MEU PEDAÇO DE CHÃO*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Não
se tinha como avaliar o amor de Cezário pela vida do campo. Quando tinha de ir
à cidade, saía olhando para traz como quem está se afastando de uma namorada. A
natureza lhe encantava em todos os momentos e em qualquer lugar.
O
amanhecer, a luz se espalhando pelos campos, a chuva caindo e molhando o chão,
o sol aquecendo todos os seres, as plantas nascendo, crescendo, florando, os
passarinhos, os besouros, tinha pena do sol, à tardinha, quando se escondia
para pegar no sono.
As
noites de lua ou o céu estrelado deixavam-no numa espécie de prostração
mística. Quando Nosso Senhor fizera todas essas coisas maravilhosas, deveria
estar embalado por sonhos inspirados.
Quanto
mais Cezário admirava as coisas da natureza, mais se embevecia e mais se
apegava à vida da roça. Nas cidades era aquela coisa artificial, sem vida,
somente casas e gente, gente e casas. Gente falando, gente discutindo, gente
querendo enganar e furtar os outros. Sinos tocando e chamando para enterro, soldados
pelas ruas para prender, comerciantes furtando no preço e no peso das mercadorias,
vagabundos pelas esquinas tramando misérias e padres vestido de preto, como se
estivesse de luto.
Ali,
quando se via um pássaro era engaiolado e os besouros só apareciam encandeados
pelos focos de luz. Voando pelo espaço, somente morcegos e corujas. Nem sabia
como se poderia viver numa cidade daquelas. Fazia suas comprinhas e largava-se
de volta. Ao sair da cidade criava alma nova.
Até
um calango que corria medroso, causava-lhe encantamento. Nunca freqüentou
escola, mas ninguém conhecia mais que ele a vida do campo, os seus segredos, as
suas maravilhas. Era capaz de passar horas esquecido, olhando um passarinho
tecer o ninho ou as formigas transportando suas provisões.
Mas
Cezário danava-se quando assistia um gavião pegando um bichinho qualquer,
quando poderia viver de outra coisa. Tinha certeza que Deus não o havia feito
assim. Viciara-se com o tempo e por isto mesmo, foi não foi, os matava. E
ninguém gostava deles.
Cezário
tinha, no entanto, uma grande mágoa. Não possuía seu pedacinho de chão, onde
cultivasse o que queria e protegesse os bichos do mato que ali vivessem, ou que
ninguém matasse ninguém, a não serem cobras venenosas e bichos que perseguissem
os outros.
Mas
a terra não era sua e ali não faziam o que queria. Haveria de ter o seu
cantinho de chão, onde tudo fosse dele. Adorava as chuvas, os ventos, os
bichos, as matas, desde o pezinho de grama, até as árvores mais altas; onde
ninguém daria pitaco.
Mas,
como iria chegar até lá, trabalhando para os outros e fazendo umas rocinhas
mixurucas. Poderia se casar com uma moça que houvesse herdado, mas isto não lhe
seria fácil.
O
certo mesmo seria guardar tostão por tostão no fundo da maleta ou num buraco da
parede até mesmo privando-se de alguma coisa essencial. Acima de tudo estava o
seu grande sonho. Se fosse necessário se mandaria para outra região onde terras
fossem baratas. E por que não?
Resolvera
sair do trabalho diário para o regime das empreitadas. Procuraria, assim, obter
maior rendimento. Começaria pela madrugada e entraria pelo por do sol. Tentaria
duplicar o ganho.
Quando
ia a cidade fazia uma fezinha no jogo do bicho. Mas não tinha sorte. Não
acertava nem no grupo. Pensou numa viúva proprietária perto dali, iria procurar
serviço e já antevia que se ela recusasse a empreitar certo era que estaria
desinteressada. Fez a tentativa e esperou como um caçador que está na espreita.
Dona Mocinha, no entanto, não
relutou.
Contratou
o reparo geral das cercas. E como Cezário morava distante, deveria dormir na
fazendola e até lhe servia de companhia. Cezário correu em casa para prepara-se
com o que possuía de melhor. Cortar o cabelo, afiou melhor o visual, comprou um
potinho de brilhantina, um pente novo, um afiador de navalha para manter a cara
raspada e uma fisionomia mais agradável.
As
mulheres não gostam de homens desleixados. Ás vezes, um pequeno detalhe, é um
grande atrativo. O que preocupava era ser dona Mocinha uma mulher já vivida e
experiente. Mas teria que adivinhar-lhe os gostos, observá-la atentamente. E,
ao mesmo tempo, fazer-se de indiferente nas ocasiões propícia e fazer-se de
desentendido para aguçar-lhe a curiosidade.
Cezário
alojou-se num quartinho fora da casa. Não ficaria bem dormir dentro da casa de
uma viuvinha ainda tão moça. Cezário gostou dessa atitude de dona Moçinha. Era
uma prova de zelo e honestidade. A mulher lhe servia. Ela e a terra.
-
Venha para o almoço, seu Cezário. Sente-se aí e vamos comer qualquer coisa.
-
Não senhora. Depois almoçarei.
-
Ora, homem, já estou enjoada de fazer refeições sozinha. A gente perde até o
apetite.
Cezário
sentou-se de frente, simulando acanhamento, mas na verdade, com grande alegria
íntima. Procurava disfarçar, mas a dona Moçinha quebrou-lhe a timidez aparente
e foi chegando onde queria.
-
Olhe seu Cezário, talvez não soubesse o que é viver só, assim como eu. Tinha
antes, a boa companhia de meu marido, mas, depois disso, eu creio que seria bem
melhor ter morrido e ele ficado. Comer só, não ter com quem confidenciar, nem
sair. Certamente o senhor nunca sentiu isso. E nem queira passar pelo que tenho
passado.
-
Ah! No começo não, mas com o passar do tempo tudo mudou. Já pensei muito em me
casar. No entanto, ninguém ainda me quis, bem entendido, das mulheres que
pretendia. Logo, sou um tanto retraído. Sempre me falta coragem para dizer às
moças o que realmente sinto. Fico entalado.
-
Isso acontece, mas a gente tem que se decidir. Eu, por exemplo, preciso de
companhia e talvez esta companhia esteja bem perto de mim.
Que tal, Cezário, se resolver nos casar?
Gostei de teus modos. De tua dedicação e, francamente, sinto-me protegida
depois que chegastes.
É verdade que sou uma viúva e é possível que
nem ao menos penses em mim, mas terás tempo para pensar e decidir. Cuidarias da
fazenda, enquanto eu tomaria conta da casa e de ti.
-
Como poderia ser isto. Só tenho mesmo a vida e esta sem qualquer coisa que
possa interessar a alguém. Será que a senhora refletiu bastante? Mal sabe de
onde sou.
-
Olha Cezário, sei que não estou enganada. Conheço as pessoas pelo jeito de
olhar, de se comportar e até pelo jeito de andar ou ficar em pé. Não é pelo
fato apenas de não querer ficar só por mais tempo, é também porque o meu
coração pede. Senti, desde o inicio uma afinidade entre nós.
-
Tenho medo de não querer ser o que a senhora pensa que sou. É uma pessoa tão
distinta que morreria de desgosto se viesse a se arrepender. Já disse que não
possuo nada que possa oferecer.
-
Quero, apenas, que me ofereça tua companhia de amigo. O resto dependerá de nós
dois. Se quer correr o risco, só tenho mesmo que considerar-me a criatura mais
feliz desde mundo.
-
Jamais poderia julgar que essa felicidade estivesse tão perto de mim.
-
Então vamos cuidar dos papéis e nos casarmos sem festas, sem convidados,
casamento só para nós dois, e as testemunhas. Neste caso, toma conta de tudo.
De mim é que só tomarás conta depois do casamento. Está bem entendido.
Cezário
ficou encantado com o zelo da viúva. Fosse outra, talvez se aproveitasse para
começar os idílios. Foi de imediato, preparar seus documentos. Casados, iniciou-se
para Cezário, uma vida inteiramente nova. Estava com o seu grande sonho
realizado.
Aquelas
terras, aqueles campos e um bom pedaço de céu já era dele. Percorria os campos,
pisando de leve nas ervas para não machucar-las e nem espantar ou assustar os
pequenos animais. Se ouvia um pássaro cantar, ficava parado e embevecido. Uma
flor aberta ou um botão a abrir-se eram como a doçura de um beijo na boca
amorosa da natureza.
A
fazenda nas mãos de Cezário, que além do mais, protegia religiosamente a flora
e a fauna, progredia admiravelmente. Nada havia que se opusesse a felicidade
dos dois. Parecia morrer de amores. A perseverança e a vontade de vencer deram
a Cezário o que ele desejava.
O
mundo poderia cair, agora, aos pedaços, contando que aquele recanto de amor
pela natureza e pela viuvinha que lhe fizera feliz, fosse preservado. Uma
lagartixa que se aquecia na cumeeira da casa, confirmou balançando a cabeça.
*Este
conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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