quinta-feira, 27 de junho de 2013




GNÓSTICO BRONCO


Zé Cachorro da Silva*




É uma diátese e é uma síntese da paranóia atávica, o misticismo vesânico
Na fase persecutória, remotíssima do anacronismo palmar, onde os cilícios
Surgem, os Ofiolatras seguidos dos Maniqueus bifrontes e os Encratitas
Abstinentes e macerados de flagícios histéricos e hiperbólicos; se perdem

Em farândola as mândrias e os ascetas em esdrúxulas truanescas melopéias,
Trazendo as camândulas como hégira e numa estratificação étnica e anticlinal,
Surge adstrica e telúrica os malacopterígios numa aleluia virginal;
Pondo no estercorário, o epitalâmico e a ignomínia extremamente anatômica.

Vem daí, então, na concupiscência da hipergênese a solapar eurrítmico,
No adstrito profundo a sua volicional desejo telúrico e ufano,
De estertora-se cada ver mais sobre os glóticos e nos fonemas indiossincrásios.

Nos antiperistálticos desencontros, surge quase que indômitos, e, incógnitas
Os delirium-tremens; vejo-me então no inexorabilíssimo antropomorfismo,
Meu encontro no transcendentalismo flucro, a rutilância perpétua do que sou!

*Poeta e doido de pedra!


sexta-feira, 21 de junho de 2013





ALBERTINA*



João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)




     Cidade grande, com as portas abertas para o mundo, sem se preocupar com os que chegam ou saem. A vida de cada um era problema de economia privada ou doméstica. O corre-corre durante o dia entontecia aquela multidão insaciável e gananciosa procurando um lugar onde cair vivo. 
     Albertina, moça do interior de estado distante, sonhava ilusoriamente com as maravilhas de uma metrópole. Ali existia lugar para todos, inclusive, amor.
     Muito nova ainda, Albertina apaixonou-se se tornando mulher sem água benta e sem juiz. E foi aí que ambiente passou a ser pequeno para ela. Por onde andava tínhamos olhos dos curiosos atravessando-lhe as carnes e a alma. - “Moça perdida e louca”. Arrumou a sacola e sem se despedir de ninguém sacudiu as asas como uma andorinha desgarrada. Iria mostrar quem era e para quanto valeria o seu corpo jovem e ardente. 
     Não teria dali por diante, que dar satisfação à sociedade e a parentes. Cada um que fosse viver sua vida, honestamente ou como bem entendesse. Rio de Janeiro. Refugio para Gregos e Troianos.
     Desceu do navio já quase sem dinheiro, mas isso era fácil de ganhar, sem grande esforço. Bastaria mostrar-se, exibir os seus quarenta e oito quilos de carne bem arrumada. Um motorista de praça lhe daria as dicas. Era gente que deveria saber de tudo. E, assim, foi levada para um bordel vagabundo, da pior laia.
     Bordel freqüentado pela malandragem de baixo calão; lá mesmo pagou a corrida do táxi. E como não suportou o ambiente, mudou-se para uma pensão quase igual. As veteranas tinham ciúme de Albertina por saberem que gente nova sempre era mais disputada. Não suportou mais que uma semana. Já com algum relacionamento transferiu-se, de parceria, para um quarto alugado de uma companheira. Por mais que aparentasse solidariedade, não deixavam no íntimo, de ser rival. 
     À noite e parte dos dias freqüentavam os cabarés, e, noites havia que retornavam sem um níquel. Casa cheia de mulheres de toda espécie e poucos acompanhantes. Alguns iam ali, só para beber, matar o tempo na companhia das garotas, o que lhes causava desapontamento. Albertina estava espantada com a vida fácil. E o pior era não ganhar o suficiente para alimentação, aluguel e adereços. 
     Sem uma boa apresentação ficaria isolada, recantada e desacompanhada. A concorrência vinha de todos os lados. Mulheres sofisticadas, nacionais e estrangeiras, especializadas em artimanhas amorosas.
     E só fato de serem de outros paises já lhes conferia preferência. As noitadas, as bebidas, a alimentação escassa foram-lhe apagando os traços da mulher bonita que se supunha. A cidade grande passou a ser um sorvedouro e um desencanto. 
     O espelho revelava-lhe para onde ia caindo. A correria a procura de quem quisesse comprar os seus encantos, espedaçava-a. 
     Albertina pensava em fugir, sumir daquele ambiente que parecia diluí-la como um dissolvente. Mas onde e como se lhe faltava o essencial. Nunca vira uma vida fácil, tão difícil. O Rio que eras o seu sonho dourado, não era mais do que um grande desiderato. 
     Com mais algum tempo nem mais se reconhecia. Mas certo dia desapareceu sem deixar ao menos um aviso. Voltar para o interior, sua terra, seria uma humilhação. Sairia da cidade em cidade, caçando níqueis para sobreviver. Pegou à primeira boleia de caminhão que a aceitou; despediu-se na segunda cidade que encontrou e que pelo aspecto lhe parecera atraente. Enganara-se pela segunda vez. Havia sobra de mariposas e a procura de carne humana era escassa e mal paga.
     Desesperada Albertina completou sua desilusão. Ser rapariga era a pior profissão imaginável. Fome, desconforto, desilusão, abandono, humilhações, deixavam no último grau da escala humana.
     Era melhor apodrecer de uma vez. Fraquejou e jurou abandonar a vida fácil. Passaria a ser qualquer outra coisa que lhe desse pelo menos pão e agasalho, um abrigo. Mulher de vida, nunca mais, nem por sonho, por melhor que fosse. Decidida, tomou um banho para tira-lhe o cheiro de puta e apagar os vestígios das pomadas cosméticas e, no seu natural, saiu à procura de trabalho honesto e limpo; vestida como uma roceira para dar-lhe uma falsa impressão, foi de loja em loja, de casa em casa. 
     Sem conseguir alguma coisa além de vagas promessas. Uma desconhecida talvez uma viciada, era também mercadoria sem aceitação. Retornar a sua profissão de rameira, não seria mais possível. Havia sofrido muito mais do que poderia suportar. Teve, então, a lembrança de procurar o Dr. Juiz. 
     Poderia ser a sua salvação. Foi e contou-lhe toda sua história. Queria a sua proteção. Ninguém mais sabia de seu passado. Coincidia que o Dr. Juiz era viúvo sem filho e morava só. Parecia-lhe uma ótima oportunidade para ter uma companheira, mas sua autoridade não lhe permitia certas liberalidades. 
     - Bem, Albertina, deve perceber que nestas cidadezinhas do interior, o povo ainda é muito cioso da moral. Além disso, o carolismo aqui é epidêmico e o vigário um velhote meio extraviado da bola, prega constantemente a pureza familiar. Por qualquer suspeita de que uma moça não seja virgem de pai e mãe, estaria condenada para século seculorum. 
     Ave Maria, não é bom nem pensar. Cairia pedaço do céu e o mundo se espedaçaria. Em todo caso vamos tentar. Seria ótimo se eu pudesse ficar contigo. Mas, e o escândalo? O Juiz botou uma mulher da vida dentro de casa. Está amancebado com uma dona que foi buscar na capital ou em algum bordel.
     Mesmo que fosse virgem e honestíssima. O padre berraria, por sua vez e seria capaz de citar-me até o nome.
     Assim vamos tentar, emprego nalguma loja ou residência. E por enquanto uma vez que está desabrigada, ficas em minha casa, mas não botarás o rosto de fora. 
     Meu almoço vem de pensão e o café eu mesmo faço. Não quero uma velhota comigo e qualquer moça que trouxer, haverá tempestade. 
     Mas nada deu certo. Não havia vaga ou não queriam empregadas. Não era usual, casa comercial com empregada mulher. E nas residências só queriam velhotas aposentadas para não tentar os maridos. A situação era periclitante. O caminho seria Albertina procurar outra cidade. 
     Mas Albertina, oculta, dormindo só com o juiz, teve saudades de sua vida livre e quebrou o juramento. O Dr. Manuel também matara as saudades e quebrara o resguardo. E depois do amanhecer, olhavam-se os dois com ternura. Não havia mais segredo que os impedissem de continuar juntos pelo menos por algum tempo. Que fossem para a casa do diabo, os preconceitos e as pregações puritanas do vigário.
     Aliás, ele sempre teve ótimas arrumadeiras, e, não diziam nada. Era padre e imunizado contra a saliva humana. Sabes de uma coisa, Albertina, vai fugir daqui e depois te irei buscar. Voltaremos casadinhos da silva, mas na igreja verde. Resolve-se assim o problema e tomarás conta de mim e da casa. Acabar-se-á qualquer suspeita. Isto, bem entendido se aceitares.
     - Ora Doutor, nem precisaria desse aparato. Só assim se quebraria essa corrente feita de fingimentos e puritanismo idiota. Apenas o senhor poderia dizer que sou parente e foi sua família que me mandou para cá. Uma irmã de criação, por exemplo. Não quero nada do senhor, mais do que amparo. Quando enjoar de mim ou não mais lhe servir, irei embora. Até amor me dará se quiser. Sou uma mulher sofrida, mas sempre tive carinho para dar. Só não tive sorte. Creio que sonhei de mais e sem orientação ou talvez por rebeldia, caí e fui caindo até o completo aniquilamento. Ser mulher como pretendia ser, pensando que teria o céu e a terra aos meus pés e todos os homens nos meus braços, foi minha perdição. Tudo andou errado. Todos os caminhos sonhados eram vedados, tortuosos e pedregulhosos. Sofri muito.
     - Sabes Albertina, tens idéias maravilhosas. Passarás a ser minha irmã adotiva. Freqüentaremos a igreja juntos e não te separas do teu livro de rezas e o teu terço. Usarás a intimidade de irmã, mas somente lá fora ou quando tivermos visitas. No mais, nem precisa te dizer. Caiu do céu, mesmo no momento da minha maior solidão. Não irás fazer nada além de arranjo de casa. Põe lavadeira e cozinheira. 
     - Mas, quem vai escolher essas pessoas serei eu. Mulher nunca confia noutras mulheres...
     - Bem, nada tenho a ver com os arranjos de casa. Tudo será com minha querida menina. Só uma coisa quem manda sou eu. Está certo?
     - Não se preocupe. Respeitarei os seus direitos. E serei lá doida para contrariar o Dr. Juiz. Deus me guarde. 
     Não houve enrolada que evitasse os comentários. 
     - O Dr. Juiz está amancebado. Botou uma sujeitinha toda perequeté para morar com ele. Pouca vergonha e falta de respeito para um povo católico e cioso da moral, como é o nosso. 
     - Tem nada, mulher. O homem é viúvo e nunca saiu de casa. Também não é assim não. 
     - Não irá tirar pedaço de ninguém, - dizia dona Mariana, uma das pouquíssimas que não concordavam com o exagero da cidade.
     - Já vens com tuas idéias absurdas. Deixa chegar aos ouvidos do Padre e verá a lenha cantar.
     O Dr. Juiz, prudentemente saiu com Albertina, apresentando-a como sua irmã de criação. Havia ficado quase só e a família resolvera mandá-la para sua companhia. Agradecia a Nossa Senhora do Bom Parto, tão boa solução para o seu isolamento forçado. 
     E todos se convenciam dado à serenidade do doutor. Muitos viam em Albertina, os traços da família. Não se podia negar que era parente do Juiz, Dr. Manuel.
     - Nem precisava dizer. Via-se logo.
     Albertina procurava manter, todavia, um comportamento reservado. Era melhor mesmo não se expor muito, aparentar uma perfeita dona de casa. A convivência intima era outra coisa. Perdiam-se os dois em sonhos e realidades. E para que vidinha melhor. Estava tudo na medida exata. Albertina amparada e o Dr. Manuel Abreu, comendo do bom e do melhor.
     Os amigos, no entanto estranhavam que estivesse deixando, quase sempre de freqüentar as rodinhas do gamão. Mesmo assim, alguns explicavam.
     - É natural. Não pode deixar a parenta sozinha. O Dr. Manuel Abreu é um homem correto e compreensivo. Homem de grande sensibilidade. Sempre deu provas disso. Portanto não se deve reparar a sua ausência. 
     - Viciado como é no gamão, só mesmo um motivo importante como o zelo que tem pela prima, poderia fazê-lo faltar ao seu esporte predileto. 
     Enquanto isso, o espertinho tomava seu bom vinho com Albertina e fumava o seu cigarro forte, preparando-se para uma mordida no guagiru. Antes, acordava cedinho e se ficava pelo jardim observando as plantas e as flores que se iam abrindo. Depois, já dia claro, nem dava acordo de si, estirado na cama, repousando como um justo em estado de graça. Nem queria saber como andava o mundo lá fora. Se chovia ou se fazia sol. Para sua nova roça, não importava a meteorologia. Era certo que lia menos e tornara-se menos rigoroso nas sentenças. A vida lhe era mais leve e risonha. Em vez dos códigos, lia poesias e muitas vezes às recitava alto para encanto de Albertina. 
     E a vida continuava um lago azul e sereno, quando teve a terrível surpresa. Albertina estava grávida. Não havia letra de código que o salvasse. O escândalo estava formado. Precisaria, nessa encruzilhada, usar de muita reflexão. Pedir transferência antes que Albertina tivesse que se ocultar ou dar um jeito de arredá-la de casa. Iria conversar com ela e estudar a dois, qual a melhor solução. 
     E foi quando teve a surpresa maior. Albertina revelou-se realmente quem era. 
     - Olha Dr. Abreu, discordo totalmente das duas coisas. Nem o senhor deve sair e nem irei embora. A situação mudou muito. Agora não somos apenas dois. Foi no que deu sua ganância. Eu bem que avisei que poderia dar nisso. Eu, uma mulher moça e o doutor faminto como um retirante da maior grande seca. Agora, meu doutor, terá que agüentar a parada comigo. Gostou, pagou. Tinha muita graça, encher o papo, dormir no quente, comer do bom e do melhor, andar lendo versos, assobiando como menino feliz e depois, na hora do aperto, cair fora ou mandar-me com a maior simplicidade. Esta não. E onde estão os seus códigos, as suas leis, a sua justiça. Comigo não, meu papa-vento. 
     - Mas Albertina, você não compreende que a situação é muito grave. Não entende o que é um juiz numa cidade pequena no interior. Esqueceu, por ventura, o que fiz por você em suas horas amargas. Não posso crer que neste momento decisivo lhe falte sensibilidade. 
     - É justamente o que não me falta. Vosmicês por certo não tem a consciência do que é gerar um filho e do amor de mãe. Deus do céu. E olhe bem. Se me abandonar, vou abrir a boca no mundo. Já sofri tanto na vida que não irei me desgarrar da oportunidade de ser feliz. E porque não se casa logo comigo, antes que venha a andar empinando para o povo ver e saber que o Doutor me ofendeu. Contarei que era uma moça, virgem, e fui enganada. Abusou de minha confiança, iludiu-me com promessas de casamento e está me fugindo e me traindo. Como vê, não será fácil sair dessa. E depois não sou nenhuma tola para ser assim atirada na rua, buchuda e sem ter onde me pegar. Casar, sim. Casar com sua priminha a quem tanto quis e amou. É um gesto dignidade.
     Dr. Manuel Abreu, o juiz impoluto, botou as duas mãos na cabeça e coçou a consciência. Mas, não dava para ele aquela solução maquiavélica. Mulherzinha danada. Não tinha dinheiro bastante para convencê-la. E pelo que se via a coisa era para valer. E não havia código que o salvasse. 
     Se ao menos não fosse juiz. Era o cargo a criar-lhe tropeços. E o Dr. Manuel Abreu passou o resto da noite procurando no ar uma saída. Casar com aquela mulherzinha não era possível. Abandonar o filho pior ainda. Desmoralizar-se, nem era bom pensar. Infelizmente misturava-se coisa de amor com vida profissional e posição social. Danava-se com esse formalismo insuportável. Não sabia o que tinha na cabeça quando colhera Albertina, uma prostituta, mulher sem princípios morais. Mas era pouco para deixar de ser inexperiente e burro. 
     Albertina aproximou-se do Dr. Manuel, derramando carinhos. Notou-lhe preocupação em que estava e perguntou-lhe se havia algum problema. 
     - Há, sim. Dei-te acolhida, fiz o que podia contigo e agora estou sem saber como me sair para não te magoar. No começo foi paixão, agora é amor o que sinto por ti. 
     - E porque não nos casamos?
     - Não desejo me casar com parenta. Problemas de consangüinidade. Filhos deformados ou deficientes, anormais, numa palavra.
     - Não te preocupes tanto. A solução esta comigo, desde que possas me ajudar de alguma forma.
     - Como?
     - Vou embora para onde quiseres. O único sacrifício é perder um protetor e amigo das horas incertas e raras. De tudo o que falei antes, o sentido era um só, saber se me querias bem e não apenas como uma mulher que te saciava os desejos. Pode ficar tranqüilo. Tudo quanto fizesse seria muito pouco para resgatar minha grande dívida. Só se sabe apreciar um gesto como o do senhor, quando se sofre, como eu sofria, naquele terrível abandono. Não tenho nada, mas tenho coração e sentimento de gratidão.
     - Não, Albertina, ficará comigo, enquanto desejares. Os preconceitos sociais que se danem. Não tem nada haver amor com justiça, isto é, código e leis. Vamos criar o nosso filho e nos casaremos com brevidade. O que aconteceu foi coisa de primos. 

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

































TUDO FOI SOMENTE UM SONHO*
                     João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

O Curiango era um menino levado da breca. Não se mexia que não fosse para fazer uma diabrura. No entanto, diante dos pais era um santo. Fala macia, comportamento exemplar, só para dar o entender que tudo quanto viessem contar a seu respeito era pura maldade.
- Não, meu filho, não senhor! Se há menino correto, sem defeitos, é esse meu filho, o Curiango. Dos outros não digo nada, pois são mesmo uns peraltas. A senhora, dona Cristina, é porque não conhece o Curiango. Não nos dá o menor trabalho. Até se pensa que é um menino doente.
- Pois olhe minha filha não mente e me contou que ele levantou a saia dela e fez gestos obscenos. Se o senhor, seu Aluizio, não quer acreditar, isto é outra coisa. E não foi a primeira vez. O que ele deve ser é um grandíssimo sonso. Ponha o bicho debaixo do castigo que ele confessa tudo. E o pior é que nesse momento a menina estava desprevenida, sem aquela roupinha íntima. O que ele, é um safadinho.
- Vem cá, Curiango. É verdade o que dona Cristina esta nos dizendo?
- Nem sei o que é, mas juro que não fiz nada de mal.
-Não acreditamos, mas vê lá se não estás mentindo. Diz ela que andas levantando a saia da filha, já uma mocinha e espiando.
- Deus me livre. Que coisa feia essa dona está dizendo. Deve ter sido outro. Vôte! Levantar a saia pra ver o que? Nem sei o que ela tem debaixo da saia. Ora que coisa, que história má contada.
- Aliás, não foi só de minha filha, já tem feito isto com outras e com a cara mais lisa deste mundo. O senhor não toma providencias, não é? Pois da primeira vez que ele repetir essa cretinice eu o pegarei. E será pior. Deixa-te estar, cabritinho safado.
- Está se vendo mesmo que a senhora não conhece o Curiango. Ninguém tem um filho tão inocente como este.
Dona Cristina saiu furiosa, resmungando e da porta de saída levantou a voz:
- Tal pai tal filho. Devem ser iguais. Vamos pra frente!
Curiango ficou na moita. Deixou correr os dias, esmerando-se em boa conduta. Uma semana depois entrou em casa com uma flecha e dona Cristina atrás, sem afinal o ter alcançado.
- Se te pego eu te mato, moleque ordinário.
A mãe apressou-se em ver o que era. Dona Cristina estava em chispas.
- O que foi agora, dona Cristina?
- O que foi? Pegou nos peitos da menina e tentou beijá-la. Este moleque é um perdido.
- Como é Curiango, fizestes isto?
- Eu!!!... Quero cair morto se fiz uma coisa dessas. Pra que eu iria pegar nos peitos de ninguém. Tem jeito uma coisa dessas. É mentira da Iris. Até parece que ela anda atrás de quem pegue mesmo nos peitos e levante-lhe a saia. Só pode ser. Vamos rezar o credo, mãe, para afugentar os maus espíritos que me perseguem.
Curiango dava o bote e escondia as unhas, mas continuava o santinho da família. Puro, purinho...
A filha Iris de dona a Cristina era louquinha por Curiango. Fazia tudo àquilo para chamar a atenção. Já uma mocinha e Curiango um rapazinho cheio das granas era um ótimo partido para ela.
- Agora não tem mais jeito, dizia a mãe da Iris, a dona Arminda. A coisa está chegando ao extremo. O seu amorzinho Curiango convidou a menina para coisas indecorosas. Se a senhora não tomar providências drásticas, apelarei para a polícia.
- O que foi, afinal, o que fez o meu inocente Curiango. Deve estar acontecendo qualquer coisa de errado. Sua boa e pura menina deve é estar confundindo com outra pessoa, algum desparafusado.
- Nada e nada disso. É ele mesmo. Quem não conhece a belezinha de seu adorado filhinho. Convidou a Iris para fazer indecência, dizendo, inclusive, que depois se casariam. Já pensou a que limite está chegando o porco do seu filho. E note-se, ainda não contei ao meu marido. Se ele sonhar irá estrangulá-lo. Seu filho é um demônio.
- Vem cá, Curiango. Andastes fazendo propostas indecorosas à filha de dona Cristina? É verdade ou estás sendo mais uma vez caluniado?
- Nada disso, mãe. Deus que me está ouvindo e a senhora que tão bem me conhecem, sabem perfeitamente que não faria uma coisa dessas.
- Fala a verdade, pois já não agüento mais tanta reclamação. Será que estais enganando a mim e a teu pai?
- Querem mesmo saber a verdade, pois lá vai ela. A filha de dona Cristina é quem me vem tentando. Todas as vezes que me encontra. Foi ela mesma quem levantou a saia para mostrar as pernas, foi ela quem mandou que eu alisasse os peitinhos dela, foi ela quem me convidou para fazer porcaria e eu, envergonhado, corri de perto. Ando fugindo dela e ela me perseguindo, já ia até pedir a papai para me transferir para outra escola. Quando a vejo, procuro desaparecer. A mocinha é endiabrada, louca, louquinha. Nem sei onde aprendeu tanta baboseira. Deve ter aprendido coma mãe.
- Cachorro, peste, moleque descarado, não tens uma gota de vergonha na sua cara? Cínico!
Dona Arminda, exclamou então!
- Está vendo a senhora, como são as coisas. É sua amada e pura filhinha quem está seduzindo meu filho e ainda se atreve a vir se queixar.
            - Vem cá dona Arminda, não quero mais saber de nada. Apenas quero que me diga como foi que conseguiu criar um canalha dessa ordem. Minha filha é uma menina honesta, recatada, limpa de corpo e alma. Este seu sujeitinho é quem não vale bulufas. E muita má sorte uma mãe ter um traste deste e ainda alardear que tem uma jóia em casa. Por favor, não diga mais isto a ninguém. Fique calada, quando falarem nesse pulha
E dona Cristina saiu vendendo azeite às camadas.
- Está vendo ai Curianguinho, como aquela megera te trata?
- Pois é, mãe. Aquilo é uma doida varrida. Não sabe nem a filha que tem. Deve estar seguindo o exemplo dela.
A coisa serenou durante alguns meses. Estava tudo na melhor paz, uma maior tranqüilidade, até que dona Cristina chegou desarvorada, com as mãos na cabeça em casa de dona Arminda.
- Vai me dar conta de minha filha. Desapareceu e só pode ter sido arte do seu menino Curiango. Meu marido anda atrás dela e até agora nem sinal.
- Eu é que lhe pergunto para onde sua belezinha levou o meu filho, um modelo de gente.
- Ah! Então o safadório também desapareceu, não é? Vem agora mesmo ao delegado. Minha filha é menor de idade e foi desviado pelo sacatrapo de seu filho, o santinho da dona Arminda.
Na semana seguinte, o delegado localizou os sois. Estavam num hotel da cidade vizinha, calma e tranqüilamente.
- Vocês são dois menores e ficarão sob a guarda da justiça, não poderão sair daqui.
- E o que é que vão fazer com a gente. Somos dois menores, mas já completando a maioridade. Não fizemos nada de mais. Apenas queremos apressar nosso casamento e isto dependerá apenas de licença de nossos pais. Além disso, já estamos quase de volta para casa. Não se preocupe seu delegado.
A mãe de Iris correu lá com a intenção de salvar a filha que o miserável do Curiango havia desviado. Menina inocente e pura, um exemplo de fidelidade, arrastada por um depravado que os pais fecharam os olhos a tudo e ainda o chamavam de modelar. Bandido desde o dia em que nasceu. Desta feita ele iria se haver com a policia e com o seu marido. Dona Cristina entrou hotel adentro como uma fúria. Perguntou pela filha, Iris, uma menina criada com o maior zelo e que fora iludida por um cafajeste.
- Como é o nome da senhora?
- Cristina, sim senhora, Cristina!
- Muito bem. Os dois estão no quarto e temos instrução para não perturbá-los. Só saem do quarto para o banho e para comer. Vê-se que é um casal que se adora. Nunca vi tanto amor. Volte depois, lá para uma hora da tarde.
- Nada disso, dona. A menina é minha filha e quero vê-la e levá-la agora mesmo.
- Não pode. Temos ordem de não interrompê-los. São uns hospedes maravilhosos.
- Qual é o quarto deles? Eu mesma irei chamá-la.
- Já lhe disse que não querem ser perturbados. Deixe os meninos se divertirem. Além disso, não queremos perder dois hospedes tão bons e pontuais.
- Já disse à senhora, que a menina é minha filha.
- Então não vá incomodá-la.
- Ou vai chamá-la ou irei recorrer a policia. Era só o que me faltava.
Afinal Iris apareceu, e na mais perfeita calma.
- Oh! Que bom. Veio nos visitar, mamãe. Como vai o papai e os manos? Nós aqui vamos otimamente. O Curiango é um amor.
- Estou te desconhecendo, Iris. Como mudastes tanto! Será que estou vendo mesmo minha filha.
- Ela mesma dona Cristina. É a sua filhinha em carne e osso.
- Como é que te deixastes levar por aquele miserável, menina. Por que não te aconselhastes comigo. Uma inocente como eras ser assim iludida por aquele maldito Curiango!
- Engano da senhora, mamãe. Ele nem queria assim. Eu é que o convenci. Andava louca pelo bichinho e peguei-o pela abertura. Nestes poucos dias chegaremos por lá. Curiango e eu somos as duas criaturas mais felizes deste Brasil. Nem imagina a senhora como gosta de mim. E eu dele. Por favor, não interrompa nossa lua de mel. Quer falar com ele?
- Nem vê-lo!
- Mas a culpada fui eu.
- E aquelas histórias que me contavas?
- Era só para causar sensação. Tudo combinado por nos dois. Eram os preparativos. A coisa foi indo, indo, até que chegou ao que queríamos.
- E o que pretendem fazer?
- Já fizemos...
- Onde vão morar, sinha doidinha.
- Ou lá em casa ou na casa dele. Tanto faz. Tendo um quarto e comida, o resto é com a gente...
- Mas minha filha, como é que se muda assim. Pensava que era uma santinha, discuti com a mãe do Curiango e me fazes semelhante coisa.
- É o destino, mãe. O destino e o amor. Era doidinha pelo Curiango. Comecei achar o nome curioso e bonito, a coisa foi esquentando, esquentando, esquentando, nele e em mim, pegou fogo...
- Quero ver a cara do Curiango, esse demônio. Sei que não foste tu. Uma coisa dessa só pode ter partido dele. E agora tomas para ti mesma, a diabrura que fizeram.
- Um só não podia fazer nada. Tinha que ser os dois. Mas fui eu quem o assanhou. Mostrei-lhe isso, mostrei-lhe aquilo e findamos bagunçando o coreto. Mostrei-lhe um pedaço das pernas, ele alisou os meus jambinhos verdes do Pará. A gente achou graça e findamos fazendo uma aposta.
- Que aposta, desmiolada!
- Ver quem tirava a roupa toda mais depressa.
- E quem foi que vitoriou, isto é, ganhou a aposta de pouca vergonha?
- Empatamos. E daí por diante começou a vida nova.
- Bem, agora nos conhecemos bem, somos íntimos, matamos a gulodice e poderemos voltar a casa sem mais dar-lhes qualquer desgosto.
E papai, como está. Violento, triste, preocupado? É possível e a única culpada sou eu, amargurada, mãe, arrependida, aniquilada. Tudo quanto eu imaginava, tudo quanto eu sentia e esperava da vida, diluiu-se, acabou-se, sumiu como uma rajada de vento que desfolha uma rosa e deixa apenas os espinhos. Tudo, tudo, era ilusão, sonhos passageiros. Apagou-se mesmo tudo, tudo. Sou uma menina desiludida, sem sonhos, sem desejos, como uma folha seca, sem cor, sem perfume, sem vida que o vendo leva, ninguém sabe para onde...



*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

quarta-feira, 19 de junho de 2013


PADRE CAPETA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)
                Capeta estava ordenado e nomeado vigário do Município Pau Seco, cujo padroeiro era Santo Ambrosio. Não gostou muito da decisão do senhor bispo, mas era de praxe não nomear padre para a sua cidade de origem, pois dificultava muito a arrecadação. Compadres, amigos, parentes, sabe como é, querem as coisas no mole. Padre Capeta terminou conformado. O senhor bispo estava certo.
                Foi recebido em Pau Seco debaixo de passeata e discursos elaborados pelo professor Cezarino. Aquele primeiro encontro, com o seu rebanho anunciava boas perspectivas. Tudo aparentava um povo bom e generoso. A generosidade era o principal. A casa paroquial estava pronta. Móveis modestos, mas o suficiente para instalar-se com dignidade e certo conforto. Lá encontrou uma doméstica, cozinheira e arrumadeira ao mesmo tempo, escolhida pela dona Cirene, zeladora principal da Igreja. Mulata enxutona, sadia e diligente, considerada um modelo de todas as virtudes morais. Padre Capeta bem o merecia. Apenas fazia certa restrição aos dotes morais.
Não precisava ser tanto assim, aquele modelo, ou aquele exemplo de dignidade. Achava um exagero ou um excesso de zelo. Em todo o caso o tempo se incumbiria de demonstrar como se arranjariam.
Com pouquíssimo dinheiro, quase nenhum, ou melhor, trazendo, apenas o pouco que o pai lhe pode dar. Padre Capeta, aliás, padre Antonio Cordeiro, teria que poupar a pequena reserva até que os fies se lembrassem dele. E teve sorte. O primeiro domingo de sua estréia, contou com catorze batizados, e a encomenda de um defunto para a segunda-feira. Menos mal. Já ia dando para aliviar a situação apreensiva. Teria que preparar festas e leilões para atrair os católicos e garantir a sobrevivência. O ambiente estava favorável. Já há muito meses, a freguesia estava sem padre e havia fartura no Sertão. Por outro lado, sertanejo gosta de festa e não tem pena de gastar. Pois sim. Iriam ter festas e leilões, novenários et cetera e tal. Padre Capeta fazia os seus cálculos, sem muito otimismo e via que a coisa valia, faria uma limpeza parcial na igreja para demonstrar o seu zelo pelas coisas da igreja e no mais seria um fiel procurador do padroeiro, inclusive para a aplicação dos rendimentos. Aliás, padre Capeta analisou friamente o assunto e chegou sem canseira a uma conclusão muito lógica. Santo não tem em que usar dinheiro. Não come, não bebe, não vai à festa (às vezes é levado), não tem mesmo em que usar dinheiro, o vil metal, coisa material demais para preocupar Santo Ambrosio. Estava, assim, tomada a decisão. Poupar o padroeiro dessa coisa suja que é o dinheiro. Capeta lhe daria destino... Adequado.
II
Para todos os efeitos, em Pau Seco, padre Capeta era padre Antonio Cordeiro, ou simplesmente padre Antonio. O apelido ficara para trás. Cara de santo, não se envolvia com coisas que estivesse fora do terreiro eclesiástico. Não exteriorizaria suas reais intenções. Para isso havia passado tanto tempo no seminário estudando teologia e filosofia. Seminarista pobre, privado de ter uma vida igual à de muitos dos seus colegas, cheios de grana, sempre com batinas novas, sapatos caros, muitos livros, relógio fino de algibeira.
Padre Antonio dormia e comia pensando numa desforra. Havia de ter todas aquelas coisas boas que a pobreza lhe negara. Não se esquecia do sapato que se furara sem ter outro para calçar; até que pudesse comprar outro, teve que mandar o sapateiro dar um jeitinho, costurando. Olhava para aquele remendo, humilhado. Tinha a impressão que os colegas nem olhavam para ele, mas somente pra aquele sapato preto, e surrado. Lembrava-se também da alegria que teve quando o pai lhe mandou um dinheirinho pra comprar um par novo. E, então, como o Capeta gostaria que todos olhassem para os seus pés, enfiados naquela belezinha de sapato que lhe trazia lustroso. Tinha sido um dos momentos mais felizes e inesquecíveis de toda a sua vida de seminário.
O que ainda lhe salvara, eram as suas boas notas e a sua facilidade na oratória. No treinamento dos sermões é sempre elogiado. O bicho, imaginoso e eloqüente, despertava a atenção. Mesmo assim, notava que alguns pareciam morrer de inveja. O seminarista Adriano era um deles. Cheio das granas, filho de família rica, andando como um príncipe, não perdia tempo para uma indireta. Podre de inteligência, ou, em boas palavras, burro até as orelhas, e por isso sempre com notas baixas, procurava livrar-se de suas limitações ostentando riqueza. Quando era escalado para falar, era um Deus nos acuda. Só saia besteira. Trocava o nome dos santos, dizia a silabadas, gaguejava, ficava vermelho como um camarão de água doce e sempre levava um zero em oratória. O professor certo dia lhe disse:
 – Adriano, estuda menino, imita o teu colega, Antonio Cordeiro. Como é que tu vais pregar depois de ordenado.
- Dá-se um jeito padre. O Capeta é um decorador. Tem boa memória e pronto. Mas eu tenho dinheiro. Vamos ver quem vai valer mais, se as pregações dele ou o dinheiro de papai. “Vamos ver quem vai fazer melhor carreira”. Tão arrasado como ele é, se não tivesse ao menos jeito para enrolar o povo, o que seria dele.
- Enrolar, não. Convencer, catequizar, seu tapado.
- É a mesma coisa. O importante é entrar o dinheirão.
- Se o Reitor ouvir essa tua conversa, vai te mandar de volta ou pelo menos dar-te uma boa suspensão. A missão do clero é pregar a religião incutir a fé católica em nossos semelhantes. Tudo indica que vais ser um usurário.
- Meu padre, o cabra sem dinheiro não vale nada. Isso é o que papai diz todos os dias lá em casa, e por isso me mandou pro seminário. Viu que eu não tinha jeito para outra coisa e decidiu:
- Vai menino. “Lá só se fores burro e besta demais”.
 - Pois é, estou aqui e sei que me sairei bem. Tenho é pena do Capeta. Sermão e mais sermão bonito, vai se esquecer do resto e morrer de esmola.
- Dinheiro leva as pessoas à tentação, Adriano; e a esquecer de Deus, da religião, das coisas santas e sagradas. O sujeito vira materialista e somente pensa em gozar a vida. Depois, quando quer se arrepender é tarde. Aqui nos estamos de passagem. A verdadeira vida é a vida eterna, lá no azul do céu.
- Está muito bem. Respeito à sabedoria do senhor. Mas, pode-se ter dinheiro e ir para o céu também.
Veja padre, sem dinheiro, não se pode nem ser batizado, nem mandar celebrar uma missa em salvação da alma. Também não pode casar. Ou arranja os cobres ou morre pagão, sem as graças de uma missa e solteirão, padre não faz nada de graça.
- Não adianta conversar contigo. Mas sei que as tuas convicções são outras. Dinheiro é bom e necessário, mas não abre as portas do céu.
- Depende da maneira de usar a chave...
- Vai tomar banho. Pra isso tu não és burro.
- Quando se fala em dinheiro, me dá um estalo na cabeça...
Padre Quintino, deu uma risadinha, bateu no ombro do seminarista e saiu, resmungando: – O bicho só é burro para um lado. Para o outro é vivo demais. Vai chegar a bispo muito cedo.
Capeta de sapato novo criou novo ânimo. Pisava com força como se quisesse chamar a atenção. E no fim do ano, durante as férias, a mamãe mandou fazer uma batina nova e comprou outro par de sapatos, camisas, escova de dente, pasta, a final um enxoval quase completo. Havia juntado um dinheirinho para isso. Capeta voltou aos estudos de cabeça levantada. Como era tão boa aquela mãe tão pobre. E fizera um juramento. Depois da ordenação, quando pegasse uma paróquia, iria lhe dar tudo quanto pudesse. Fazer da bodeguinha do pai, uma mercearia sortida. Tinha fé no Criador de que nada iria faltar. Queria vê-los tranqüilos, despreocupados e dando graças a Deus pelo filho que possuíam; padre Antonio Cordeiro.
A primeira missa, rezada em Pau Seco foi um sucesso. Não pela missa propriamente, mas pela eloqüência do menino. Imagens bonitas, palavra fácil, comparações admiráveis. A igreja repleta a ouvir em profundo silêncio e em comovente admiração.
- Bem que te dizia Crispim, que o Capeta era muito inteligente. As diabruras que fazia eram um sinal. O físico o ajudava. Chamava atenção. Alto, cabelos pretos, repartidos de lado, rosto de homem, um tanto anguloso. Somente os olhos destoavam um pouco. Um tanto miúdos e típicos das pessoas ardilosas.
Muita gente chorou, não apenas pelas passagens do evangelho, relembradas com tanto colorido, mas pelo fato de estar ali o Capeta que muitas achavam que não iria dar para nada. Batina novíssima, colarinho duro e lustroso, gesticulação natural e convincente. Os dedos angulosos completavam o vigor espiritual, quando apontavam para o céu ou se dirigiam aos fieis.
- Não, não podia ser aquele menino peralta que levava o tempo a contar casos engraçados e a mexer com a vida de todo mundo. Só poderia ser um milagre.
Não sabiam que Capeta planejava a sua vida e tinha que usar os dons que Deus lhe dera para cobrar-se de tudo quanto havia sofrido. Seria honesto com a profissão, isto seria, mas sem bancar o besta. Aquele sapato furado e costurado de seu tempo de seminário, ainda lhe doía na memória. – “Não vou explorar ninguém, mas terei que usar de toda a sabedoria dos Evangelhos. Lá estava uma sentença maravilhosa. “Ajudai ao teu próximo”. Não tinha fazenda, não tinha dinheiro, e o pai vivia de vender bugigangas para viver e educá-lo. Profissão é profissão. Seria habilidoso e honesto. Iria salvar muitas almas, mas teria que salvar-se também. E dizia: “Amai ao próximo como a ti mesmo e ninguém é mais próximo de mim do que eu mesmo”. Pois sim!
Padre Capeta tomou conta de sua freguesia. Depois da recepção e de haver completado sua instalação, meteu mãos a obra. Percorreu todas as capelas da paróquia, celebrando missa, batizou, casou, fez impressionantes sermões e voltou com algum dinheiro no bisaco. Começava bem e pedia a todos os santos que o ajudassem. Tinha, aliás, certeza disso. A coisa estava indo mais fácil do que esperava. Montava bem a cavalo e, acompanhado do sacristão, Seu Carlindo, como era conhecido, não se enfadava de percorrer a sua paróquia, nos dias prefixados. Em casa, recebia sempre presentes. Galinhas gordas, capões, doces, perus, frutas e muitas coisinhas interessantes. Visitas não lhe faltavam. Bom conselheiro, sem deixar de ser alegre e popular, ia tornando-se uma espécie de ídolo do povo. Pretendeu que os pais viessem morar com ele. Recusaram-se, sobretudo na esperança de que um dia seria vigário de Riacho fundo e então estariam juntos. Nascidos e vividos em Riacho fundo, não seria fácil acomodarem-se em ambiente novo. Ali estavam os velhos conhecidos, os amigos, os compadres, a freguesia da vendola.
- Depois, meu filho, depois.
Capeta conformou-se. Na verdade, uma mudança de ambiente, naquela idade poderia causar transtornos. Só que não gostava daquele isolamento, de viver naquele casarão durante a noite, apenas em companhia da mulatona Conceição... Mas era o seu destino de padre. Tinha, é verdade, certo receio daquela companhia proibida pelas leis canônicas. Procurava distanciar-se, mas tinha o diabo, para atentar. E lá vinham as insônias, os sonhos doidos que as benzeduras e as rezas não conseguiriam evitar.
Rememorava a vida de outros colegas que não conseguiram escapar às tentações do demônio. E a coisa vai indo, indo, até que certo dia, padre Capeta percebeu olhares cobiçosos de sua fornida cozinheira-arrumadeira. Tomou o breviário e rezou. Mas enquanto os olhos corriam sobre os textos do livro sagrado, os pensamentos galopavam noutra direção. A mulata Conceição metia-se nas entrelinhas do breviário, como uma pulga no cós da cueca. Dias e dias nessa agonia.
Conceição rebolava-se e desafiava. Certo dia não se conteve. Entrou no quarto de padre Capeta, pretextando saber se não queria alguma coisa.
- Percebi que o senhor estava acordado e pensei...
- Em que Conceição?
- No senhor. Poderia estar desejando alguma coisa...
- Não, conceição. Insônia, só insônia.
-Insônia é sinal de alguma coisa que está acontecendo. Quem sabe. Sei de muito remédio bom para certas insônias.
- Vai, vai, Conceição, disse em palavras arrastadas pela emoção.
- Padre Capeta eu também estou com insônia. E foi se chegando para mais perto e não resistiu. Sentou-se à beira da cama. Padre Capeta fechou os olhos, tentando rezar, livrar-se do demônio das tentações. Mas a reza não funcionou.
- Doidinha...
- Bobão...
A noite se foi, deixando saudades. O domingo amanheceu com um colorido diferente aos olhos do padre Cordeiro. Abria-se diante dele um mundo até então desconhecido, o mundo do pecado e da felicidade. Não atinava por que se proibia um remédio tão bom para insônia.
O sermão desse domingo foi cheio de inspiração. Versou sobre “crescei e multiplicai-vos”. Padre Capeta passou a sentir-se um homem realizado e deu adeus às insônias.
Tinha aberto as janelas que o separavam da vida real. Considerava, então, que o Seminário era uma escola de frustração. E perguntava a si mesmo porque se proibia um ato natural, permitido no Paraíso. Aliás, mais do que isso. Adão estava só quando lhe entregaram Eva, de mão beijada.
Pau Seco era agora uma terra abençoada. Vigário simpático, virtuoso, diligente incentivador. Em seus sermões e nos contatos diários com o povo, indicava soluções para os problemas de sua paróquia. Mais estradas, limpeza da cidade, escolas, aulas de catecismo, e tudo quanto poderia influir para elevar o nível social da terra de Conceição. O coronel Pantaleão, chefe político e fazendeiro rico, dava-lhe todo apoio. O que Capeta dizia era um decreto e não admitia opinião contraria. O homem tinha vindo da capital e sabia onde botar o nariz. A oposição também acatava, procurando obter a simpatia do vigário. Já não se pensava mais nos partidos, mas somente no padre Cordeiro. Sabiam que para onde ele pendesse estaria à vitória.
Mas padre Capeta fazia-se de desentendido. Nenhuma atitude que o pudesse comprometer. E assim, quanto mais gente ao seu lado, maiores os frutos de sua roça. Os leilões que fazia davam alto rendimento. As disputas nas arrematações esquentavam de festa para festa. Os da oposição empenhavam tudo para derrotar o partido do governo. Certa feita um sabonete e um pratinho de bolos de bacalhau foram arrematados por uma fortuna. O leiloeiro indicado por Capeta sabia manobrar a coisa. Atirava um em cima do outro, em tom de brincadeira. – Quem comerá esse pratinho de croquetes de bacalhau, oferecido pela moça mais bonita de Pau Seco, a rainha da festa? Foi um Deus nos acuda.
A oposição arrematou-o. Os filiados deste partido haviam se combinado. Um fazia os lances e todos pagavam. Quando o coronel Pantaleão soube da tramenha ficou danado. Que aguardassem o próximo leilão. Cachorrada, cafajestada. Padre Capeta evitava comprometer-se. Tratava a todos igualmente. O seu partido era o da Igreja.
Em represália o coronel Pantaleão ofereceu depois uma novilha raceada ao padre Capeta. Ficaria lá mesmo em sua fazenda. – Já estava ferrada, padre. Essa cambada da oposição é cheia de manhas. Viu o senhor, juntou-se todo mundo para me desfeitear. Mas da próxima vão ter de frente o cel. Pantaleão. Cabras de peia!
- É coronel, não se preocupe com isso. Dessa forma deram uma boa contribuição à Igreja. Se não fosse o senhor, o que poderia valer um croquetizinho de bacalhau.
- É isso mesmo padre Cordeiro. O senhor tem toda razão.
Mas os comentários corriam lá fora.
- Derrotamos o coronelzão. Abriu fora. Da próxima vez vamos apertá-lo mais ainda.
O coronel preveniu-se. Iria mostrar. Poderiam se danar, mas sairia na frente. Só mesmo mandando capar aqueles manhosos. O outro leilão vai chegar...
Para padre Capeta, a festa tinha ido além do que esperava. Depois de tudo apurado, divulgou o quanto rendera e em que iria aplicar. Os cálculos já estavam feitos. E fez uma porção de coisas. Precisava adquirir a confiança dos fieis. Certamente que não iria deixar o padroeiro liso. Tinha que guardar um pouco, pensando no futuro, nos imprevistos. Santo Ambrosio não poderia ser apanhado de surpresa. Muitas coisas acontecem imprevistamente... De qualquer forma a igreja estava toda alvinha e de portas pintadas.
- Estão vendo aí. Isso é que é vigário. O padre Sebastião já estava aposentado. Velho de mais. Deixava tudo aí. Não se lembrava mais de nada.
- Caduco, uma ova.  Olha lá o fazendão e os currais entupidos de gado e sempre comprando mais. Chegou aqui que não possuía um pau para dar num gato.
- E fez muito bem. De família pobre ajeitou todo mundo e preparou-se para a velhice. A maior tristeza do mundo é não ter nada e ficar velho sem ter arrimo. Economizou comprou fazenda mais salvou a alminha de muita gente. E depois sempre foi um vigário honesto, um santo. Casava, batizava e davam-lhe o que queriam. Tinha que juntar. Ele sozinho, sem o direito de ter uma família. Coitado. A vida toda comendo só, dormindo só, sem mulher, sem filhos, naquele casarão.
Padre capeta não brincava em trabalho. Fazia o quanto podia para libertar-se de certos carolismos. Rezar nas horas certas. Nada de andar enfiado no rosário ou de breviário na mão repetindo a mesma lengalenga de sempre. Chega enjoava. Os santos não tinham um momento de folga com tanto peditório. Padre Cordeiro fazia, sim, suas orações nos momentos adequados e que ele considerava quase como obrigatório. No mais teria que cuidar de outras coisas de interesse seu e do rebanho que apascentava. Lia, lia muito os melhores autores e esmerava-se em sua oratória. Gostava mesmo de enriquecer os seus conhecimentos filosóficos.
Chegava a observar que muita gente ia à Igreja mais para ouvi-lo falar do que propriamente para rezar. Isso alimentava sua vaidade de pregador. Em qualquer solenidade, mesmo política, não tinha conversa, tinha que ser o orador. Isso lhe dava renome. Era chamado para as pregações em outras freguesias.
E comentavam-se. – esse padre Cordeiro não é brincadeira. O bicho tem quengo pra valer. E como é diferente do padre Sebastião que só sabia ler os livros santos. E quando a coisa era em latim, quem sabe se lia certo. Dizem que já saiu velho do Seminário. Sempre repetindo anos. Coitado, também a cara não dava para enganar. Chaboqueirão, paradão, lerdo como uma toupeira. Até para dar bom dia, era arrastando, como se as palavras estivessem grudadas na língua. Em todo caso era um homem bom. A diferença agora era grande. Padre Cordeiro, ágil, de língua solta, comunicativo, um verdadeiro ás.
- Está muito novo aqui, para se saber que apito ele vai tocar. O bicho é esperto, está se vendo. Cabra desenrolado mesmo. Talvez dure pouco por aqui. Sabido como é, vai ser logo promovido a cônego, monsenhor, bispo, sei lá. É padre para capital, cidade grande onde sempre vão parar os mais espertos. Pelo interior fica somente o refugo. Em matéria de sabedoria.
- Pois sim. As coisas estão mudadas. E o bicho é daqui mesmo do sertão. Vai se meter logo com fazendas, criar bois, empanturrar os bolsos de dinheiro, meter-se na política.
- Vais ver. Aquilo se quisesse ficar na capital teria ficado. Foi chamado para ensinar no seminário e cadê que quis. Dizem que na terra dele, quando era garotão tinha o apelido de Capeta. Não podia ser boa coisa. Falam também que no seminário era um Deus nos acuda, quase botava todo mundo a perder. Só não foi expulso por que era muito inteligente. Bom orador e bom aluno.
Capeta, conheci-o já velhinho, fazendão de gado, ovelhas e cabras, sadio como um filhote de onça cheio de afilhados, bebendo bons vinhos e a família desforrando-se das durezas do passado.
Fim.


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.