sábado, 17 de fevereiro de 2024

SOU RICO NA PARAÍBA - BLOG DO GRIJALVA MARACAJÁ HENRIQUES CONTANDO HISTÓRIAS

 

SOU RICO NA PARAÍBA

 

Zé Cilibrina, cabra metido a namorador, ainda novo, lá pelos dezesseis anos mal vividos. Vivia às custas dos pais e de vez enquando, trabalhava pegando um bico aqui e acola no município de Jardim Ceará. Seu pai desde cedo lutava nos trabalhos dos engenhos de rapaduras que ali tinha demais.

O bicho arranjou uma namorada das bandas da rua, Cacete Armado. Lugar onde após o sol se pôr por cima das Cacimbas, o pau sempre quebrava. Tinha sempre famílias honestas e honradas morando nas vizinhanças. Mas, fama é fama. Muitas mocinhas desmanteladas tiravam onda de “Flor do meu Bairro”.

Porém, seu Marcolino e dona Juventina, batiam o pé e não aceitava aquela história de ter uma nora nascida e batizada num ambiente de tanta promiscuidade. Onde a cana, a zinebra, o vinho de jurubeba, o aluá e até a famosa gengibirra se esparramava pelos becos fecundos e infinitos, alegrando, no começo e depois vinha os acertos de contas dos desatinos relembrados.

Como podia uma moça criada nesse meio ser uma boa esposa. Não! Tinha que tirar Cilibra, como era carinhosamente chamado pelos familiares, desse abismo incomensurável.

Todas as noites, após os labores da luta improfícuas na terra mãe, ia até a bica mais próxima, se banhava na cabeça e os pés, comia um arrozinho, às vezes com pequi e se danava para a rua, a procura do seu amor.

O danado do menino tinha um medo de alma condenado, aí sua tia Jurbeli, teve uma ideia macabra.

- Pessoal, vamos preparar um medo nesse danado que nunca mais ele sai à noite.

Todos acharam uma boa ideia, por enquanto.

Seu Marcolino combinou que na volta da rua iria ficar de tocai na vereda, em baixo de uns pés de burras leiteiras, mulungus, seriguelas, dos dois lados, formando de dia uma boa sombra, mas a noite, para o medroso era temeroso passar sem se benzer e rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria para o Padim Cíço. Até diziam que ali, em tempos passados um cabra havia morrido de uma queda de burra que empancou e cismou em passar, como diz a história que animal vê alma de outro mundo.

 Seu Marcolino na hora determinada, desceu para o local assombrado, vestido por cima da roupa um lençol branco, um velho chapéu preto e ficou a escuta do filho querido.

Cilibrina depois dos arrochos na namorada, agoniado pela hora avançada, partia, meio cismado, em direção a casa velha amarela dos pais. Ao se aproximar do local fatídico, começou logo a rezar debulhando seu rosário azul e branco comprado em Juazeiro. No local onde era, diziam que antigamente existia uma velha cruz, fechava os olhos e de peito aberto, respirando forte, acelerou os passos, quando de repente, seu pai sai de trás dos troncos velhos e enrugados, fazendo um latomia dos infernos.

O cabra cai de joelhos e grita:

- Não me mate, sou rico na Paraíba e tenho um caminhão rodando no sul.

 

 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

UM AMIGO DE INFÂNCIA

 

UM AMIGO DE INFÂNCIA

Do livro Memórias e Memórias Inacabadas de Humberto de Campos.

                NO dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas úmidas e avermelhadas, as quais eram como duas joias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre. – Mamãe, olhe o que eu achei! – grito, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o monstrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida. – Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no fundo do quintal, longe da cerca... Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou. O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze 136 Humberto de Campos anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmão de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio, e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da Chegança, que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba: Assobe, assobe, gajeiro, naquele tope real... Para ver se tu avistas, Otolina, Areias de Portugal! Mão direita aberta sobre os olhos como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintais vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão São Caetano: Alvíssaras, meu capitão, Meu capitão-general! Que avistei terras de Espanha, Otolina, Areias de Portugal! A memória fresca e límpida reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas da Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido nas ondas. E eu, sugestionado pela imaginação, via – eu via! – as vagas Memórias 137 rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal. Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho ipsilon marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antônio de Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço, tristemente, do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte. Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa correlhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio. – Adeus, meu cajueiro! Até à volta! Ele não diz nada, e eu me vou embora. Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em São Luís, homem-menino, lutando pela vida, enrijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: “Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças...” há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir nem viajar... Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua ideia. 138 Humberto de Campos E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, do quintal em que havíamos crescido juntos, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz? Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras morenas. É um cajueiro moço e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal. Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste: – Adeus, meu cajueiro! O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Gulliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo. – Meu cajueiro, aqui estou! Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem: ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão! – Adeus, meu cajueiro! E lá me vou outra vez e para sempre, pelo mundo largo, onde hoje vivo, como ele, com os pés na lama, dando, às vezes, sombra aos porcos, mas, também, às vezes, doirado de sol lá em cima, oferecendo frutos aos pássaros e pólen ao vento, e, no milagre divino do meu sonho, sangrando resina cheirosa, com o espírito enfeitado de flores que o vento leva, e o coração, aqui dentro, cheio de mel, e todo ressoante de abelhas...