CARA
DE PAU*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Por onde se anda sempre se
encontrará um sujeito boa-vida, descarado, que se mete na casa dos outros com a
maior intimidade e, às vezes, até exigente e chato. Na cidade e no campo.
Seu Jacinto era da cidade e sempre
dizia que adorava a vida rural. Era nas fazendas e nos sítios que se sentia bem
de saúde e do espírito. Não se cansava de repetir o seu bom gosto. E, por isto
mesmo, desocupado, vivendo ás custas da máquina de costura da mulher, também,
coitada, professora municipal,não para em casa.
Conversador, desses cabras enjoados,
descascador da vida alheia e papa-pirão, enfiava-se por toda parte, fazia de
tudo para demorar aonde chegava.
Muitas vezes a mulher nem sabia onde
o bicho andava e, de certa forma, sentia-se aliviada. Quando não saía,
ficava-se a comer, dormir e conversar miolo de pote. Esmerava-se em narrar às
visitas que fazia e sempre alegando que os convites não faltavam. Na verdade o
que não faltava era preguiça e descaramento. Ninguém o suportava mais. Teriam
que descobrir um meio de escorraçá-lo mandá-lo para a casa dos seiscentos mil
evos. Resolveram, então, botar o espertalhão nos trabalhos das fazendas. Levá-lo
invariavelmente para os afazeres da roça.
Seria tarefa do primeiro que
hospedasse o Cara de Pau. E tocou ao fazendeiro Adriano Macambira. Seu Jacinto
chegou já pertinho do almoço. Cumprimentou a todos e abancou-se como fazia
costumeiramente. Puxou pela língua, contou vantagens, narrou fatos incríveis,
sentindo já o gosto da comida. Para o almoço não se fez de rogado. Achava que
acanhamento, esquivanças, causava constrangimento ao dono de casa. O certo
mesmo era fazer-se de casa, íntimo. Tudo muito bem. Depois do almoço, o
descanso e o bate papo.
- Pelo que se nota Seu Jacinto, o
senhor gosta mesmo da vida das fazendas. Pouco convive na cidade.
- Ah! Adoro o campo, onde se planta
e colhe para sustento desses vagabundos das cidades que nada produzem e vivem
de explorar o povo. No campo, sim, há trabalho honesto, gente ordeira, simples
que enche a barriga desses pançudos de boa vida das cidades.
- Muito bem, seu Januário. Gostamos
de ver homens de sua fibra. Deixa a vidinha fácil e cômoda das cidades para se
internar pelos matos.
- Ora, se não fosse isto, nem sei como
poderia viver.
Uma hora da tarde. Hora de recomeçar
o trabalho!
- Vamos gente: temos muito que
fazer. Hoje teremos que terminar a limpeza das aguadas. As chuvas estão para
chegar e os barreiros devem estar prontos pra receber água nova.
Seu Jacinto, sentado estava, sentado
ficou. Aquilo não era com ele, hóspede de casa. Como de costume ficaria de
palestra com outras pessoas da casa, mulheres e meninos, ou dando mais
voltinhas pelo sítio, comendo uma goiaba aqui, um caju ali ou qualquer fruta
que aparecia. Quando não se deitava à sombra de uma fruteira copada qualquer e
tomava sua boa madorna.
- E o senhor, seu Jacinto. Venha
também. Vai nos dar uma ajuda. O serviço é pesado e urgente.
Jacinto quase perde a fala. Aquilo
era um disparate, meter um hóspede, gente da cidade, no serviço pesado. Falta
de consideração, grossura legítima. Só poderia ser brincadeira.
- Vamos, vamos, tome logo sua pá. A
minha já está aqui. Hoje se tem que dar duro. Olhe aí os preparativos para
chover. O senhor é forte, descansado e irá mostrar a essa gente como se
trabalha.
Não teve para onde fugir. Pisava no
chão como se pisasse no caminho do inferno. E se maldizia em silêncio: -
Coronel de uma figa. Sujeito mal educado, brutamonte, patife. Está pensando que
sou algum de seus espoletas. Tenho nada a ver com açudeco de ninguém ou que
morra tudo de sede. E de andar, andar, ruminando maiores impropérios, quando
cuidou de si, estava em cima do trabalho.
- Ponha-se aqui em baixo, seu
Jacinto e vá paliando lama para cima deste barranco. O senhor tem bons pulsos e
isso será uma brincadeira.
Jacinto enfiou a pá na lama e
estremeceu por dentro. A lama barrenta pesava demais. O suor molhou-lhe logo a
camisa, o coração pulava desordenado, as forças sumiram-se, quando o coronel
recomendou:
– “Mais força seu Jacinto. Atire a
lama mais longe”.
Jacinto reinou subir a barranca
jogar a ferramenta do outro lado do inferno e sumir. Considerava impossível
encontrar alguém tão miserável a ponto de meter um hóspede no eito. Á tardinha,
ao voltar para casa, despediu-se sem esperar pelo jantar e desapareceu
resmungando e rogando pragas o caminho todo. Os outros fazendeiros havia de
saber de tamanha e tão vil desconsideração.
Duas semanas depois, tomou outro
rumo. Desta feita era a fazenda do senhor Gabriel, um pouco mais longe, mas de
um homem bom e tratável que sabia receber seus visitantes. Deu as caras com o
mesmo cinismo. Aboletou-se, papou o jantar, pegou uma boa rede de varandas e
adormeceu como um justo. Mas antes do sono, estabeleceu o comparativo entre um
homem de bem e compreensivo, e um cafajeste. Era inacreditável, a diferença.
Mas era assim mesmo. Os dedos dos pés não eram iguais. O dia amanheceu belo e
luminoso, convidando a um passeio pelos campos, admirando a natureza. Tivera um
sono tranqüilo e reparador. Veio o café, quase um pequeno almoço. Refestelou-se
acendeu o seu cigarro Caxias, de fumo forte e picado, aromático e preparava-se
para um passeio pelos arredores.
- Vamos dar uma andadazinha seu
Jacinto?
- Pois não. Vale a pena respirar
este ar oxigenado, puro, vivificante. Isso dar vida e conforta mesmo.
E foram andando, andando como quem
faz um saudável passeio matinal. Lá um pouco à frente, os operários e os filhos
do fazendeiro construíam cerca de pau-a-pique.
Abrir levadas fundas no pedregulho,
transportar madeira, e aprumar a cerca e socar o estacame bem firme.
- Vamos aqui seu Jacinto. Dê uma
demãozinha. Serviço leve. Vá transportando madeira para o pé da obra e assim
num instante se termina. Os operários gritavam – “Chega madeira” e seu Jacinto
começara a suar. – “Traga de dois ou três paus, criatura”. De uma em uma o
serviço não anda. E seu Jacinto afrouxou, cansado. Foi, então, que houve a
mudança. Socar o pé de cerca. Com uma estaca rugosa e pesada. Era para
descansar. Às onze horas, saída para o almoço.
No caminho seu Jacinto avisou. Vão andando que
já chego. Vou ali dar de corpo. Entrou na caatinga e nunca mais foi visto. O
resto da cerca estava lá para fazer e era uma ameaça. Fossem matar os
seiscentos diabos. Era só mesmo o que lhe faltava, trabalhar para um suvacudo
daquele, da mesma laia do outro. Com as mãos e os braços ardendo, seu Jacinto
chegou à cidade como se tivesse saído das caldeiras de Pedro Botelho.
A laia era a mesma. Matutos safados
que não reconheciam a importância de uma visita. Uma cambada de cornos... Em toda parte os visitantes
são cercados de atenção e conforto. Um homem como eu, da cidade, recebido por
aqueles mama-na-égua, como se fosse um espoleta. Jacinto encostou-se em casa
com certo receio de cair nas mãos de outro safado. Mesmo assim, aumentava a
impaciência. Socado dentro de casa não era pra o seu feitio e nem era de seus
hábitos. Iria para outras bandas, distanciando-se assim dos dois pilantras.
Cedinho, engoliu o café, acendeu o
pacaia deu até logo à mulher e tomou o caminho. Por volta das nove horas
entrava no pátio da fazenda Serrotão. Hospedou-se, conversador e confiante. O
coronel José da Costa fora atencioso. Conversou um pouco, montou a cavalo e
saiu, dando uma desculpa ao hóspede. – “Fique bem à vontade”. Voltarei logo. E
no meio dia regressou. Entra sai, sai e entra o relógio marcou duas horas e não
saía almoço. Certamente estariam preparando pratos especiais. A fome estava
danada, mas, esperava. A perfeição não quer pressa. Um almoço aprimorado,
gostoso, exigia paciência. E aconteceu o imprevisto. Saíram todos para o campo
e nada de se falar em almoço. O relógio da parede, sem qualquer contemplação,
bateu quatro horas da tarde. Jacinto acendia as narinas e não percebia cheiro
de comida ao fogo. Estava visto que a cambada havia almoçado às escondidas, o
que era uma tremenda desconsideração.
- Filhos das putas... E botou o pé
no caminho.
Aquela era a última visita às
fazendas. A roça era para os roceiros, um bando de cabra de peia. Um homem de
bem não se metia naqueles matos. Vagabundos, miseráveis...
12-8-86
*Este conto faz parte do livro
“Vidas Nordestinas”, no prelo.
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