Dr.
Deodato
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Depois de longos anos de espera,
finalmente Deodato entrou em casa com o diploma na mão. Embora tivesse sido
reprovado dois anos, mesmo assim foi recebido festivamente. A fazenda do
coronel Pereira, encheu-se de convidados. Naqueles tempos não era fácil formar
um filho. Mandá-lo para Pernambuco, Escola de Agronomia de Tapera, cortando
léguas de sertão a cavalo e viajando de trem. Mesmo assim, o coronel Pereira
enfrentou o problema, contanto que tivesse a satisfação de ter um filho doutor.
Pois ali estava Deodato, formadinho da silva, para alegria do coronel.
Mas a festa já não terminou bem. Na
hora propícia, o vigário da freguesia fez uma saudação a Deodato e elogios à
família Pereira. Ao concluir Deodato não se manifestou. Sentado estava, sentado
ficou. O coronel Pereira lembrou ao filho que fizesse o agradecimento.
O bicho ficou vermelho, tremendo as bochechas,
mas teve que levantar-se. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não
saíram. Por fim, gaguejou quatro besteiras e sentou-se apavorado. Coronel
Pereira teve que levantar-se para agradecer e justificar que o menino estava
emocionado. Lá por dentro, entretanto, fervia-lhe a vontade de dar-lhe uma boa
sova. Depois da recepção.
- “Perdi meu dinheiro e todos os
sacrifícios que fiz. Mas isto não vai ficar assim”. Pedia a Deus que os
convidados se retirassem. Precisava ajustar contas com o cavalocípede. A final,
todos saíram. Já era à tardinha, o sol procurando lugar para se esconder.
- Vem cá Deodato. Dize-me uma coisa.
O que diabo foi que aprendestes. Como é que nos fazes uma vergonha daquela.
Abristes a boca só para dizer quatro asneiras e isso mesmo gaguejada. O que foi
que aprendestes.
- Ora, papai, não tenho vocação para
oratória.
- É preciso ser orador, seu
eletro-burro, para fazer um simples agradecimento. Pois olha, teu pai nem
concluiu o curso primário, mas não se engasgou. O que fizestes do dinheiro que
te mandava. Onde estão os teus livros. Quero vê-lo. E foi aí que Deodato
assombrou-se. Vamos ver tuas malas.
- Deixe que eu vou busca-las, pai.
- Não, vou contigo.
De agronomia, só existia mesmo um
livro velho – Agricultura Geral – escrito em Portugal. O resto era romances
safados, até com retratos de mulheres nuas.
- Olha aí o que foi que aprendestes.
Safadeza, só safadezas. Mas não vai ficar assim. Quase matas a gente de
vergonha. E onde estão as notas da escola, quero vê-las.
- Ah! Pai, senhor desconfia de tudo.
Estão aí.
Coronel Pereira tomou-as. As mais
baixas possíveis.
- Tanto esforço que fiz para te
botar nos estudos. Vendia gado, economizava para verte formado, fazendo figura.
E aí está o que me saístes. Uma toupeira com um diploma. E esse anel no dedo
que vale menos do que uma pata de cavalo.
- Pai, escuta pai. Não foi nada
disso que o senhor pensa. Escute-me. Não tenho inteligência, não tenho memória.
Sempre estudei muito. Os meus livros dei aos colegas pobres, que não podiam
comprar. Esforcei-me o quanto pude, mais as coisas não ficavam em minha memória.
Continuei para não dar desgosto ao senhor. Fiquei dois anos porque não
conseguia aprender matemática e uma tal de mecânica. Por sorte fui aprovado
nelas depois e isto mesmo colando. Passava raspando nas outras matérias.
Parecia um castigo. Quando mais estudava, menos aprendia. Os colegas procuravam
me ajudar. Tinham pena de mim.
Nunca consegui falar ou escrever
alguma coisa que prestasse. Mas a culpa não era minha. Minha cabeça não
funcionava. Era como uma rocha dura. Mas eu sei que não serei assim na vida do
campo, cuidando do gado e da fazenda. Para isso tenho gosto. E poderei provar.
Deixa-me trabalhar. Não me diga mais nada sobre estudos. Quando não se dá para
uma coisa dá-se para outra.
- E aqueles livros indecentes?
- Não os comprei. Foram para ver se
abria minha inteligência, se despertavam meu gosto pelos livros de literatura.
Mas nada disso valeu. Vai queimá-los?
- Não. Passe-os para cá. Primeiro
vou lê-los. Toma então conta da fazenda. Quero ver o que vai fazer. É uma
oportunidade que vou de dar. Entretanto, vê lá se não vai botar tudo fora.
- Quero cuidar só do manejo da
fazenda. Dos negócios cuidará o senhor. Pelo menos até que eu adquira prática.
- Muito bem. Quero que os meus
amigos mudem de impressão a teu respeito. Não te esqueças que o dinheiro vale
muito mais do que o que se aprende em qualquer escola. Quando se tem dinheiro,
passa-se a ser tudo o mais. Inteligente, bom administrador, respeitado. Olha ai
o Dr. Sabiniano. Bom orador, preparado, com livros publicados, mas, coitado, só
falta pedir esmola. Não passa de um promotorzinho de interior. Quando toma
emprestado, não tem como pagar. Já o padre Quaresma, burro como é; cheio de
granas, já foi até deputado. Chupa o dinheiro dos beatos e está aí mandando na
política e com um fazendão daquela. Tudo a força do vil metal.
O coronel Pereira começou a ler os
livros, iniciando por “Uma freira em camisola”.
Amarrou-se na leitura. E comentava
de si para si. É por isso que aquele corno não estudava... Mas tinha bom
gosto... Deve estar formado em mulheres. Vamos para frente. Safadório... Deixa
o bicho pra lá.
Deodato começou firme. Relacionou os
gados, reformou os cercados, fez mais divisões, melhorou as aguadas e cuidou
das pastagens. Montado a cavalo percorria os campos diariamente, com o vaqueiro.
Os rebanhos de vacas e garrotes, cabras e ovelhas cresciam. Guardava forragem
seca para o verão. Comprava farelo de algodão, proteinado, quando estava mais
barato. Na vazante do açude e na revência, cultivava forrageira. O coronel
Pereira acompanhava tudo, admirado. Poderia ter feito o mesmo, mas nem sequer
lembrou-se disso. Deodato falou com o pai:
– Temos muita forragem e o ano está sendo bom
de inverno. Compre mais novilhas e mais garrotes. Lucrar-se mais.
- E quando chegar o verão, Deodato.
Que irás fazer?
- Vou construir um silo, plantar
milho, encher de palha e espigas, cobrir com terra e esperar a seca.
- Que invenção é esta, Deodato. Vai
apodrecer tudo.
- Não, pai, aprendi na escola. Lá
tinha um. A forragem fica até mais cheirosa e o gado gosta demais.
- Bem. Faze lá tuas coisas, mas não
ponhas dinheiro fora.
As chuvas caíram, com certa
regularidade. Os milharais começaram a espigar. Quando os grãos encheram,
Deodato encheu o silo.
- Vais perder este milho. Nunca se
ouviu falar nisso, Deodato.
- Deixe comigo, pai.
Quando o verão estalou e as
pastagens secaram, Deodato abriu o silo. O gado comia com voracidade e o leite
até aumentou.
- Olha Creusa, não perdemos o nosso
dinheiro. O menino é sabido demais. Isso de não saber fazer discurso é besteira.
A coisa está indo muito bem. Os gados nutridos, mais leite, mais queijo, mais
bezerros.
Talvez se fosse inteligente e
discursador, estivesse por aí namorando, metido na política e vivendo como vive
o Dr. Sabiniano. Tomando benção às titicas...
Apenas o menino não tinha vocação
para as letras. Vamos fazer outra festa, oferecer um almoço aos amigos,
apresentar novamente o Deodato. Mas sem discurso. Vão ver o menino quem é.
E dezembro chegou. Em parte nenhuma
do mundo existira céu mais bonito, mais azul ou mais estrelado. Quem nunca viu
não tem noção do que é o Universo. O coronel Pereira e dona Creusa prepararam a
festa.
- Não se toca nos rebanhos que
Deodato dirige. Compram-se fora carneiros gordos e os perus estão aí fazendo
roda. Queijada, vinhos do porto, boa pinga e outras bebidas.
A casa da fazenda entupiu-se de
gente. Moças, rapazes, fazendeiros e gente da cidade. Deodato já não era mais
aquele recém-formado com duas reprovações. Agora era o homem do campo afinado
com a sua vocação. Não tinha nada que ter ido estudar. Aquela história de
matemática, química, biometria, não entrava na sua cabeça. Por isso havia
passado duros vexames e não havia aprendido nada.
Agora, não. Possuía sua pequena
biblioteca sobre agricultura e pecuária, coisa que gosta de ler e já lhe
entrava na memória como se já fizesse parte dele.
No final do almoço, o escrivão do
cartório, metido a gaiato, pretendeu embaraçar novamente o Dr. Deodato. Pura
perversidade. Mas o bicho tinha sangue ruim nas veias. Queria assistir o
fiasco. Levantou-se e fez um discurso elogioso, referindo-se seguidamente ao
Dr. Deodato, ilustre técnico.
O coronel Pereira mordia as pontas
do bigode. Não sabia por que havia convidado o escrivão. – “Sujeito ordinário.
Sabe que o Deodato não é para discursar. Nova decepção. Mas esse peste me
paga”.
O escrivão terminou o discurso
reforçando os elogios. A expectativa era geral.
Deodato levantou-se. Todos se
voltaram para ele, como se vissem uma coisa estranha. O escrivão antegozava o
fiasco.
- Meus amigos. Amigos diletos de meu
pai e de minha família. Deodato Pereira não é o técnico de quem tanto falou o
senhor escrivão, com a sua eloqüência já tão conhecida. Felizmente já quase
nada me resta do curso que fiz. Havia errado os caminhos da vida. Minha vocação
era bem outra, a vida do campo, onde se convive com a natureza e não com os
compêndios e os gabinetes, onde se enche a mente de coisas teóricas. Sou hoje,
o que deveria ser; um homem da terra, de chapéu de couro e vestido de gibão.
Agradeço a presença dos senhores e os convidado para mais tarde, conhecerem o
que tem feito o Deodato.
Levantaram-se para aclamar o Dr. Deodato
como fazendeiro, mestre na agronomia. O senhor escrivão havia perdido o seu
latim e sentia-se perdido naquele ambiente de satisfação. E todos olhavam para
ele esboçando um risozinho safado.
Deodato não ficou somente aí. A
filha do coronel Agrício, o maior fazendeiro da região, estava voltada para
ele. Sertaneja queimada de sol, bonita de dar agonia, novinha como um bugarí
que acabava de desabrochar, sorria para o Dr. Deodato, com o coração pulando
escondido sob os seios, guardados pela blusa de renda. Dois diabinhos apontando
sempre pra gente.
Deodato conversava com Dilene,
despertando os comentários das outras moças que andavam de olho no filho do
coronel Pereira.
- Não sei como Dilene pode gostar de
um bicho tão sem graça.
- Ora, é uma matuta, metida na
fazenda a vida toda, depois que saiu do colégio. Não vê ninguém.
Diz outra: - Vocês estão é com
ciúme. É um homem simpático, firme, e bem de vida.
- Sujeitinho de cara lisa, todo
bonitinho, como vocês dizem, só serve de enfeite. Para casar, não!
- Dilene está certa. Ela que não
solte se não eu pego. Pelo menos tentarei.
- Quero em casa um homem e não
boneco de louça.
O escrivão, desambientado tentou
refazer-se. Mas ninguém o ajudou. Perdeu a graça e despediu-se. Foi o seu
último discurso.
Meses mais tarde o Dr. Deodato
estava casado, morando na mesma fazenda.
O coronel Pereira relia Uma freira em
Camisola, às escondidas da mulher e do filho.
Aconteceu, entretanto a confirmação
do ditado – “cochilou, o cachimbo cai”. Adormeceu com o livro na mão. Dona
Creusa, inesperadamente, leu o título do livro. Acordou o marido.
- Que livro é este com título tão
esquisito, Pereira.
- Aí, mulher é a historia de uma
freira que não tinha vocação para a vida religiosa, como aconteceu com o
Deodato.
- Então quero ler também.
- Depois.
E o livro nunca mais apareceu.
- E o livro, Pereira?
- Não gostei e pus fora.
- Pereira!... Tu também erras. Tens vocação?
Eu já li também.
*Este conto faz parte do livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
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