quinta-feira, 6 de junho de 2013


AZINE*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Azine era uma meninota quando ficou só. Moreninha, de rosto bonito e corpo franzino, atraente toda ela, mas sem meios para viver, não teve alternativa senão sair à procura de algum trabalho em casa de família. E teve sorte, Um casal chegado recentemente à cidade aceitou-a. Nem ao menos exigiu pagamento. Não, Não queria. Bastava ter roupa, comida e casa onde morar. Seria como se tivesse encontrado outra mãe. Possuía apenas a casinha que a mãe lhe deixara e nem queira vendê-la e sim alugá-la para ter algum dinheiro. Falou com a patroa e com pouco tempo estava alugada, com a condição de ser feita sua conservação. Era uma recordação dos pais. Casa pequena num terreno amplo e saudável. O quintal com fruteiras e boas sombras, onde gostava de estar, valia para Azine uma grande fortuna. A mangueira, o cajueiro, a pitombeira e as laranjeiras plantadas pelo pai e regadas pelas suas mãos, não era coisa para desprezar. Nem atinava que pudesse valer muito no futuro. O que lhe valia era apenas o valor afetivo.
– Vai ali Azine, apanhar umas laranjas, ou umas mangas - Nem era bom lembrar as pitombas que eram a sua delicia.
 A pitombeira está florando, mãe. Vem ver, já tem pitombinha nova.
E a mãe achava graça naquela alegria adorável de Azine. - E quem sabe se um dia não voltaria a morar em sua casinha.
            Todo final de mês, o casal dava-lhe algum dinheiro, que ela pedia para guardar depois de repetir muitas vezes que não queria nem precisava. Tinha tudo quanto precisava e mais o aluguer que ia guardando.
-Ora, dona Mirtinha, não está me faltando nada. Para que quero dinheiro?
            - A vida não é assim tão simples como pensa. Quando um dia, por acaso, formos transferidos daqui e não quiseres nos acompanhar, terás o suficiente para esperar outro emprego. Entendeu? E, além disso, é tão pouco o que te damos.
            Azine freqüentava a escola e aprendia também a arte de bordar. Era bom e útil saber alguma coisa, ter alguma profissão rentável. E o tempo ia imperceptivelmente. Azine já era uma moça quando o governo transferiu o Dr. Cordeiro para outra comarca.
            - Estás vendo aí o que eu te falei. Desejávamos que nos acompanhassem, mas isso depende de tua vontade. Vamos para bem longe daqui. Teu dinheirinho está guardado e depende de tua decisão.
- Desde que ainda me queiram, irei também. Longe é ficar sozinha!
            - E tua casinha? Não seria melhor vendê-la e colocar o dinheiro na caixa. Há muita gente querendo comprá-la. Faz-se oferta e se vê quem da mais.
- Bem, mas minha pitombeira, a mangueira que era de mamãe e o cajueiro que era de papai. Irá cortá-los e será horrível. Não, madrinha deixa alugada. O padre Abel guardará o aluguer.
            - O padre não, menina. Padre só sabe rezar. O melhor mesmo é vender. Bom dinheiro que vai render juros. Plantam-se outras fruteiras como lembranças. Reconheço os teus sentimentos, mas ficarão tão distantes para se ver as coisas. Depois danificam a casa, maltratam as plantas. A erva de passarinho pode tomar conta. Tua mãe e teu pai compreenderão o teu gesto.
            - Pois sim. Mas antes de sair irei visitá-las e me despedir. Chorar um pouco abraçada com elas.
- Farás o que quiseres. E se preferires não nos acompanhe. Ficaremos com muitas saudades, mas a vida é assim.
            Afinal de contas, a casa foi vendida. Azine nem tinha noção do dinheiro que foi para a Caixa Econômica. E lá se foram da cidade de Santa Rita para os confins do sertão, para a cidade de Bonito de Santa Fé. Cidade pequenina, mas de gente alegre e quase toda cercada de belos sítios. Aqueles pomares todos bem que matavam as suas saudades. Somente não entendia aquele milagre em pleno Sertão seco. Pensava a Azine que o Sertão era todo um grande deserto. Em Bonito ninguém sabia quem era Azine. Apenas uma empregadinha doméstica. E quem haveria de supor que tivesse mais dinheiro do que o patrão. Era melhor assim. No entanto, Azine era educada e de uma beleza diferente e graciosa. Havia qualquer coisa que a tornava atraente e desejada. Talvez a pela trigueira e os olhos esverdeados, os seios minúsculos ou, quem sabe, apenas, sua seriedade e uma espécie de indiferença pelos rapazes, como se o amor não houvesse ainda acordado dentro dela.
            Nino, filho de comerciante abastardo, enfeitiçou-se por Azine. Fazia suas rondas, mas a menina parecia não vê-lo, como não viam os outros que procuravam atraí-la. Todas as tentativas eram frustradas. Azine deveria ser uma moça doente, apagada, insensível ou quase cega. Nino não manifestava à família e aos amigos, sua paixão desesperada. Azine era uma empregadinha, sem origem conhecida e sabia que a reação seria total. Certamente teria perdido o juízo ou a vergonha. Mas não tinha como fugir. Traçou um plano afoito. Fazer amizade com a família do Dr. Cordeiro. Freqüentar-lhe a casa ver Azine bem de perto, chamar-lhe atenção para a sua desesperada paixão. O diabo é se ela não entendesse.
            Martirizava-o aquela diferença social. Na melhor das hipóteses irá pensar, talvez, que queria apenas aproveitar-se dela. Procurou por em pratica o seu plano e a menina continuava como uma flor que não tinha perfume. Apenas existia bela como uma amanhecer de primavera, mas indiferente. Não havia outra saída se não contar seus anseios a dona Mirtinha e ter logo mesmo que fosse um terrível desengano.
            Dr. Cordeiro não estava em casa. O momento era propício. Coragem não faltava ao Nino angustiado.
            - Dona Mirtinha. A senhora já me conhece bem, mas nunca lhe contei a razão de minha freqüência em sua casa. Vai lhe parecer estranho e talvez absurdo. Mas sou sincero. O coração esconde muita coisa. Tenho uma paixão quase louca pela Azine. Mas a menina não compreendeu ou nada sente por mim. Pensei que poderia ser a aparente diferença que há entre nos dois. Como pode perceber não tenho ambição. Tenho minha independência financeira e o que na verdade ambiciono é casar-me com Azine se ela me aceita. Seria possível consultá-la?
            - Mas Azine é uma moça pobre, sem pai, sem mãe e que veio para nossa companhia. Na verdade não a temos como uma empregada. No entanto é como acabo de expor. Até hoje não se interessou por ninguém. Pelo menos que seja de meu conhecimento.
            - É assim que a quero. Desejava pelo menos conversar com ela um pouco.
      - Pois não. Mas não se surpreenda com sua atitude. Azine vem cá, minha filha!
      Azine chegou como se atendesse um chamado comum. Deu um bom dia natural, mas percebeu que o moço olhava-a como se ela fosse uma raridade.
            Nino quase perdia a fala. Nunca a havia visto tão de perto.
            - Bem, fiquem aí os dois e conversem sem constrangimento. Olha Azine, o Nino é gente das melhores famílias da cidade vive muito bem, é um bom caráter e estimado por todos. Senta-te aí menina sejas compreensiva.
            Os dois olharam-se como se nunca se tivessem visto.
            - Bem, Azine. Já te conheço o bastante. Não me conheces, entretanto. Não desejo tomar o teu tempo e espero que me compreendas. Desde que te vi, jamais tive um momento de tranqüilidade. Apaixonei-me por ti. Não para distração, mas para casar. Sim, casar contigo. Talvez não me quisesses, já tenhas alguém a tua espera.
            - Não. Até agora não pensei nisso. Vivo tão bem com quem me acolheu e sem problemas que nem me passou pela mente ou pelo coração um desejo assim.
            - Mas será que não poderás começar a pensar. Ter um lar, um amigo ao teu lado, ser dona de casa, amar como eu te amo. Tudo isto faz parte da vida.
            Azine teve um sobressalto. Aquela situação imprevista abriu-lhe as janelas do coração. Parecia-lhe uma coisa estranha. Olhou para bem distante com os olhos do pensamento. Como lhe surgia assim tão de repente um mundo novo, colorido, aquela coisa agitando-se dentro dela, como se estivesse começando um incêndio.
            - Sabe. Estou atordoada. Nunca me haviam falado assim. E neste momento é difícil até entender-me. Quem se sente feliz como eu, tenho medo de mudar. Aqui tenho amizade e carinho, o que me faltou quando perdi, por último, minha boa mamãe. Se me caso não sei se o que me sorri agora, não será lagrimas amanhã. Vamos supor que sua paixão seja uma coisa momentânea, passageira, um desejo somente, um desejo de posse. Depois se cai numa realidade da qual não se tem como fugir.
            - De mim jamais acontecera. Não tenho vícios e nem os desejos. Anseio por uma vida normal. Um cantinho onde se possa viver do amor puro e santo. Não me diga mais nada agora. Vamos nos conhecer melhor. Veja se pode gostar de mim. Se ama meu físico, meu coração, ou há qualquer coisa que não lhe agrade. Isso é importante. Materialmente tenho o bastante para um viver tranqüilo. Não quero que tenha, amanhã, de suportar-me só e só por ter se casado comigo. Quando se ama verdadeiramente, pequenos defeitos não fazem sombras. Vem a tolerância natural e a compreensão.
            De qualquer forma cada um se sente feliz à sua maneira. Eu, por exemplo, só serei feliz com você ao meu lado. O seu caso poderá ser diverso. Fale com dona Mirtinha. Ela já me conhece bem e à minha família. Espero que ela me ajude e que você compreenda que todas as moças devem se casar. Comigo ou com alguém, por força do destino. Posso voltar a falar-lhe ou o assunto já está encerrado?
            - Não. Seja como for, sua amizade é preciosa e me alegrará.
            - Pois é. E não tenha medo de nosso futuro. Mas só lhe peço uma coisa: Sinceridade. Caso não me queira ou tenha qualquer dúvida, seja franca e leal. Ofender-me-ia menos do que me aceitando sem uma total atração. Pode demorar na resposta. É melhor do que um gesto precipitado.
            - E sua família. Ira concordar com esse seu disparate de casar com uma empregadinha domestica? Seria um desastre para todos se não houvesse aceitação plena. Já pensou numa oposição.
            - Não temo. Minha gente é muito simples, sem vestígios de orgulho. Lá em casa só se deseja a felicidade de todos. Não se anda atrás de moça rica nem de moça nobre. Apenas limpa, honesta e compreensiva.
            - Não tenho dúvida que vão estranhar. Em todo caso o problema é mais seu do que meu. Parece mais prudente tocar-lhe logo no assunto. É melhor do que sofrer uma desilusão. Aliás, sem a concordância de sua família, não deve mais me procurar com essa intenção. Diga-lhes logo quem eu sou, conte-lhe toda verdade. Posso até adiantar-lhe que meus padrinhos também não consentiriam e eu não os contrariaria. E depois, já imaginou no meu desapontamento de dar um sim e ser recusada por sua família. Não quero passar por esse constrangimento. Também não quero que lhe aconteça o mesmo.
            - Bem. É hoje mesmo. Mas venha cá e fique aí mesmo. E se minha família concordar e em seguida você me recusar. Sofreria a humilhação. Será sem duvida muito desagradável.
            - Então ficará entre nos dois. Só entre nos dois. Aceito o seu pedido desde já. Caso haja impedimento, ninguém saberá.
            - Está bem!
            Nino começou pelo lado mais dócil. Falou com a mãe. Confessou o seu desejo e a sua paixão. Azine era uma moça sem família próxima, mas fora criada pelo Dr. Cordeiro. Moça de bons costumes e boa educação doméstica. Seria bom que a senhora a conhecesse.
            - Ah! Meu filho, já a conheço de longe e já adivinhava essa tua paixão. Mãe é assim. Certa noite, quando dormias, te ouvi pronunciar o nome de Azine. Logo desconfiei. De mim nada tenho a opor. É preferível casar com moça pobre com uma endinheirada, petulante e orgulhosa.
            Conheço o teu temperamento e irias suportar arrogância. Mas devo de alertar de uma coisa. Também há muita moça pobre que se torna pedante e exigente. E são talvez as piores. Não tem nada, nunca tiveram e transforma-se em verdadeiros lobos. Toma cuidado. Tenho medo também da origem. Às vezes já trás na massa do sangue, uma herança perigosa.
            - Bem se me acontecer uma desgraça dessa, cada um tomará seu destino, mas não creio que Azine seja sim. É uma criatura quase ingênua. Sem maldade. Não irá pensar nessas coisas.
            - Falta falar com teu pai. Não digas que já falastes comigo. Se ele se opuser, nada feito e não me sentirei mal. No entanto, poderei fazer algumas ponderações a teu favor.
              - Pai!
              - O que há, Nino.
              - É que estou pensando em me casar.
              - E pode-se saber com quem?
              - Pode, sim. Aquela mocinha, espécie de filha adotiva do Dr. Cordeiro.
              - Mas, filho, com uma empregada doméstica.
      - Que seja, mas estou preso a ela. O senhor pode muito bem saber o que é uma paixão. É uma menina boa, educada e compreensiva.
      - Não será que está indo só pela beleza física? E não terá sido só isso que te prendeu?
         - Em princípio sim. Mas já agora que a conheço de perto acabei de laçar-me. É inteligente, ponderada e leal. Basta dizer-lhe que foi bem clara comigo.
– Olha Nino, se tua família fizer qualquer oposição, nada mais haverá entre nós do que uma simples amizade. Acaba-se o compromisso. Felicidade quando não é completa, não é felicidade. E não tenho porque te fazer infeliz. Consulta antes tua família e voltes se achar conveniente.
            - Quero também o teu bem estar Nino. Faze o que desejares, mas não te precipites.
     Nino voltou correndo. E disse tudo ao contrário. Todos contra. Convidou Azine para fugirem.
            - Não chores. A vida tem desses assaltos. Vem cá sinhá bobinha. Todos aprovaram e querem que te leve já e já lá em casa, fala com dona Mirinha e vamos correndo.
            Do dinheiro de Azine só se soube depois do casamento. Mas ficou onde estava.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





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