segunda-feira, 2 de julho de 2012

MEU PEDAÇO DE CHÃO


MEU PEDAÇO DE CHÃO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Não se tinha como avaliar o amor de Cezário pela vida do campo. Quando tinha de ir à cidade, saía olhando para traz como quem está se afastando de uma namorada. A natureza lhe encantava em todos os momentos e em qualquer lugar.
O amanhecer, a luz se espalhando pelos campos, a chuva caindo e molhando o chão, o sol aquecendo todos os seres, as plantas nascendo, crescendo, florando, os passarinhos, os besouros, tinha pena do sol, à tardinha, quando se escondia para pegar no sono.
As noites de lua ou o céu estrelado deixavam-no numa espécie de prostração mística. Quando Nosso Senhor fizera todas essas coisas maravilhosas, deveria estar embalado por sonhos inspirados.
Quanto mais Cezário admirava as coisas da natureza, mais se embevecia e mais se apegava à vida da roça. Nas cidades era aquela coisa artificial, sem vida, somente casas e gente, gente e casas. Gente falando, gente discutindo, gente querendo enganar e furtar os outros. Sinos tocando e chamando para enterro, soldados pelas ruas para prender, comerciantes furtando no preço e no peso das mercadorias, vagabundos pelas esquinas tramando misérias e padres vestido de preto, como se estivesse de luto.
Ali, quando se via um pássaro era engaiolado e os besouros só apareciam encandeados pelos focos de luz. Voando pelo espaço, somente morcegos e corujas. Nem sabia como se poderia viver numa cidade daquelas. Fazia suas comprinhas e largava-se de volta. Ao sair da cidade criava alma nova.
Até um calango que corria medroso, causava-lhe encantamento. Nunca freqüentou escola, mas ninguém conhecia mais que ele a vida do campo, os seus segredos, as suas maravilhas. Era capaz de passar horas esquecido, olhando um passarinho tecer o ninho ou as formigas transportando suas provisões.
Mas Cezário danava-se quando assistia um gavião pegando um bichinho qualquer, quando poderia viver de outra coisa. Tinha certeza que Deus não o havia feito assim. Viciara-se com o tempo e por isto mesmo, foi não foi, os matava. E ninguém gostava deles.
Cezário tinha, no entanto, uma grande mágoa. Não possuía seu pedacinho de chão, onde cultivasse o que queria e protegesse os bichos do mato que ali vivessem, ou que ninguém matasse ninguém, a não serem cobras venenosas e bichos que perseguissem os outros.
Mas a terra não era sua e ali não faziam o que queria. Haveria de ter o seu cantinho de chão, onde tudo fosse dele. Adorava as chuvas, os ventos, os bichos, as matas, desde o pezinho de grama, até as árvores mais altas; onde ninguém daria pitaco.
Mas, como iria chegar até lá, trabalhando para os outros e fazendo umas rocinhas mixurucas. Poderia se casar com uma moça que houvesse herdado, mas isto não lhe seria fácil.
O certo mesmo seria guardar tostão por tostão no fundo da maleta ou num buraco da parede até mesmo privando-se de alguma coisa essencial. Acima de tudo estava o seu grande sonho. Se fosse necessário se mandaria para outra região onde terras fossem baratas. E por que não?
Resolvera sair do trabalho diário para o regime das empreitadas. Procuraria, assim, obter maior rendimento. Começaria pela madrugada e entraria pelo por do sol. Tentaria duplicar o ganho.
Quando ia a cidade fazia uma fezinha no jogo do bicho. Mas não tinha sorte. Não acertava nem no grupo. Pensou numa viúva proprietária perto dali, iria procurar serviço e já antevia que se ela recusasse a empreitar certo era que estaria desinteressada. Fez a tentativa e esperou como um caçador que está na espreita. Dona Mocinha, no entanto, não relutou.
Contratou o reparo geral das cercas. E como Cezário morava distante, deveria dormir na fazendola e até lhe servia de companhia. Cezário correu em casa para prepara-se com o que possuía de melhor. Cortar o cabelo, afiou melhor o visual, comprou um potinho de brilhantina, um pente novo, um afiador de navalha para manter a cara raspada e uma fisionomia mais agradável.
As mulheres não gostam de homens desleixados. Ás vezes, um pequeno detalhe, é um grande atrativo. O que preocupava era ser dona Mocinha uma mulher já vivida e experiente. Mas teria que adivinhar-lhe os gostos, observá-la atentamente. E, ao mesmo tempo, fazer-se de indiferente nas ocasiões propícia e fazer-se de desentendido para aguçar-lhe a curiosidade.
Cezário alojou-se num quartinho fora da casa. Não ficaria bem dormir dentro da casa de uma viuvinha ainda tão moça. Cezário gostou dessa atitude de dona Moçinha. Era uma prova de zelo e honestidade. A mulher lhe servia. Ela e a terra.
- Venha para o almoço, seu Cezário. Sente-se aí e vamos comer qualquer coisa.
- Não senhora. Depois almoçarei.
- Ora, homem, já estou enjoada de fazer refeições sozinha. A gente perde até o apetite.
Cezário sentou-se de frente, simulando acanhamento, mas na verdade, com grande alegria íntima. Procurava disfarçar, mas a dona Moçinha quebrou-lhe a timidez aparente e foi chegando onde queria.
- Olhe seu Cezário, talvez não soubesse o que é viver só, assim como eu. Tinha antes, a boa companhia de meu marido, mas, depois disso, eu creio que seria bem melhor ter morrido e ele ficado. Comer só, não ter com quem confidenciar, nem sair. Certamente o senhor nunca sentiu isso. E nem queira passar pelo que tenho passado.
- Ah! No começo não, mas com o passar do tempo tudo mudou. Já pensei muito em me casar. No entanto, ninguém ainda me quis, bem entendido, das mulheres que pretendia. Logo, sou um tanto retraído. Sempre me falta coragem para dizer às moças o que realmente sinto. Fico entalado.
- Isso acontece, mas a gente tem que se decidir. Eu, por exemplo, preciso de companhia e talvez esta companhia esteja bem perto de mim.
 Que tal, Cezário, se resolver nos casar? Gostei de teus modos. De tua dedicação e, francamente, sinto-me protegida depois que chegastes.
 É verdade que sou uma viúva e é possível que nem ao menos penses em mim, mas terás tempo para pensar e decidir. Cuidarias da fazenda, enquanto eu tomaria conta da casa e de ti.
- Como poderia ser isto. Só tenho mesmo a vida e esta sem qualquer coisa que possa interessar a alguém. Será que a senhora refletiu bastante? Mal sabe de onde sou.
- Olha Cezário, sei que não estou enganada. Conheço as pessoas pelo jeito de olhar, de se comportar e até pelo jeito de andar ou ficar em pé. Não é pelo fato apenas de não querer ficar só por mais tempo, é também porque o meu coração pede. Senti, desde o inicio uma afinidade entre nós.
- Tenho medo de não querer ser o que a senhora pensa que sou. É uma pessoa tão distinta que morreria de desgosto se viesse a se arrepender. Já disse que não possuo nada que possa oferecer.
- Quero, apenas, que me ofereça tua companhia de amigo. O resto dependerá de nós dois. Se quer correr o risco, só tenho mesmo que considerar-me a criatura mais feliz desde mundo.
- Jamais poderia julgar que essa felicidade estivesse tão perto de mim.
- Então vamos cuidar dos papéis e nos casarmos sem festas, sem convidados, casamento só para nós dois, e as testemunhas. Neste caso, toma conta de tudo. De mim é que só tomarás conta depois do casamento. Está bem entendido.
Cezário ficou encantado com o zelo da viúva. Fosse outra, talvez se aproveitasse para começar os idílios. Foi de imediato, preparar seus documentos. Casados, iniciou-se para Cezário, uma vida inteiramente nova. Estava com o seu grande sonho realizado.
Aquelas terras, aqueles campos e um bom pedaço de céu já era dele. Percorria os campos, pisando de leve nas ervas para não machucar-las e nem espantar ou assustar os pequenos animais. Se ouvia um pássaro cantar, ficava parado e embevecido. Uma flor aberta ou um botão a abrir-se eram como a doçura de um beijo na boca amorosa da natureza.
A fazenda nas mãos de Cezário, que além do mais, protegia religiosamente a flora e a fauna, progredia admiravelmente. Nada havia que se opusesse a felicidade dos dois. Parecia morrer de amores. A perseverança e a vontade de vencer deram a Cezário o que ele desejava.
O mundo poderia cair, agora, aos pedaços, contando que aquele recanto de amor pela natureza e pela viuvinha que lhe fizera feliz, fosse preservado. Uma lagartixa que se aquecia na cumeeira da casa, confirmou balançando a cabeça.

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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