sexta-feira, 21 de junho de 2013





ALBERTINA*



João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)




     Cidade grande, com as portas abertas para o mundo, sem se preocupar com os que chegam ou saem. A vida de cada um era problema de economia privada ou doméstica. O corre-corre durante o dia entontecia aquela multidão insaciável e gananciosa procurando um lugar onde cair vivo. 
     Albertina, moça do interior de estado distante, sonhava ilusoriamente com as maravilhas de uma metrópole. Ali existia lugar para todos, inclusive, amor.
     Muito nova ainda, Albertina apaixonou-se se tornando mulher sem água benta e sem juiz. E foi aí que ambiente passou a ser pequeno para ela. Por onde andava tínhamos olhos dos curiosos atravessando-lhe as carnes e a alma. - “Moça perdida e louca”. Arrumou a sacola e sem se despedir de ninguém sacudiu as asas como uma andorinha desgarrada. Iria mostrar quem era e para quanto valeria o seu corpo jovem e ardente. 
     Não teria dali por diante, que dar satisfação à sociedade e a parentes. Cada um que fosse viver sua vida, honestamente ou como bem entendesse. Rio de Janeiro. Refugio para Gregos e Troianos.
     Desceu do navio já quase sem dinheiro, mas isso era fácil de ganhar, sem grande esforço. Bastaria mostrar-se, exibir os seus quarenta e oito quilos de carne bem arrumada. Um motorista de praça lhe daria as dicas. Era gente que deveria saber de tudo. E, assim, foi levada para um bordel vagabundo, da pior laia.
     Bordel freqüentado pela malandragem de baixo calão; lá mesmo pagou a corrida do táxi. E como não suportou o ambiente, mudou-se para uma pensão quase igual. As veteranas tinham ciúme de Albertina por saberem que gente nova sempre era mais disputada. Não suportou mais que uma semana. Já com algum relacionamento transferiu-se, de parceria, para um quarto alugado de uma companheira. Por mais que aparentasse solidariedade, não deixavam no íntimo, de ser rival. 
     À noite e parte dos dias freqüentavam os cabarés, e, noites havia que retornavam sem um níquel. Casa cheia de mulheres de toda espécie e poucos acompanhantes. Alguns iam ali, só para beber, matar o tempo na companhia das garotas, o que lhes causava desapontamento. Albertina estava espantada com a vida fácil. E o pior era não ganhar o suficiente para alimentação, aluguel e adereços. 
     Sem uma boa apresentação ficaria isolada, recantada e desacompanhada. A concorrência vinha de todos os lados. Mulheres sofisticadas, nacionais e estrangeiras, especializadas em artimanhas amorosas.
     E só fato de serem de outros paises já lhes conferia preferência. As noitadas, as bebidas, a alimentação escassa foram-lhe apagando os traços da mulher bonita que se supunha. A cidade grande passou a ser um sorvedouro e um desencanto. 
     O espelho revelava-lhe para onde ia caindo. A correria a procura de quem quisesse comprar os seus encantos, espedaçava-a. 
     Albertina pensava em fugir, sumir daquele ambiente que parecia diluí-la como um dissolvente. Mas onde e como se lhe faltava o essencial. Nunca vira uma vida fácil, tão difícil. O Rio que eras o seu sonho dourado, não era mais do que um grande desiderato. 
     Com mais algum tempo nem mais se reconhecia. Mas certo dia desapareceu sem deixar ao menos um aviso. Voltar para o interior, sua terra, seria uma humilhação. Sairia da cidade em cidade, caçando níqueis para sobreviver. Pegou à primeira boleia de caminhão que a aceitou; despediu-se na segunda cidade que encontrou e que pelo aspecto lhe parecera atraente. Enganara-se pela segunda vez. Havia sobra de mariposas e a procura de carne humana era escassa e mal paga.
     Desesperada Albertina completou sua desilusão. Ser rapariga era a pior profissão imaginável. Fome, desconforto, desilusão, abandono, humilhações, deixavam no último grau da escala humana.
     Era melhor apodrecer de uma vez. Fraquejou e jurou abandonar a vida fácil. Passaria a ser qualquer outra coisa que lhe desse pelo menos pão e agasalho, um abrigo. Mulher de vida, nunca mais, nem por sonho, por melhor que fosse. Decidida, tomou um banho para tira-lhe o cheiro de puta e apagar os vestígios das pomadas cosméticas e, no seu natural, saiu à procura de trabalho honesto e limpo; vestida como uma roceira para dar-lhe uma falsa impressão, foi de loja em loja, de casa em casa. 
     Sem conseguir alguma coisa além de vagas promessas. Uma desconhecida talvez uma viciada, era também mercadoria sem aceitação. Retornar a sua profissão de rameira, não seria mais possível. Havia sofrido muito mais do que poderia suportar. Teve, então, a lembrança de procurar o Dr. Juiz. 
     Poderia ser a sua salvação. Foi e contou-lhe toda sua história. Queria a sua proteção. Ninguém mais sabia de seu passado. Coincidia que o Dr. Juiz era viúvo sem filho e morava só. Parecia-lhe uma ótima oportunidade para ter uma companheira, mas sua autoridade não lhe permitia certas liberalidades. 
     - Bem, Albertina, deve perceber que nestas cidadezinhas do interior, o povo ainda é muito cioso da moral. Além disso, o carolismo aqui é epidêmico e o vigário um velhote meio extraviado da bola, prega constantemente a pureza familiar. Por qualquer suspeita de que uma moça não seja virgem de pai e mãe, estaria condenada para século seculorum. 
     Ave Maria, não é bom nem pensar. Cairia pedaço do céu e o mundo se espedaçaria. Em todo caso vamos tentar. Seria ótimo se eu pudesse ficar contigo. Mas, e o escândalo? O Juiz botou uma mulher da vida dentro de casa. Está amancebado com uma dona que foi buscar na capital ou em algum bordel.
     Mesmo que fosse virgem e honestíssima. O padre berraria, por sua vez e seria capaz de citar-me até o nome.
     Assim vamos tentar, emprego nalguma loja ou residência. E por enquanto uma vez que está desabrigada, ficas em minha casa, mas não botarás o rosto de fora. 
     Meu almoço vem de pensão e o café eu mesmo faço. Não quero uma velhota comigo e qualquer moça que trouxer, haverá tempestade. 
     Mas nada deu certo. Não havia vaga ou não queriam empregadas. Não era usual, casa comercial com empregada mulher. E nas residências só queriam velhotas aposentadas para não tentar os maridos. A situação era periclitante. O caminho seria Albertina procurar outra cidade. 
     Mas Albertina, oculta, dormindo só com o juiz, teve saudades de sua vida livre e quebrou o juramento. O Dr. Manuel também matara as saudades e quebrara o resguardo. E depois do amanhecer, olhavam-se os dois com ternura. Não havia mais segredo que os impedissem de continuar juntos pelo menos por algum tempo. Que fossem para a casa do diabo, os preconceitos e as pregações puritanas do vigário.
     Aliás, ele sempre teve ótimas arrumadeiras, e, não diziam nada. Era padre e imunizado contra a saliva humana. Sabes de uma coisa, Albertina, vai fugir daqui e depois te irei buscar. Voltaremos casadinhos da silva, mas na igreja verde. Resolve-se assim o problema e tomarás conta de mim e da casa. Acabar-se-á qualquer suspeita. Isto, bem entendido se aceitares.
     - Ora Doutor, nem precisaria desse aparato. Só assim se quebraria essa corrente feita de fingimentos e puritanismo idiota. Apenas o senhor poderia dizer que sou parente e foi sua família que me mandou para cá. Uma irmã de criação, por exemplo. Não quero nada do senhor, mais do que amparo. Quando enjoar de mim ou não mais lhe servir, irei embora. Até amor me dará se quiser. Sou uma mulher sofrida, mas sempre tive carinho para dar. Só não tive sorte. Creio que sonhei de mais e sem orientação ou talvez por rebeldia, caí e fui caindo até o completo aniquilamento. Ser mulher como pretendia ser, pensando que teria o céu e a terra aos meus pés e todos os homens nos meus braços, foi minha perdição. Tudo andou errado. Todos os caminhos sonhados eram vedados, tortuosos e pedregulhosos. Sofri muito.
     - Sabes Albertina, tens idéias maravilhosas. Passarás a ser minha irmã adotiva. Freqüentaremos a igreja juntos e não te separas do teu livro de rezas e o teu terço. Usarás a intimidade de irmã, mas somente lá fora ou quando tivermos visitas. No mais, nem precisa te dizer. Caiu do céu, mesmo no momento da minha maior solidão. Não irás fazer nada além de arranjo de casa. Põe lavadeira e cozinheira. 
     - Mas, quem vai escolher essas pessoas serei eu. Mulher nunca confia noutras mulheres...
     - Bem, nada tenho a ver com os arranjos de casa. Tudo será com minha querida menina. Só uma coisa quem manda sou eu. Está certo?
     - Não se preocupe. Respeitarei os seus direitos. E serei lá doida para contrariar o Dr. Juiz. Deus me guarde. 
     Não houve enrolada que evitasse os comentários. 
     - O Dr. Juiz está amancebado. Botou uma sujeitinha toda perequeté para morar com ele. Pouca vergonha e falta de respeito para um povo católico e cioso da moral, como é o nosso. 
     - Tem nada, mulher. O homem é viúvo e nunca saiu de casa. Também não é assim não. 
     - Não irá tirar pedaço de ninguém, - dizia dona Mariana, uma das pouquíssimas que não concordavam com o exagero da cidade.
     - Já vens com tuas idéias absurdas. Deixa chegar aos ouvidos do Padre e verá a lenha cantar.
     O Dr. Juiz, prudentemente saiu com Albertina, apresentando-a como sua irmã de criação. Havia ficado quase só e a família resolvera mandá-la para sua companhia. Agradecia a Nossa Senhora do Bom Parto, tão boa solução para o seu isolamento forçado. 
     E todos se convenciam dado à serenidade do doutor. Muitos viam em Albertina, os traços da família. Não se podia negar que era parente do Juiz, Dr. Manuel.
     - Nem precisava dizer. Via-se logo.
     Albertina procurava manter, todavia, um comportamento reservado. Era melhor mesmo não se expor muito, aparentar uma perfeita dona de casa. A convivência intima era outra coisa. Perdiam-se os dois em sonhos e realidades. E para que vidinha melhor. Estava tudo na medida exata. Albertina amparada e o Dr. Manuel Abreu, comendo do bom e do melhor.
     Os amigos, no entanto estranhavam que estivesse deixando, quase sempre de freqüentar as rodinhas do gamão. Mesmo assim, alguns explicavam.
     - É natural. Não pode deixar a parenta sozinha. O Dr. Manuel Abreu é um homem correto e compreensivo. Homem de grande sensibilidade. Sempre deu provas disso. Portanto não se deve reparar a sua ausência. 
     - Viciado como é no gamão, só mesmo um motivo importante como o zelo que tem pela prima, poderia fazê-lo faltar ao seu esporte predileto. 
     Enquanto isso, o espertinho tomava seu bom vinho com Albertina e fumava o seu cigarro forte, preparando-se para uma mordida no guagiru. Antes, acordava cedinho e se ficava pelo jardim observando as plantas e as flores que se iam abrindo. Depois, já dia claro, nem dava acordo de si, estirado na cama, repousando como um justo em estado de graça. Nem queria saber como andava o mundo lá fora. Se chovia ou se fazia sol. Para sua nova roça, não importava a meteorologia. Era certo que lia menos e tornara-se menos rigoroso nas sentenças. A vida lhe era mais leve e risonha. Em vez dos códigos, lia poesias e muitas vezes às recitava alto para encanto de Albertina. 
     E a vida continuava um lago azul e sereno, quando teve a terrível surpresa. Albertina estava grávida. Não havia letra de código que o salvasse. O escândalo estava formado. Precisaria, nessa encruzilhada, usar de muita reflexão. Pedir transferência antes que Albertina tivesse que se ocultar ou dar um jeito de arredá-la de casa. Iria conversar com ela e estudar a dois, qual a melhor solução. 
     E foi quando teve a surpresa maior. Albertina revelou-se realmente quem era. 
     - Olha Dr. Abreu, discordo totalmente das duas coisas. Nem o senhor deve sair e nem irei embora. A situação mudou muito. Agora não somos apenas dois. Foi no que deu sua ganância. Eu bem que avisei que poderia dar nisso. Eu, uma mulher moça e o doutor faminto como um retirante da maior grande seca. Agora, meu doutor, terá que agüentar a parada comigo. Gostou, pagou. Tinha muita graça, encher o papo, dormir no quente, comer do bom e do melhor, andar lendo versos, assobiando como menino feliz e depois, na hora do aperto, cair fora ou mandar-me com a maior simplicidade. Esta não. E onde estão os seus códigos, as suas leis, a sua justiça. Comigo não, meu papa-vento. 
     - Mas Albertina, você não compreende que a situação é muito grave. Não entende o que é um juiz numa cidade pequena no interior. Esqueceu, por ventura, o que fiz por você em suas horas amargas. Não posso crer que neste momento decisivo lhe falte sensibilidade. 
     - É justamente o que não me falta. Vosmicês por certo não tem a consciência do que é gerar um filho e do amor de mãe. Deus do céu. E olhe bem. Se me abandonar, vou abrir a boca no mundo. Já sofri tanto na vida que não irei me desgarrar da oportunidade de ser feliz. E porque não se casa logo comigo, antes que venha a andar empinando para o povo ver e saber que o Doutor me ofendeu. Contarei que era uma moça, virgem, e fui enganada. Abusou de minha confiança, iludiu-me com promessas de casamento e está me fugindo e me traindo. Como vê, não será fácil sair dessa. E depois não sou nenhuma tola para ser assim atirada na rua, buchuda e sem ter onde me pegar. Casar, sim. Casar com sua priminha a quem tanto quis e amou. É um gesto dignidade.
     Dr. Manuel Abreu, o juiz impoluto, botou as duas mãos na cabeça e coçou a consciência. Mas, não dava para ele aquela solução maquiavélica. Mulherzinha danada. Não tinha dinheiro bastante para convencê-la. E pelo que se via a coisa era para valer. E não havia código que o salvasse. 
     Se ao menos não fosse juiz. Era o cargo a criar-lhe tropeços. E o Dr. Manuel Abreu passou o resto da noite procurando no ar uma saída. Casar com aquela mulherzinha não era possível. Abandonar o filho pior ainda. Desmoralizar-se, nem era bom pensar. Infelizmente misturava-se coisa de amor com vida profissional e posição social. Danava-se com esse formalismo insuportável. Não sabia o que tinha na cabeça quando colhera Albertina, uma prostituta, mulher sem princípios morais. Mas era pouco para deixar de ser inexperiente e burro. 
     Albertina aproximou-se do Dr. Manuel, derramando carinhos. Notou-lhe preocupação em que estava e perguntou-lhe se havia algum problema. 
     - Há, sim. Dei-te acolhida, fiz o que podia contigo e agora estou sem saber como me sair para não te magoar. No começo foi paixão, agora é amor o que sinto por ti. 
     - E porque não nos casamos?
     - Não desejo me casar com parenta. Problemas de consangüinidade. Filhos deformados ou deficientes, anormais, numa palavra.
     - Não te preocupes tanto. A solução esta comigo, desde que possas me ajudar de alguma forma.
     - Como?
     - Vou embora para onde quiseres. O único sacrifício é perder um protetor e amigo das horas incertas e raras. De tudo o que falei antes, o sentido era um só, saber se me querias bem e não apenas como uma mulher que te saciava os desejos. Pode ficar tranqüilo. Tudo quanto fizesse seria muito pouco para resgatar minha grande dívida. Só se sabe apreciar um gesto como o do senhor, quando se sofre, como eu sofria, naquele terrível abandono. Não tenho nada, mas tenho coração e sentimento de gratidão.
     - Não, Albertina, ficará comigo, enquanto desejares. Os preconceitos sociais que se danem. Não tem nada haver amor com justiça, isto é, código e leis. Vamos criar o nosso filho e nos casaremos com brevidade. O que aconteceu foi coisa de primos. 

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.






























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