quinta-feira, 28 de junho de 2012

MULATA DOIDA



MULATA DOIDA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Mulata, quase negra, Agripina era uma espécie de demônio, da cidadezinha sertaneja de Capoeiras. As famílias se arrepiavam quando ela atravessava as ruas gingando o corpo e mostrando os dentes alvos e regulares implantados numa boca cheia de luxuria e beleza. Os olhos esverdeados e um tanto amendoados, pareciam querer hipnotizar quem olhasse para ela. A Mulata Doida, de seios pequenos e pontiagudos querendo furar a cambraia da blusa, ameaçavam a tranqüilidade dos lares. Era como se a tentação estivesse dentro e fora dela, balançando-se numa rede de varandas. Endoidecia quem a visse ou pensasse no desespero daquele corpo sem um defeito. Todas as mulheres, casadas ou solteiras trincavam os dentes com vontade de triturá-la, mas tudo era em vão, por que a Mulata Doida, cada vez se exibia e mais atraia. Tinha feitiço no corpo e nos gestos, e depois dos volteados que dava poderia ir para casa, tirar a roupa, deitar-se na cama e esperar. E possuía uma especialidade. Não recebia malandros e cafajestes.
Sua clientela tinha que ser selecionada, limpa e endinheirada. A mulata não se trocava por amor. Era justamente o que não lhe interessava. Amor para ela não passava de uma mentira. Sentia prazer nos encontros, mas por solicitação e estremecimentos do próprio corpo.
E sabia que a procuravam só para isso. Havia sido infeliz e frustrada a primeira vez, quando pensava que paixão e desejo era amor. Comprazia-se com os seus devaneios de ser uma mulher bonita, atraente e desejada. Era sua grande vaidade.
Vezes e mais vezes encontrara quem a quisesse só para ele, mas não se prenderia a ninguém. Porque iria dar prazer a um só. Quando era admirada e ambicionada por todos. Se Deus lhe havia presenteado com tantos atrativos, não se justificaria satisfazer apenas a um.
Que diabo, não era egoísta e nem desejava que sofressem por sua causa. Nada disso. Todos teriam o mesmo direito de sentir o seu calor, de adormecer nos seus braços, contanto que lhe dessem carinho e dinheiro para manter sua beleza quase selvagem. Mas tinha uma particularidade. O último que chegasse teria que amanhecer o dia com ela, para fazer-lhe companhia.
Teria que avisar-lhe de véspera. E deste não recebia nada. Mas a Mulata Doida, como a chamavam, um belo dia desaparecera; sem deixar sinais de seu destino.
- Deveria, - diziam, - ter fugido com alguém por quem houvesse se apaixonado e todos comentavam não ter sido com um deles. Haviam perdido a coisa mais louca deste mundo nos amores.
As mulheres correram á igreja para render graças ao céu. Não havia sido melhor por não ter morrido, a danada faminta de homens. Os comentários enchiam a cidade, e pelo que se via não havia escapado ninguém. Todos, um por um, da melhor sociedade, haviam conhecido a Mulata Doida e não se cansava em dizer que era ela uma mulata azougada e infernal. Comportava-se sempre como se fosse uma virgem insaciável. E também ninguém conhecia um corpo de mulher mais perfeito, nem uns olhos e uma boca e uns seios mais sensuais. Deveria ter em um cada um uma mistura de anjo e demônio.
Após alguns dias certificou-se que a mulata doida havia saído sozinha. Pelo menos não faltava ninguém na cidadezinha de Capoeiras. Fora bom assim, pois, pelo menos não causava inveja. Nem dor de corno. Capoeiras voltou á sua antiga tranqüilidade, só com uma diferença, as mulheres exultantes e os homens sentido sua falta. Também ninguém se lamentava do dinheiro que haviam gasto, das puxadas que a mulata doida dava. Ninguém pagava suficientemente uns momentos com ela.
O que era para estranhar é que a casa ficara fechada sem haver ao menos sido entregue a alguém. A descoberta desse fato começou a gerar esperanças. Mulata doida deveria voltar, pelo menos para alugar ou vendê-la. Era a opinião dos mais otimistas. A cidade estava como se houvesse perdido toda sua graça, no reinado dos homens. Os maridos olhavam e examinavam as mulheres que tinham em casa e riam ás escondidas.
Que diferença absurda entre Mulata Doida e aquela pamonha de duas palhas que tinha em casa. Não dava mais nem para olhar. E por que o criador não enchera o mundo de Mulatas Doidas, ou então não houvesse feito nenhuma.
Afinal de contas lá se foram dois longos meses, quando um dos saudosistas percebera as janelas da casa abertas. O aviso correu pela cidade como uma rajada de vento. E todos queriam se certificar. É, estavam escancaradas, mas nem sinal de Mulata Doida. Mas um sujeito mal encarado botou a cara de fora. Fizeram-lhe perguntas.
- Não sei de nada. Estou aqui com procuração para vender a casa.
- E não conhece a dona?
Conheço, conheço, mas o que querem dela. Poderei resolver qualquer coisa que ela tenha deixado de dividas por aqui.
- E, sabe por que se foi embora?
- É muito simples. Diz que estava enjoada do povo daqui. Nunca tinha visto gente tão tola e já havia arrebanhado o dinheiro que queria. Os homens ao que parecia, nunca haviam visto mulher. A adularam tanto que não suportava mais.
- E o que está fazendo agora?
- Vivendo tranquilamente em sua casa, esbanjando dinheiro que levou dos bobocas desta cidade. Não se cansa de repetir essas coisas. E não esconde que até o vigário a quem visitou algumas vezes, soltou-lhe um dinheirão. Queira, alias que ela fosse ser sua arrumadeira... Um espertalhão... Só lamenta uma coisa. Ter espalhado a intranqüilidade entre as famílias. Em todo caso divertia-se com isso. Não gostava de ninguém, mas adorava dinheiro. Não recebe mais ninguém. Abriu uma pequena loja, uma espécie de armarinho. Fala em se casar. Ninguém sabe do passado. Eu e ela guardamos absoluto segredo.
- E o senhor o que é pra ela?
- Um amigo desde a infância. Somente isto, e pessoa da confiança dela.
- Mas... Onde ela mora?
- Já disse, não sei, é outro segredo. Alguém poderia interferir em sua vida. E lá, ela é uma moça honesta que não deseja mais oferecer-se por dinheiro. Até no vestir e no andar já mudou. Toma conta de seus negócios e jamais pensei que se pudesse reunir tanto dinheiro com um corpo só. Foi de muitos homens, mas agora pretende ser somente de um e por amor. A Mariana é um prodígio de mulher. Diz sempre que se chegasse a ficar novamente pobre voltaria aqui para refazer a bolsa.
- Pois é. Deus queira que isto aconteça. E pode dizer-lhe que se voltar esvaziará até a bolsa do padre Constantino.

Em, 29/07/1986
 *Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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