sábado, 7 de julho de 2012

CARA DE PAU


CARA DE PAU*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Por onde se anda sempre se encontrará um sujeito boa-vida, descarado, que se mete na casa dos outros com a maior intimidade e, às vezes, até exigente e chato. Na cidade e no campo.
            Seu Jacinto era da cidade e sempre dizia que adorava a vida rural. Era nas fazendas e nos sítios que se sentia bem de saúde e do espírito. Não se cansava de repetir o seu bom gosto. E, por isto mesmo, desocupado, vivendo ás custas da máquina de costura da mulher, também, coitada, professora municipal,não para em casa.
Conversador, desses cabras enjoados, descascador da vida alheia e papa-pirão, enfiava-se por toda parte, fazia de tudo  para demorar aonde chegava.
            Muitas vezes a mulher nem sabia onde o bicho andava e, de certa forma, sentia-se aliviada. Quando não saía, ficava-se a comer, dormir e conversar miolo de pote. Esmerava-se em narrar às visitas que fazia e sempre alegando que os convites não faltavam. Na verdade o que não faltava era preguiça e descaramento. Ninguém o suportava mais. Teriam que descobrir um meio de escorraçá-lo mandá-lo para a casa dos seiscentos mil evos. Resolveram, então, botar o espertalhão nos trabalhos das fazendas. Levá-lo invariavelmente para os afazeres da roça.
            Seria tarefa do primeiro que hospedasse o Cara de Pau. E tocou ao fazendeiro Adriano Macambira. Seu Jacinto chegou já pertinho do almoço. Cumprimentou a todos e abancou-se como fazia costumeiramente. Puxou pela língua, contou vantagens, narrou fatos incríveis, sentindo já o gosto da comida. Para o almoço não se fez de rogado. Achava que acanhamento, esquivanças, causava constrangimento ao dono de casa. O certo mesmo era fazer-se de casa, íntimo. Tudo muito bem. Depois do almoço, o descanso e o bate papo.
            - Pelo que se nota Seu Jacinto, o senhor gosta mesmo da vida das fazendas. Pouco convive na cidade.
            - Ah! Adoro o campo, onde se planta e colhe para sustento desses vagabundos das cidades que nada produzem e vivem de explorar o povo. No campo, sim, há trabalho honesto, gente ordeira, simples que enche a barriga desses pançudos de boa vida das cidades.
            - Muito bem, seu Januário. Gostamos de ver homens de sua fibra. Deixa a vidinha fácil e cômoda das cidades para se internar pelos matos.
            - Ora, se não fosse isto, nem sei como poderia viver.
            Uma hora da tarde. Hora de recomeçar o trabalho!
            - Vamos gente: temos muito que fazer. Hoje teremos que terminar a limpeza das aguadas. As chuvas estão para chegar e os barreiros devem estar prontos pra receber água nova.
            Seu Jacinto, sentado estava, sentado ficou. Aquilo não era com ele, hóspede de casa. Como de costume ficaria de palestra com outras pessoas da casa, mulheres e meninos, ou dando mais voltinhas pelo sítio, comendo uma goiaba aqui, um caju ali ou qualquer fruta que aparecia. Quando não se deitava à sombra de uma fruteira copada qualquer e tomava sua boa madorna.
            - E o senhor, seu Jacinto. Venha também. Vai nos dar uma ajuda. O serviço é pesado e urgente.
            Jacinto quase perde a fala. Aquilo era um disparate, meter um hóspede, gente da cidade, no serviço pesado. Falta de consideração, grossura legítima. Só poderia ser brincadeira.
            - Vamos, vamos, tome logo sua pá. A minha já está aqui. Hoje se tem que dar duro. Olhe aí os preparativos para chover. O senhor é forte, descansado e irá mostrar a essa gente como se trabalha.
            Não teve para onde fugir. Pisava no chão como se pisasse no caminho do inferno. E se maldizia em silêncio: - Coronel de uma figa. Sujeito mal educado, brutamonte, patife. Está pensando que sou algum de seus espoletas. Tenho nada a ver com açudeco de ninguém ou que morra tudo de sede. E de andar, andar, ruminando maiores impropérios, quando cuidou de si, estava em cima do trabalho.
            - Ponha-se aqui em baixo, seu Jacinto e vá paliando lama para cima deste barranco. O senhor tem bons pulsos e isso será uma brincadeira.
            Jacinto enfiou a pá na lama e estremeceu por dentro. A lama barrenta pesava demais. O suor molhou-lhe logo a camisa, o coração pulava desordenado, as forças sumiram-se, quando o coronel recomendou:
            – “Mais força seu Jacinto. Atire a lama mais longe”.
            Jacinto reinou subir a barranca jogar a ferramenta do outro lado do inferno e sumir. Considerava impossível encontrar alguém tão miserável a ponto de meter um hóspede no eito. Á tardinha, ao voltar para casa, despediu-se sem esperar pelo jantar e desapareceu resmungando e rogando pragas o caminho todo. Os outros fazendeiros havia de saber de tamanha e tão vil desconsideração.
Duas semanas depois, tomou outro rumo. Desta feita era a fazenda do senhor Gabriel, um pouco mais longe, mas de um homem bom e tratável que sabia receber seus visitantes. Deu as caras com o mesmo cinismo. Aboletou-se, papou o jantar, pegou uma boa rede de varandas e adormeceu como um justo. Mas antes do sono, estabeleceu o comparativo entre um homem de bem e compreensivo, e um cafajeste. Era inacreditável, a diferença. Mas era assim mesmo. Os dedos dos pés não eram iguais. O dia amanheceu belo e luminoso, convidando a um passeio pelos campos, admirando a natureza. Tivera um sono tranqüilo e reparador. Veio o café, quase um pequeno almoço. Refestelou-se acendeu o seu cigarro Caxias, de fumo forte e picado, aromático e preparava-se para um passeio pelos arredores.
- Vamos dar uma andadazinha seu Jacinto?
- Pois não. Vale a pena respirar este ar oxigenado, puro, vivificante. Isso dar vida e conforta mesmo.
E foram andando, andando como quem faz um saudável passeio matinal. Lá um pouco à frente, os operários e os filhos do fazendeiro construíam cerca de pau-a-pique.
Abrir levadas fundas no pedregulho, transportar madeira, e aprumar a cerca e socar o estacame bem firme.
- Vamos aqui seu Jacinto. Dê uma demãozinha. Serviço leve. Vá transportando madeira para o pé da obra e assim num instante se termina. Os operários gritavam – “Chega madeira” e seu Jacinto começara a suar. – “Traga de dois ou três paus, criatura”. De uma em uma o serviço não anda. E seu Jacinto afrouxou, cansado. Foi, então, que houve a mudança. Socar o pé de cerca. Com uma estaca rugosa e pesada. Era para descansar. Às onze horas, saída para o almoço.
 No caminho seu Jacinto avisou. Vão andando que já chego. Vou ali dar de corpo. Entrou na caatinga e nunca mais foi visto. O resto da cerca estava lá para fazer e era uma ameaça. Fossem matar os seiscentos diabos. Era só mesmo o que lhe faltava, trabalhar para um suvacudo daquele, da mesma laia do outro. Com as mãos e os braços ardendo, seu Jacinto chegou à cidade como se tivesse saído das caldeiras de Pedro Botelho.
A laia era a mesma. Matutos safados que não reconheciam a importância de uma visita.  Uma cambada de cornos... Em toda parte os visitantes são cercados de atenção e conforto. Um homem como eu, da cidade, recebido por aqueles mama-na-égua, como se fosse um espoleta. Jacinto encostou-se em casa com certo receio de cair nas mãos de outro safado. Mesmo assim, aumentava a impaciência. Socado dentro de casa não era pra o seu feitio e nem era de seus hábitos. Iria para outras bandas, distanciando-se assim dos dois pilantras.
Cedinho, engoliu o café, acendeu o pacaia deu até logo à mulher e tomou o caminho. Por volta das nove horas entrava no pátio da fazenda Serrotão. Hospedou-se, conversador e confiante. O coronel José da Costa fora atencioso. Conversou um pouco, montou a cavalo e saiu, dando uma desculpa ao hóspede. – “Fique bem à vontade”. Voltarei logo. E no meio dia regressou. Entra sai, sai e entra o relógio marcou duas horas e não saía almoço. Certamente estariam preparando pratos especiais. A fome estava danada, mas, esperava. A perfeição não quer pressa. Um almoço aprimorado, gostoso, exigia paciência. E aconteceu o imprevisto. Saíram todos para o campo e nada de se falar em almoço. O relógio da parede, sem qualquer contemplação, bateu quatro horas da tarde. Jacinto acendia as narinas e não percebia cheiro de comida ao fogo. Estava visto que a cambada havia almoçado às escondidas, o que era uma tremenda desconsideração.
- Filhos das putas... E botou o pé no caminho.
Aquela era a última visita às fazendas. A roça era para os roceiros, um bando de cabra de peia. Um homem de bem não se metia naqueles matos. Vagabundos, miseráveis...
12-8-86

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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