UM
AMIGO DE INFÂNCIA
Do livro Memórias e Memórias
Inacabadas de Humberto de Campos.
NO
dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba,
em 1896, toda cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a
natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando
os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o
calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo
vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo o caule parecia mais um verme, um
caramujo a carregar a sua casca do que uma planta em eclosão. A castanha
guardava, ainda, as duas primeiras folhas úmidas e avermelhadas, as quais eram
como duas joias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre. – Mamãe, olhe o que
eu achei! – grito, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o
monstrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida. – Planta, meu filho... Vai
plantar... Planta no fundo do quintal, longe da cerca... Precipito-me, feliz,
com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço
com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de
pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a
irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que
tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas
folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada
uma, estirada e limpa, é como uma língua verde móbil, a agradecer-me o cuidado
que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou. O meu
cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais
rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos
um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente,
elegante, graciosa. Quando eu completo doze 136 Humberto de Campos anos, ele já
me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo,
experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem
que embalasse nos braços o seu irmão de leite. Até que, um dia, seguro da sua
rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio, e, todas as
tardes, lhe subo ao galho mais empinado onde, com o braço esquerdo cingindo o
caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da Chegança, que
é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba: Assobe, assobe,
gajeiro, naquele tope real... Para ver se tu avistas, Otolina, Areias de
Portugal! Mão direita aberta sobre os olhos como quem devassa o horizonte
equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintais vizinhos, as vacas do
curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio
respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a,
como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas
velhas, enfeitadas de melão São Caetano: Alvíssaras, meu capitão, Meu
capitão-general! Que avistei terras de Espanha, Otolina, Areias de Portugal! A
memória fresca e límpida reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens
épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com
que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus
caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas da
Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de
brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja,
estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a
sensação de um mastro erguido nas ondas. E eu, sugestionado pela imaginação,
via – eu via! – as vagas Memórias 137 rolando diante de mim, na curva do
horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de
Espanha, e areias de Portugal. Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de
cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona
Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais
saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o
estribilho ipsilon marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antônio de
Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o
milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na
terra, desço, tristemente, do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o
oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não
tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a
lição do dia seguinte. Aos treze anos da minha idade, e três da sua,
separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na
hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu
tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa
correlhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros
cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com
frio. – Adeus, meu cajueiro! Até à volta! Ele não diz nada, e eu me vou embora.
Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino
lenço verde agitado em despedida. E estou em São Luís, homem-menino, lutando
pela vida, enrijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no
sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de
minha mãe: “Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São
os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda
lembranças...” há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o
Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a
Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas,
ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com
os galhos furiosos, e não pode fugir nem viajar... Recebendo a carta de minha mãe,
choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua ideia. 138 Humberto de Campos E
choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também,
raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, do quintal em que havíamos
crescido juntos, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?
Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar
sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco mas ele se embala, contente, à
música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que
oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro
pálido para as pipiras morenas. É um cajueiro moço e robusto. Está em toda a
força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal. Um ano mais, e
parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste: –
Adeus, meu cajueiro! O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de
espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a
fragilidade do capitão Gulliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E
eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu
amigo. – Meu cajueiro, aqui estou! Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem:
ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia,
modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos ultrapassam
a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso,
às galinhas sem dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco
fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um
porco... Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em
baixo, a vasa e a podridão! – Adeus, meu cajueiro! E lá me vou outra vez e para
sempre, pelo mundo largo, onde hoje vivo, como ele, com os pés na lama, dando,
às vezes, sombra aos porcos, mas, também, às vezes, doirado de sol lá em cima,
oferecendo frutos aos pássaros e pólen ao vento, e, no milagre divino do meu
sonho, sangrando resina cheirosa, com o espírito enfeitado de flores que o
vento leva, e o coração, aqui dentro, cheio de mel, e todo ressoante de
abelhas...