quinta-feira, 28 de junho de 2012

DR. DEODATO



Dr. Deodato

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Depois de longos anos de espera, finalmente Deodato entrou em casa com o diploma na mão. Embora tivesse sido reprovado dois anos, mesmo assim foi recebido festivamente. A fazenda do coronel Pereira, encheu-se de convidados. Naqueles tempos não era fácil formar um filho. Mandá-lo para Pernambuco, Escola de Agronomia de Tapera, cortando léguas de sertão a cavalo e viajando de trem. Mesmo assim, o coronel Pereira enfrentou o problema, contanto que tivesse a satisfação de ter um filho doutor. Pois ali estava Deodato, formadinho da silva, para alegria do coronel.
            Mas a festa já não terminou bem. Na hora propícia, o vigário da freguesia fez uma saudação a Deodato e elogios à família Pereira. Ao concluir Deodato não se manifestou. Sentado estava, sentado ficou. O coronel Pereira lembrou ao filho que fizesse o agradecimento.
            O bicho ficou vermelho, tremendo as bochechas, mas teve que levantar-se. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saíram. Por fim, gaguejou quatro besteiras e sentou-se apavorado. Coronel Pereira teve que levantar-se para agradecer e justificar que o menino estava emocionado. Lá por dentro, entretanto, fervia-lhe a vontade de dar-lhe uma boa sova. Depois da recepção.
            - “Perdi meu dinheiro e todos os sacrifícios que fiz. Mas isto não vai ficar assim”. Pedia a Deus que os convidados se retirassem. Precisava ajustar contas com o cavalocípede. A final, todos saíram. Já era à tardinha, o sol procurando lugar para se esconder.
            - Vem cá Deodato. Dize-me uma coisa. O que diabo foi que aprendestes. Como é que nos fazes uma vergonha daquela. Abristes a boca só para dizer quatro asneiras e isso mesmo gaguejada. O que foi que aprendestes.
            - Ora, papai, não tenho vocação para oratória.
            - É preciso ser orador, seu eletro-burro, para fazer um simples agradecimento. Pois olha, teu pai nem concluiu o curso primário, mas não se engasgou. O que fizestes do dinheiro que te mandava. Onde estão os teus livros. Quero vê-lo. E foi aí que Deodato assombrou-se. Vamos ver tuas malas.
            - Deixe que eu vou busca-las, pai.
            - Não, vou contigo.
            De agronomia, só existia mesmo um livro velho – Agricultura Geral – escrito em Portugal. O resto era romances safados, até com retratos de mulheres nuas.
            - Olha aí o que foi que aprendestes. Safadeza, só safadezas. Mas não vai ficar assim. Quase matas a gente de vergonha. E onde estão as notas da escola, quero vê-las.
            - Ah! Pai, senhor desconfia de tudo. Estão aí.
Coronel Pereira tomou-as. As mais baixas possíveis.
- Tanto esforço que fiz para te botar nos estudos. Vendia gado, economizava para verte formado, fazendo figura. E aí está o que me saístes. Uma toupeira com um diploma. E esse anel no dedo que vale menos do que uma pata de cavalo.
- Pai, escuta pai. Não foi nada disso que o senhor pensa. Escute-me. Não tenho inteligência, não tenho memória. Sempre estudei muito. Os meus livros dei aos colegas pobres, que não podiam comprar. Esforcei-me o quanto pude, mais as coisas não ficavam em minha memória. Continuei para não dar desgosto ao senhor. Fiquei dois anos porque não conseguia aprender matemática e uma tal de mecânica. Por sorte fui aprovado nelas depois e isto mesmo colando. Passava raspando nas outras matérias. Parecia um castigo. Quando mais estudava, menos aprendia. Os colegas procuravam me ajudar. Tinham pena de mim.
Nunca consegui falar ou escrever alguma coisa que prestasse. Mas a culpa não era minha. Minha cabeça não funcionava. Era como uma rocha dura. Mas eu sei que não serei assim na vida do campo, cuidando do gado e da fazenda. Para isso tenho gosto. E poderei provar. Deixa-me trabalhar. Não me diga mais nada sobre estudos. Quando não se dá para uma coisa dá-se para outra.
- E aqueles livros indecentes?
- Não os comprei. Foram para ver se abria minha inteligência, se despertavam meu gosto pelos livros de literatura. Mas nada disso valeu. Vai queimá-los?
- Não. Passe-os para cá. Primeiro vou lê-los. Toma então conta da fazenda. Quero ver o que vai fazer. É uma oportunidade que vou de dar. Entretanto, vê lá se não vai botar tudo fora.
- Quero cuidar só do manejo da fazenda. Dos negócios cuidará o senhor. Pelo menos até que eu adquira prática.
- Muito bem. Quero que os meus amigos mudem de impressão a teu respeito. Não te esqueças que o dinheiro vale muito mais do que o que se aprende em qualquer escola. Quando se tem dinheiro, passa-se a ser tudo o mais. Inteligente, bom administrador, respeitado. Olha ai o Dr. Sabiniano. Bom orador, preparado, com livros publicados, mas, coitado, só falta pedir esmola. Não passa de um promotorzinho de interior. Quando toma emprestado, não tem como pagar. Já o padre Quaresma, burro como é; cheio de granas, já foi até deputado. Chupa o dinheiro dos beatos e está aí mandando na política e com um fazendão daquela. Tudo a força do vil metal.
O coronel Pereira começou a ler os livros, iniciando por “Uma freira em camisola”.
Amarrou-se na leitura. E comentava de si para si. É por isso que aquele corno não estudava... Mas tinha bom gosto... Deve estar formado em mulheres. Vamos para frente. Safadório... Deixa o bicho pra lá.
Deodato começou firme. Relacionou os gados, reformou os cercados, fez mais divisões, melhorou as aguadas e cuidou das pastagens. Montado a cavalo percorria os campos diariamente, com o vaqueiro. Os rebanhos de vacas e garrotes, cabras e ovelhas cresciam. Guardava forragem seca para o verão. Comprava farelo de algodão, proteinado, quando estava mais barato. Na vazante do açude e na revência, cultivava forrageira. O coronel Pereira acompanhava tudo, admirado. Poderia ter feito o mesmo, mas nem sequer lembrou-se disso. Deodato falou com o pai:
 – Temos muita forragem e o ano está sendo bom de inverno. Compre mais novilhas e mais garrotes. Lucrar-se mais.
- E quando chegar o verão, Deodato. Que irás fazer?
- Vou construir um silo, plantar milho, encher de palha e espigas, cobrir com terra e esperar a seca.
- Que invenção é esta, Deodato. Vai apodrecer tudo.
- Não, pai, aprendi na escola. Lá tinha um. A forragem fica até mais cheirosa e o gado gosta demais.
- Bem. Faze lá tuas coisas, mas não ponhas dinheiro fora.
As chuvas caíram, com certa regularidade. Os milharais começaram a espigar. Quando os grãos encheram, Deodato encheu o silo.
- Vais perder este milho. Nunca se ouviu falar nisso, Deodato.
- Deixe comigo, pai.
Quando o verão estalou e as pastagens secaram, Deodato abriu o silo. O gado comia com voracidade e o leite até aumentou.
- Olha Creusa, não perdemos o nosso dinheiro. O menino é sabido demais. Isso de não saber fazer discurso é besteira. A coisa está indo muito bem. Os gados nutridos, mais leite, mais queijo, mais bezerros.
Talvez se fosse inteligente e discursador, estivesse por aí namorando, metido na política e vivendo como vive o Dr. Sabiniano. Tomando benção às titicas...
Apenas o menino não tinha vocação para as letras. Vamos fazer outra festa, oferecer um almoço aos amigos, apresentar novamente o Deodato. Mas sem discurso. Vão ver o menino quem é.
E dezembro chegou. Em parte nenhuma do mundo existira céu mais bonito, mais azul ou mais estrelado. Quem nunca viu não tem noção do que é o Universo. O coronel Pereira e dona Creusa prepararam a festa.
- Não se toca nos rebanhos que Deodato dirige. Compram-se fora carneiros gordos e os perus estão aí fazendo roda. Queijada, vinhos do porto, boa pinga e outras bebidas.
A casa da fazenda entupiu-se de gente. Moças, rapazes, fazendeiros e gente da cidade. Deodato já não era mais aquele recém-formado com duas reprovações. Agora era o homem do campo afinado com a sua vocação. Não tinha nada que ter ido estudar. Aquela história de matemática, química, biometria, não entrava na sua cabeça. Por isso havia passado duros vexames e não havia aprendido nada.
Agora, não. Possuía sua pequena biblioteca sobre agricultura e pecuária, coisa que gosta de ler e já lhe entrava na memória como se já fizesse parte dele.
No final do almoço, o escrivão do cartório, metido a gaiato, pretendeu embaraçar novamente o Dr. Deodato. Pura perversidade. Mas o bicho tinha sangue ruim nas veias. Queria assistir o fiasco. Levantou-se e fez um discurso elogioso, referindo-se seguidamente ao Dr. Deodato, ilustre técnico.
O coronel Pereira mordia as pontas do bigode. Não sabia por que havia convidado o escrivão. – “Sujeito ordinário. Sabe que o Deodato não é para discursar. Nova decepção. Mas esse peste me paga”.
O escrivão terminou o discurso reforçando os elogios. A expectativa era geral.
Deodato levantou-se. Todos se voltaram para ele, como se vissem uma coisa estranha. O escrivão antegozava o fiasco.
- Meus amigos. Amigos diletos de meu pai e de minha família. Deodato Pereira não é o técnico de quem tanto falou o senhor escrivão, com a sua eloqüência já tão conhecida. Felizmente já quase nada me resta do curso que fiz. Havia errado os caminhos da vida. Minha vocação era bem outra, a vida do campo, onde se convive com a natureza e não com os compêndios e os gabinetes, onde se enche a mente de coisas teóricas. Sou hoje, o que deveria ser; um homem da terra, de chapéu de couro e vestido de gibão. Agradeço a presença dos senhores e os convidado para mais tarde, conhecerem o que tem feito o Deodato.
Levantaram-se para aclamar o Dr. Deodato como fazendeiro, mestre na agronomia. O senhor escrivão havia perdido o seu latim e sentia-se perdido naquele ambiente de satisfação. E todos olhavam para ele esboçando um risozinho safado.
Deodato não ficou somente aí. A filha do coronel Agrício, o maior fazendeiro da região, estava voltada para ele. Sertaneja queimada de sol, bonita de dar agonia, novinha como um bugarí que acabava de desabrochar, sorria para o Dr. Deodato, com o coração pulando escondido sob os seios, guardados pela blusa de renda. Dois diabinhos apontando sempre pra gente.
Deodato conversava com Dilene, despertando os comentários das outras moças que andavam de olho no filho do coronel Pereira.
- Não sei como Dilene pode gostar de um bicho tão sem graça.
- Ora, é uma matuta, metida na fazenda a vida toda, depois que saiu do colégio. Não vê ninguém.
Diz outra: - Vocês estão é com ciúme. É um homem simpático, firme, e bem de vida.
- Sujeitinho de cara lisa, todo bonitinho, como vocês dizem, só serve de enfeite. Para casar, não!
- Dilene está certa. Ela que não solte se não eu pego. Pelo menos tentarei.
- Quero em casa um homem e não boneco de louça.
O escrivão, desambientado tentou refazer-se. Mas ninguém o ajudou. Perdeu a graça e despediu-se. Foi o seu último discurso.
Meses mais tarde o Dr. Deodato estava casado, morando na mesma fazenda.
 O coronel Pereira relia Uma freira em Camisola, às escondidas da mulher e do filho.
Aconteceu, entretanto a confirmação do ditado – “cochilou, o cachimbo cai”. Adormeceu com o livro na mão. Dona Creusa, inesperadamente, leu o título do livro. Acordou o marido.
- Que livro é este com título tão esquisito, Pereira.
- Aí, mulher é a historia de uma freira que não tinha vocação para a vida religiosa, como aconteceu com o Deodato.
- Então quero ler também.
- Depois.
E o livro nunca mais apareceu.
- E o livro, Pereira?
- Não gostei e pus fora.
- Pereira!... Tu também erras. Tens vocação? Eu já li também.

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



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