domingo, 2 de junho de 2013



CHIQUINHA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Chiquinha – 16 anos – uma morena de corpo leve e bonito, olhos ligeiros, parecia à menina mais simples e ingênua do lugar. Tinha na boca bem recortada, sempre um sorriso brejeiro onde estavam os seus feitiços: sua alegria e sua vivacidade que eram os seus maiores atrativos.
            Onde não estava a sua ausência era sentida.
– Onde anda Chiquinha?
            Não falava em namoro, não falava em casamento, o que doía em muita gente.
            - Aquela menina, ninguém sabe para onde pende. Leva tudo na brincadeira.
            É que Chiquinha sonhava outro mundo, outra espécie de vida. Não queria desperdiçar-se, sumida naqueles matos, com um babaca qualquer.
            A escola primaria de Dona Zefinha era muito pouco para sua inteligência e suas ambições. Muito menos casar e viver na roça, enchendo a casa de meninos. Pensava assim, mas não dizia a ninguém. Pra que dizer. Tinha que esperar o momento certo.
            Mas, na cidade, não fossem pensar que seria tola, que fosse se perder como outras que facilmente se deixaram enganar. Essa não. Namoro só para casar, mas não com qualquer sujeitinho safado. E o tempo passava, alimentando os seus sonhos. Quando ia a cidade sondava o ambiente. Havia de empregar-se numa casa de boa família e daí para frente saberia se conduzir.
            A preta velha Teodósia era de sua confiança. Falou com ela. Na semana seguinte teve a resposta. Dona Alice dos Santos queria empregada, mas uma moça direita. Viúva sem filhos, precisava de companhia. Chiquinha ficou pensativa. Tinha que falar com a mãe, convencer o pai. E tentou. Foi um Deus nos acuda.
            - Uma moça ir para a cidade sozinha.
            - Estas malucando. Quem te meteu essa idéia na cabeça, menina.
            - Não mãe. Não sou como as outras que estão pensando. Já me viu com paleio por aqui? Tenho juízo. Comigo é diferente. Quero estudar ganhar meu dinheiro, ajudar em casa. Se não tiver sorte, volto. Mas volto como vou sair. Podem confiar!
            - Menina. A cidade é diferente. Não conheces ninguém. Lá tem gente pra tudo. Gente que engana as pessoas facilmente. São poucas as moças que vão pra lá e não se perdem. Tenho medo. E logo tu, bonitona e bem feita de corpo, sem traquejo de nada, criada na roça. Deus me guarde.
            - Já tenho pra onde ir. Uma casa de boa família. Uma viúva sem filho. Deixem-me ir. Pior é aqui. Para quem não se dar o respeito, aqui e lá é a mesma coisa. Quero ser gente.
            Os pais só confiam nos filhos. Podem ir para onde entendem. Mulher tem que andar no rabo da saia. Por quê?
            E um dia, lá se foi Chiquinha, com a sua roupinha enrolada numa toalha. Antes se benzeu, olhou-se no espelhinho da camarinha, tomou a benção ao pai. A mãe foi levá-la.
            Queria conhecer dona Alice e recomendá-la.
            - Sim senhora, aí está minha filha em suas mãos. É uma menina direita, uma moça. Não tem namorado. É alegre, gosta de cantar. Sadia por dentro e por fora. Mas peço uma coisa. Dê-lhe conselhos e me avise qualquer coisa que venha a acontecer; embora tenha toda confiança nela. Mas sabe como é. Na idade dela, neste mundão de hoje, não se tem certeza de nada.
            Chiquinha, facilmente caiu nas graças da dona Alice.
            Cuidava da casa, cuidava da patroa, que se admirava da matutinha vinda lá do interior, criada no meio de gente sem instrução, habituada com os costumes da roça.  “Deus a livre de querer ir embora”. Mandou-a para a escola noturna. Nas horas vagas pegava-se nas cartilhas e com o preparo de seus deveres escolares. Dona Alice ensinava o quanto podia. A hora certa estava entrando em casa, sem ter que inventar desculpas. Quando ia e quando vinha, sempre ouvia um gaiato qualquer a chamar-lhe a atenção.
 – fala garota – Você é muito boa – Dá uma olhadinha, meu bem!
 Fazia de conta que não ouvia nada. Não era queijo para rato roer. As amigas, com quem andava, aparentavam ciúme. Só viam Chiquinha. E tinham razão. Com um corpo daqueles, uma carinha daquela, buliam com o juízo da rapaziada. Mas era inútil. A sua indiferença desapontava.
– É uma peste. Não dar bolas pra ninguém. Deve ter alguma complicação lá por fora. Tem medo que se descubra. Mas um dia a casa cai.
            Com o tempo foi se identificando com a turma, tornando-se comunicativa, alegre, desinibida. Mas não passava disso. E era inútil tentar. Não se encostava a ninguém.
            Brincadeira pra lá, brincadeira pra cá, mas só isso. Queria bem a todo mundo, mas só isso. Tinha é certo, nojo de cabeludos e barbados metidos a bigodetes. Não dizia nada, mas sentia náuseas. Achava que era gente diferente, pouco séria e coisas mais. Tinha mesmo nojo.
            Pensava em casar, ter sua casa e se pudesse, nem um filho. Lembrava-se dos irmãos e dos vizinhos, cheios de meninos sem roupas e comida sem ter o que dar-lhes. Dormindo no chão, em cima de esteiras, sem ter com que se cobrir. Ela mesma sentira noites de frio com o estomago quase vazio. Sabia como era ruim. E muita vez ouvira a mãe se lastimando:
– Não se tem o que dar aos meninos. Os bichinhos andam com os olhos tão compridos, desconfiados...
Era um sofrimento. Pra que filho, então. Os meninos de Zé Calunga, magricelos, de rosto e canelas rajadas, tremendo de fome e de frio nas noites de junho e de julho. Aquelas recordações lhe metiam medo.
            Chiquinha estudava e aprendia. Anos depois estava na turma das concluintes do normal. Professora e solteira. Dona Alice lhe dera o anel de formatura e o vestido longo, formatura que os pais e os manos vieram assistir.
            - É verdade. A menina tinha razão. Estamos com uma professora em casa, esforço somente dela e de dona Alice.
            Agora sim, poderia pensar em se casar. Mas não queria qualquer sujeitinho de cara lustrosa e cabelo liso. Que se danassem. Saberia escolher. Dona Alice arranjou-lhe um emprego num grupo escolar.
            Chiquinha tomou conta da família com o seu ensino. Ganhava pouco, mas era uma riqueza. Tostão por tostão, iam para a comida e para o trato da família. Os meninos crescidinhos já ajudavam um pouco em casa.
            Chiquinha já não era mais uma menina. Por vezes lhe vinham certos desejos misteriosos. Sabia bem o que significavam. A solução seria o casamento, mas antes de tudo estava sua família, ainda dependendo dela. Não pretendia casar-se por interesse. Jamais dava certo. Esperaria pacientemente até quando surgisse uma oportunidade adequada. Nem barbado nem cara lisa empoada. Toda sua vida anterior indicava-lhe o caminho certo. Sabia muito bem que pouco tempo depois do casamento apagar-se-ia o tal fogo das paixões e sugia a realidade nua e crua. Acompanhava a vida de suas amigas e companheiras apaixonadas. Tudo doirado, macio, suave, musical. Depois era aquela água morna e os desencontros. O homem na sua e a mulher na cozinha. Vida igual à chuchu. Sem gosto de nada. E a mulher com aquele barrigão, pesadona e assustada com o parto. Não, com ela não. Os prazeres de alguns momentos não compensavam as conseqüências. Casar-se-ia sim, mas totalmente segura da amizade que ligaria para sempre o casal. Nada de paixão inventada e ilusória. Paixão é uma espécie de incêndio que cedo se apaga deixando a mulher no borralho para o resto da vida. Esmaece e se vai numa só noite de amor.
            Foi não foi, surgia um candidato apaixonado, babando-se todo.
 – Alem desses teus olhos, dessa tua beleza, desses teus encantos, nada mais existe...
            - Pois é. Não pretendo me casar. Procura outra. Vai beber água noutra fonte.
            Mas, numa tarde de setembro Chiquinha casou-se. Casou-se com o merceeiro da rua vizinha. Nem era bonitão, nem apaixonado. Simplesmente era solteirão e a adorava em silêncio. Custou a declarar-se. Tinha sonhos. Mas um dia criou coragem. Foi à casa de Chiquinha e falou com a moça:
 - Olha menina, só tenho para oferecer-te uma vida honesta e limpa, além de uma amizade de muito tempo. Caso não me queiras, peço-te que guardes inteiro silêncio. Assim não me magoarás tanto.
            - Ora seu Matias, fiquei muito feliz. Marque a data do casório.
            - Guardei por muito tempo minha admiração pelo senhor. Mas tinha medo de declarar-me. Moça pobre de família humilde parecia-me querer voar muito alto, com asas tão curtas e frágeis.
            - Então, chame seu Araújo e Dona Marieta. Conte-lhes de minha felicidade. Diga-lhe que a começar de hoje são meus sócios na mercearia, a menos que se oponham ao nosso noivado e queiram que eu seja infeliz para o resto da vida. Não exijo nada de você, além de sua fidelidade e compreensão. Observe bem a distância entre nossas idades. Com a idade cai-se caminhando imperceptivelmente para a realidade. As decepções e a adversidades. O meu maior e quase único desejo é um lar alegre e feliz e para isso só falta você.
            Casamento que durou uma eternidade e trouxe ao mundo uma prole enorme, sadia e feliz.


*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


           
           
                       

            

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