PADRE CAPETA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901
– 16/04/2003)
Capeta estava
ordenado e nomeado vigário do Município Pau Seco, cujo padroeiro era Santo
Ambrosio. Não gostou muito da decisão do senhor bispo, mas era de praxe não
nomear padre para a sua cidade de origem, pois dificultava muito a arrecadação.
Compadres, amigos, parentes, sabe como é, querem as coisas no mole. Padre
Capeta terminou conformado. O senhor bispo estava certo.
Foi recebido em
Pau Seco debaixo de passeata e discursos elaborados pelo professor Cezarino.
Aquele primeiro encontro, com o seu rebanho anunciava boas perspectivas. Tudo
aparentava um povo bom e generoso. A generosidade era o principal. A casa
paroquial estava pronta. Móveis modestos, mas o suficiente para instalar-se com
dignidade e certo conforto. Lá encontrou uma doméstica, cozinheira e
arrumadeira ao mesmo tempo, escolhida pela dona Cirene, zeladora principal da
Igreja. Mulata enxutona, sadia e diligente, considerada um modelo de todas as
virtudes morais. Padre Capeta bem o merecia. Apenas fazia certa restrição aos
dotes morais.
Não precisava ser tanto assim, aquele modelo, ou
aquele exemplo de dignidade. Achava um exagero ou um excesso de zelo. Em todo o
caso o tempo se incumbiria de demonstrar como se arranjariam.
Com pouquíssimo dinheiro, quase nenhum, ou melhor,
trazendo, apenas o pouco que o pai lhe pode dar. Padre Capeta, aliás, padre
Antonio Cordeiro, teria que poupar a pequena reserva até que os fies se
lembrassem dele. E teve sorte. O primeiro domingo de sua estréia, contou com
catorze batizados, e a encomenda de um defunto para a segunda-feira. Menos mal.
Já ia dando para aliviar a situação apreensiva. Teria que preparar festas e
leilões para atrair os católicos e garantir a sobrevivência. O ambiente estava
favorável. Já há muito meses, a freguesia estava sem padre e havia fartura no
Sertão. Por outro lado, sertanejo gosta de festa e não tem pena de gastar. Pois
sim. Iriam ter festas e leilões, novenários et cetera e tal. Padre Capeta fazia
os seus cálculos, sem muito otimismo e via que a coisa valia, faria uma limpeza
parcial na igreja para demonstrar o seu zelo pelas coisas da igreja e no mais
seria um fiel procurador do padroeiro, inclusive para a aplicação dos
rendimentos. Aliás, padre Capeta analisou friamente o assunto e chegou sem
canseira a uma conclusão muito lógica. Santo não tem em que usar dinheiro. Não
come, não bebe, não vai à festa (às vezes é levado), não tem mesmo em que usar
dinheiro, o vil metal, coisa material demais para preocupar Santo Ambrosio.
Estava, assim, tomada a decisão. Poupar o padroeiro dessa coisa suja que é o
dinheiro. Capeta lhe daria destino... Adequado.
II
Para todos os efeitos, em Pau Seco, padre Capeta
era padre Antonio Cordeiro, ou simplesmente padre Antonio. O apelido ficara
para trás. Cara de santo, não se envolvia com coisas que estivesse fora do
terreiro eclesiástico. Não exteriorizaria suas reais intenções. Para isso havia
passado tanto tempo no seminário estudando teologia e filosofia. Seminarista
pobre, privado de ter uma vida igual à de muitos dos seus colegas, cheios de
grana, sempre com batinas novas, sapatos caros, muitos livros, relógio fino de
algibeira.
Padre Antonio dormia e comia pensando numa
desforra. Havia de ter todas aquelas coisas boas que a pobreza lhe negara. Não
se esquecia do sapato que se furara sem ter outro para calçar; até que pudesse
comprar outro, teve que mandar o sapateiro dar um jeitinho, costurando. Olhava
para aquele remendo, humilhado. Tinha a impressão que os colegas nem olhavam
para ele, mas somente pra aquele sapato preto, e surrado. Lembrava-se também da
alegria que teve quando o pai lhe mandou um dinheirinho pra comprar um par
novo. E, então, como o Capeta gostaria que todos olhassem para os seus pés,
enfiados naquela belezinha de sapato que lhe trazia lustroso. Tinha sido um dos
momentos mais felizes e inesquecíveis de toda a sua vida de seminário.
O que ainda lhe salvara, eram as suas boas notas e
a sua facilidade na oratória. No treinamento dos sermões é sempre elogiado. O
bicho, imaginoso e eloqüente, despertava a atenção. Mesmo assim, notava que
alguns pareciam morrer de inveja. O seminarista Adriano era um deles. Cheio das
granas, filho de família rica, andando como um príncipe, não perdia tempo para
uma indireta. Podre de inteligência, ou, em boas palavras, burro até as
orelhas, e por isso sempre com notas baixas, procurava livrar-se de suas
limitações ostentando riqueza. Quando era escalado para falar, era um Deus nos
acuda. Só saia besteira. Trocava o nome dos santos, dizia a silabadas,
gaguejava, ficava vermelho como um camarão de água doce e sempre levava um zero
em oratória. O professor certo dia lhe disse:
– Adriano,
estuda menino, imita o teu colega, Antonio Cordeiro. Como é que tu vais pregar
depois de ordenado.
- Dá-se um jeito padre. O Capeta é um decorador.
Tem boa memória e pronto. Mas eu tenho dinheiro. Vamos ver quem vai valer mais,
se as pregações dele ou o dinheiro de papai. “Vamos ver quem vai fazer melhor
carreira”. Tão arrasado como ele é, se não tivesse ao menos jeito para enrolar
o povo, o que seria dele.
- Enrolar, não. Convencer, catequizar, seu tapado.
- É a mesma coisa. O importante é entrar o dinheirão.
- Se o Reitor ouvir essa tua conversa, vai te
mandar de volta ou pelo menos dar-te uma boa suspensão. A missão do clero é
pregar a religião incutir a fé católica em nossos semelhantes. Tudo indica que
vais ser um usurário.
- Meu padre, o cabra sem dinheiro não vale nada.
Isso é o que papai diz todos os dias lá em casa, e por isso me mandou pro
seminário. Viu que eu não tinha jeito para outra coisa e decidiu:
- Vai menino. “Lá só se fores burro e besta demais”.
- Pois é,
estou aqui e sei que me sairei bem. Tenho é pena do Capeta. Sermão e mais
sermão bonito, vai se esquecer do resto e morrer de esmola.
- Dinheiro leva as pessoas à tentação, Adriano; e a
esquecer de Deus, da religião, das coisas santas e sagradas. O sujeito vira
materialista e somente pensa em gozar a vida. Depois, quando quer se arrepender
é tarde. Aqui nos estamos de passagem. A verdadeira vida é a vida eterna, lá no
azul do céu.
- Está muito bem. Respeito à sabedoria do senhor.
Mas, pode-se ter dinheiro e ir para o céu também.
Veja padre, sem dinheiro, não se pode nem ser
batizado, nem mandar celebrar uma missa em salvação da alma. Também não pode
casar. Ou arranja os cobres ou morre pagão, sem as graças de uma missa e
solteirão, padre não faz nada de graça.
- Não adianta conversar contigo. Mas sei que as
tuas convicções são outras. Dinheiro é bom e necessário, mas não abre as portas
do céu.
- Depende da maneira de usar a chave...
- Vai tomar banho. Pra isso tu não és burro.
- Quando se fala em dinheiro, me dá um estalo na
cabeça...
Padre Quintino, deu uma risadinha, bateu no ombro
do seminarista e saiu, resmungando: – O bicho só é burro para um lado. Para o
outro é vivo demais. Vai chegar a bispo muito cedo.
Capeta de sapato novo criou novo ânimo. Pisava com
força como se quisesse chamar a atenção. E no fim do ano, durante as férias, a
mamãe mandou fazer uma batina nova e comprou outro par de sapatos, camisas,
escova de dente, pasta, a final um enxoval quase completo. Havia juntado um
dinheirinho para isso. Capeta voltou aos estudos de cabeça levantada. Como era
tão boa aquela mãe tão pobre. E fizera um juramento. Depois da ordenação,
quando pegasse uma paróquia, iria lhe dar tudo quanto pudesse. Fazer da
bodeguinha do pai, uma mercearia sortida. Tinha fé no Criador de que nada iria
faltar. Queria vê-los tranqüilos, despreocupados e dando graças a Deus pelo
filho que possuíam; padre Antonio Cordeiro.
A primeira missa, rezada em Pau Seco foi um
sucesso. Não pela missa propriamente, mas pela eloqüência do menino. Imagens
bonitas, palavra fácil, comparações admiráveis. A igreja repleta a ouvir em
profundo silêncio e em comovente admiração.
- Bem que te dizia Crispim, que o Capeta era muito
inteligente. As diabruras que fazia eram um sinal. O físico o ajudava. Chamava
atenção. Alto, cabelos pretos, repartidos de lado, rosto de homem, um tanto
anguloso. Somente os olhos destoavam um pouco. Um tanto miúdos e típicos das
pessoas ardilosas.
Muita gente chorou, não apenas pelas passagens do
evangelho, relembradas com tanto colorido, mas pelo fato de estar ali o Capeta
que muitas achavam que não iria dar para nada. Batina novíssima, colarinho duro
e lustroso, gesticulação natural e convincente. Os dedos angulosos completavam
o vigor espiritual, quando apontavam para o céu ou se dirigiam aos fieis.
- Não, não podia ser aquele menino peralta que
levava o tempo a contar casos engraçados e a mexer com a vida de todo mundo. Só
poderia ser um milagre.
Não sabiam que Capeta planejava a sua vida e tinha
que usar os dons que Deus lhe dera para cobrar-se de tudo quanto havia sofrido.
Seria honesto com a profissão, isto seria, mas sem bancar o besta. Aquele
sapato furado e costurado de seu tempo de seminário, ainda lhe doía na memória.
– “Não vou explorar ninguém, mas terei que usar de toda a sabedoria dos Evangelhos.
Lá estava uma sentença maravilhosa. “Ajudai ao teu próximo”. Não tinha fazenda,
não tinha dinheiro, e o pai vivia de vender bugigangas para viver e educá-lo.
Profissão é profissão. Seria habilidoso e honesto. Iria salvar muitas almas,
mas teria que salvar-se também. E dizia: “Amai ao próximo como a ti mesmo e
ninguém é mais próximo de mim do que eu mesmo”. Pois sim!
Padre Capeta tomou conta de sua freguesia. Depois
da recepção e de haver completado sua instalação, meteu mãos a obra. Percorreu
todas as capelas da paróquia, celebrando missa, batizou, casou, fez
impressionantes sermões e voltou com algum dinheiro no bisaco. Começava bem e
pedia a todos os santos que o ajudassem. Tinha, aliás, certeza disso. A coisa
estava indo mais fácil do que esperava. Montava bem a cavalo e, acompanhado do sacristão,
Seu Carlindo, como era conhecido, não se enfadava de percorrer a sua paróquia,
nos dias prefixados. Em casa, recebia sempre presentes. Galinhas gordas,
capões, doces, perus, frutas e muitas coisinhas interessantes. Visitas não lhe
faltavam. Bom conselheiro, sem deixar de ser alegre e popular, ia tornando-se
uma espécie de ídolo do povo. Pretendeu que os pais viessem morar com ele.
Recusaram-se, sobretudo na esperança de que um dia seria vigário de Riacho
fundo e então estariam juntos. Nascidos e vividos em Riacho fundo, não seria
fácil acomodarem-se em ambiente novo. Ali estavam os velhos conhecidos, os
amigos, os compadres, a freguesia da vendola.
- Depois, meu filho, depois.
Capeta conformou-se. Na verdade, uma mudança de
ambiente, naquela idade poderia causar transtornos. Só que não gostava daquele
isolamento, de viver naquele casarão durante a noite, apenas em companhia da
mulatona Conceição... Mas era o seu destino de padre. Tinha, é verdade, certo
receio daquela companhia proibida pelas leis canônicas. Procurava
distanciar-se, mas tinha o diabo, para atentar. E lá vinham as insônias, os
sonhos doidos que as benzeduras e as rezas não conseguiriam evitar.
Rememorava a vida de outros colegas que não conseguiram
escapar às tentações do demônio. E a coisa vai indo, indo, até que certo dia,
padre Capeta percebeu olhares cobiçosos de sua fornida cozinheira-arrumadeira.
Tomou o breviário e rezou. Mas enquanto os olhos corriam sobre os textos do
livro sagrado, os pensamentos galopavam noutra direção. A mulata Conceição
metia-se nas entrelinhas do breviário, como uma pulga no cós da cueca. Dias e
dias nessa agonia.
Conceição rebolava-se e desafiava. Certo dia não se
conteve. Entrou no quarto de padre Capeta, pretextando saber se não queria
alguma coisa.
- Percebi que o senhor estava acordado e pensei...
- Em que Conceição?
- No senhor. Poderia estar desejando alguma
coisa...
- Não, conceição. Insônia, só insônia.
-Insônia é sinal de alguma coisa que está acontecendo.
Quem sabe. Sei de muito remédio bom para certas insônias.
- Vai, vai, Conceição, disse em palavras arrastadas
pela emoção.
- Padre Capeta eu também estou com insônia. E foi
se chegando para mais perto e não resistiu. Sentou-se à beira da cama. Padre
Capeta fechou os olhos, tentando rezar, livrar-se do demônio das tentações. Mas
a reza não funcionou.
- Doidinha...
- Bobão...
A noite se foi, deixando saudades. O domingo
amanheceu com um colorido diferente aos olhos do padre Cordeiro. Abria-se
diante dele um mundo até então desconhecido, o mundo do pecado e da felicidade.
Não atinava por que se proibia um remédio tão bom para insônia.
O sermão desse domingo foi cheio de inspiração.
Versou sobre “crescei e multiplicai-vos”. Padre Capeta passou a sentir-se um
homem realizado e deu adeus às insônias.
Tinha aberto as janelas que o separavam da vida
real. Considerava, então, que o Seminário era uma escola de frustração. E
perguntava a si mesmo porque se proibia um ato natural, permitido no Paraíso.
Aliás, mais do que isso. Adão estava só quando lhe entregaram Eva, de mão
beijada.
Pau Seco era agora uma terra abençoada. Vigário
simpático, virtuoso, diligente incentivador. Em seus sermões e nos contatos
diários com o povo, indicava soluções para os problemas de sua paróquia. Mais estradas,
limpeza da cidade, escolas, aulas de catecismo, e tudo quanto poderia influir
para elevar o nível social da terra de Conceição. O coronel Pantaleão, chefe
político e fazendeiro rico, dava-lhe todo apoio. O que Capeta dizia era um decreto
e não admitia opinião contraria. O homem tinha vindo da capital e sabia onde
botar o nariz. A oposição também acatava, procurando obter a simpatia do
vigário. Já não se pensava mais nos partidos, mas somente no padre Cordeiro.
Sabiam que para onde ele pendesse estaria à vitória.
Mas padre Capeta fazia-se de desentendido. Nenhuma
atitude que o pudesse comprometer. E assim, quanto mais gente ao seu lado,
maiores os frutos de sua roça. Os leilões que fazia davam alto rendimento. As
disputas nas arrematações esquentavam de festa para festa. Os da oposição
empenhavam tudo para derrotar o partido do governo. Certa feita um sabonete e
um pratinho de bolos de bacalhau foram arrematados por uma fortuna. O leiloeiro
indicado por Capeta sabia manobrar a coisa. Atirava um em cima do outro, em tom
de brincadeira. – Quem comerá esse pratinho de croquetes de bacalhau, oferecido
pela moça mais bonita de Pau Seco, a rainha da festa? Foi um Deus nos acuda.
A oposição arrematou-o. Os filiados deste partido
haviam se combinado. Um fazia os lances e todos pagavam. Quando o coronel
Pantaleão soube da tramenha ficou danado. Que aguardassem o próximo leilão. Cachorrada,
cafajestada. Padre Capeta evitava comprometer-se. Tratava a todos igualmente. O
seu partido era o da Igreja.
Em represália o coronel Pantaleão ofereceu depois
uma novilha raceada ao padre Capeta. Ficaria lá mesmo em sua fazenda. – Já
estava ferrada, padre. Essa cambada da oposição é cheia de manhas. Viu o
senhor, juntou-se todo mundo para me desfeitear. Mas da próxima vão ter de
frente o cel. Pantaleão. Cabras de peia!
- É coronel, não se preocupe com isso. Dessa forma
deram uma boa contribuição à Igreja. Se não fosse o senhor, o que poderia valer
um croquetizinho de bacalhau.
- É isso mesmo padre Cordeiro. O senhor tem toda
razão.
Mas os comentários corriam lá fora.
- Derrotamos o coronelzão. Abriu fora. Da próxima
vez vamos apertá-lo mais ainda.
O coronel preveniu-se. Iria mostrar. Poderiam se
danar, mas sairia na frente. Só mesmo mandando capar aqueles manhosos. O outro
leilão vai chegar...
Para padre Capeta, a festa tinha ido além do que
esperava. Depois de tudo apurado, divulgou o quanto rendera e em que iria
aplicar. Os cálculos já estavam feitos. E fez uma porção de coisas. Precisava
adquirir a confiança dos fieis. Certamente que não iria deixar o padroeiro liso.
Tinha que guardar um pouco, pensando no futuro, nos imprevistos. Santo Ambrosio
não poderia ser apanhado de surpresa. Muitas coisas acontecem imprevistamente...
De qualquer forma a igreja estava toda alvinha e de portas pintadas.
- Estão vendo aí. Isso é que é vigário. O padre
Sebastião já estava aposentado. Velho de mais. Deixava tudo aí. Não se lembrava
mais de nada.
- Caduco, uma ova.
Olha lá o fazendão e os currais entupidos de gado e sempre comprando
mais. Chegou aqui que não possuía um pau para dar num gato.
- E fez muito bem. De família pobre ajeitou todo
mundo e preparou-se para a velhice. A maior tristeza do mundo é não ter nada e
ficar velho sem ter arrimo. Economizou comprou fazenda mais salvou a alminha de
muita gente. E depois sempre foi um vigário honesto, um santo. Casava, batizava
e davam-lhe o que queriam. Tinha que juntar. Ele sozinho, sem o direito de ter
uma família. Coitado. A vida toda comendo só, dormindo só, sem mulher, sem
filhos, naquele casarão.
Padre capeta não brincava em trabalho. Fazia o
quanto podia para libertar-se de certos carolismos. Rezar nas horas certas.
Nada de andar enfiado no rosário ou de breviário na mão repetindo a mesma lengalenga
de sempre. Chega enjoava. Os santos não tinham um momento de folga com tanto
peditório. Padre Cordeiro fazia, sim, suas orações nos momentos adequados e que
ele considerava quase como obrigatório. No mais teria que cuidar de outras
coisas de interesse seu e do rebanho que apascentava. Lia, lia muito os
melhores autores e esmerava-se em sua oratória. Gostava mesmo de enriquecer os
seus conhecimentos filosóficos.
Chegava a observar que muita gente ia à Igreja mais
para ouvi-lo falar do que propriamente para rezar. Isso alimentava sua vaidade
de pregador. Em qualquer solenidade, mesmo política, não tinha conversa, tinha
que ser o orador. Isso lhe dava renome. Era chamado para as pregações em outras
freguesias.
E comentavam-se. – esse padre Cordeiro não é
brincadeira. O bicho tem quengo pra valer. E como é diferente do padre Sebastião
que só sabia ler os livros santos. E quando a coisa era em latim, quem sabe se
lia certo. Dizem que já saiu velho do Seminário. Sempre repetindo anos.
Coitado, também a cara não dava para enganar. Chaboqueirão, paradão, lerdo como
uma toupeira. Até para dar bom dia, era arrastando, como se as palavras
estivessem grudadas na língua. Em todo caso era um homem bom. A diferença agora
era grande. Padre Cordeiro, ágil, de língua solta, comunicativo, um verdadeiro ás.
- Está muito novo aqui, para se saber que apito ele
vai tocar. O bicho é esperto, está se vendo. Cabra desenrolado mesmo. Talvez
dure pouco por aqui. Sabido como é, vai ser logo promovido a cônego, monsenhor,
bispo, sei lá. É padre para capital, cidade grande onde sempre vão parar os
mais espertos. Pelo interior fica somente o refugo. Em matéria de sabedoria.
- Pois sim. As coisas estão mudadas. E o bicho é
daqui mesmo do sertão. Vai se meter logo com fazendas, criar bois, empanturrar
os bolsos de dinheiro, meter-se na política.
- Vais ver. Aquilo se quisesse ficar na capital
teria ficado. Foi chamado para ensinar no seminário e cadê que quis. Dizem que
na terra dele, quando era garotão tinha o apelido de Capeta. Não podia ser boa
coisa. Falam também que no seminário era um Deus nos acuda, quase botava todo
mundo a perder. Só não foi expulso por que era muito inteligente. Bom orador e
bom aluno.
Capeta, conheci-o já velhinho, fazendão de gado,
ovelhas e cabras, sadio como um filhote de onça cheio de afilhados, bebendo
bons vinhos e a família desforrando-se das durezas do passado.
Fim.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.