobre o cujo dito. A camarinha ficava ao lado esquerdo separado por um cortinado de tecido cor e marca indefinidas. Ao lado do fogãozinho corajoso e teimoso quase se desmanchado, uma porta que dava saída para o terreiro. Não havia janelas.

Foi o que me lembro e que a maldita da Covid teve pena.

Sentamos à mesa. Os três visitantes e o dono da casa, a patroa continuava na peleja das panelas. Coloquei em cima da mesa a garrafa de cana e uns limões, esperando o dito tira-gosto. Sem muitas delongas, dona Mariquinha danou uma panela de barro recheada de mussum, cozinhado ao molho de água do velho Perucaba, temperado com Schistosoma, sal e não sei o que mais diabo a quatro. Esparramou em cima da mesa pratos de ágata meios pinicados pelo uso. Acho que era a melhor louça de casa, só para os visitantes. Vários copos de vidro e alumio e uma frasco usado de Bromil à guisa de pimenteira.

Começamos a peleja. Caras feias na hora de tirar o gosto da maldita cana com o desconhecido peixe. Mas, mesmo assim fomos emburacando a cana e o tal petisco. Acabou a pinga e o escorregadio, como chamavam os índios de antigamente.

Conversa vai, conversa vem, saiu o assunto de doenças.

- Estão vendo meu estado? Morto, quase morto. – disse seu Mané. Não tenho mais força para nada. A danada da maleita chega devagarinho à boca da noite e deixa o cabra destinhorado. Além de queda coice – mostrando a barriga enorme – e mais essa peste de bucho cheio d’água que parece que carrego um bruguelo de bode. Aqui em casa só se fala em mazela. Fui ao doutor e o homem não resolve nada, só fica passando cachete do tamanho de uma bolacha que pra descer tenho que tomar meia quartinha d’água. Não sei mais o que vou desarnar para resolver minha vida.

Nisso, meu irmão Robério disse em cima da bucha. Rindo como sempre fazia suas presepadas para animar a turma.

- Oxente e Grijalva já não é quase um médico. Vai lhe receitar e dizer com certeza a causa desse incômodo. Veio mesmo a calhar a gente vir comer o mussum. Só assim o senhor vai ficar bonzinho.

O que a cachaça não faz nas pessoas. Eu apenas tinha feito o vestibular para medicina na Universidade Federal de Pernambuco e estava aguardando vaga. Tínhamos ficado quinze estudantes de fora esperando um lugar ao sol ou como era chamado na época, de excedente. A classe só permitia trinta vagas. No final, após muita luta não conseguimos o intento.

Mas como se diz que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, não contei conversa e fui logo mandando o buchudo tirar a camisa e comecei a apalpar a pança que alumiava mais do que um balão de sopro. Passei meia hora examinado e diagnosticando o pobre do amarelo. Dei minha abalizada opinião, passando umas meizinhas; folhas de losna, boldo, chá dente de leão e agrião d’água (já que o assunto estava sendo apreciado) e logo nos despedimos; deixando muitas esperanças em todos de uma cura milagrosa.

Tentamos planejar a volta para Cerquinha da Laranjas. A escuridão era total, nem sinal de estrelas. Apelei para ver as Três Marias, estrelas pertencentes à constelação de Órion, uma constelação que fica completa no nosso céu, durante toda a noite, para nos guiar. Nada. Breu total. Geraldo então teve uma ideia. Pediu emprestado um velho pangaré para nos levar de ladeira acima. Selaram o bicho e com muita luta subimos no Rocinante. Robério que era mais velho foi na sela e eu na garupa. Geraldo com mais conhecimentos geográficos, puxando pelo cabresto velho pé de pano. De vez enquanto eu descia forçosamente pela garupa e danava o espinhaço no chão duro. Acho que aquelas quedas ainda hoje me acompanham com dores insuportáveis de herança, que fiquei como seu beneficiário. Gritava que tinha caído e a caravana parava para me recolher com muita dificuldade. Esse tirinete aconteceu umas três vezes antes de vislumbrar a nossa salvação. Pegamos o Jeep e finalmente fomos para nossa casa em Penedo.

Semana seguinte voltamos para fazer o pagamento do pessoal como de costume. Os cumprimentos costumeiros, as perguntas sobre o andamento do plantio de maracujá, O que tinha de frutas para levar para minha mãe e claro, tomar uma garrafa de pinga com o velho camarão, que dona Cícera ia mosquear.

- O homem morreu, e já foi enterrado – disse seu Zé Vicente, de supetão.

- Que homem seu Zé?

- Seu Manoel Izidoro.

Ai Geraldo, gaguejando disse - também depois de tanto aperto e mexida naquele barrigão, não tinha diabo que aguentasse. Espoucou!

Ficamos sem jeito e com medo de sermos parcialmente responsável pelo ocorrido. Acabou a vontade de tomar a aguardente com camarão, pimenta e muito limão. Com a boca cheio d’água, dissemos até logo e fizemos meia volta e nunca mais consultei ninguém. Pelo menos que tivesse infectado pela esquistossomose e nunca mais comi tira-gosto de mussum...