O CROINHA*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Filho de pais
pobres e religiosos, o Croinha, foi viver em casa do padre João e começou
espanando os altares, mudando as velas dos castiçais e em seguida passou a
ajudar missa com todas as respostas decoradas. Memória não lhe faltava.
Memorizava tudo com facilidade, inclusive partes das epístolas dos sermões dos
domingos. Padre João não teve dúvida que o Francisco dos Santos, daria um padre
de boa raça. Falou com o Bispo e com o Reitor do Seminário e lá se foi o
Francisco para o Seminário sob o patrocínio das Vocações Sacerdotais e ajuda do
padre João que lhe dava o enxoval e algum dinheiro para lanches.
Francisco dos
Santos não se embaraçou. Enfiou-se no meio dos colegas, fez rapidamente camaradagem.
Com a facilidade que tinha de decorar as coisas, tornava-se um contador de
anedotas. Gostaria tanto de saber por que existe a Santíssima Trindade e
ninguém lhe explicava: Pai, filho e Espírito Santo. O Pai, certamente refere-se
a Deus, o supremo criador de todas as coisas. O Filho deve ser Jesus Cristo,
mas o Espírito Santo, em forma de uma pombinha, não tinha a mínima idéia de
quem poderia ser.
- Pois olhe, se
quer continuar aqui, deixe de tanta pergunta e aprenda o que se ensina. Religião
e dogmas não se discutem. O problema é ter fé. Acreditar sem ver, sem pegar,
sem pesar nem medir. É muito mais cômodo. E basta!
Francisco dos
Santos resolveu fazer o seu curso sem pestanejar. Virar padre, ganha uma
paróquia, afinar as mãos e viver tranqüilo como os outros. Não adiantava ficar
questionando com coisas da Santa Fé. Quem com muitas pedras bole, uma lhe cai
na cabeça. Era aprender o latinório, decorar alguns trechos sagrados de uso
corrente e deixar mistérios e dogmas para lá. Era coisa que nem dava conforto e
muito menos dinheiro. E davam, sim pelo mistério que os envolvia. As coisas
misteriosas causam medo, especialmente tendo purgatório e inferno pela frente.
Para haver bom rendimento sem trabalho, havia de ser assim. Implantar o pavor
do desconhecido. Quem quiser ganhar um cantinho no Paraíso, que colabore com a
igreja, isto é, com os reverendos.
Francisco dos
Santos lia e relia o que pegava, mas guardava só para ele. Exteriorizar somente
a velha rotina, o beabá costumeiro e acentuar os rigores das penas eternas. Na
intimidade, Francisco dos Santos – o Croinha – meditava e se perguntava quem
havia criado Deus, e tantos mistérios, senão os próprios padres. Imaginaram,
passaram para o papel, enfeitaram os pés do pavão, a coisa deu certa e tocaram
pra frente, tocando seu berimbau... E agora estava ele fazendo parte da orquestra,
embora tocando rabeca. Da daqui e da de lá. O Croinha ordenou-se. Deram-lhe uma
freguesia nos confins do Sertão, metida nas brenhas. Já conheciam suas
tendências e que fosse viver com elas pra lá. Caso subvertesse a ordem, teria
pouca repercussão. Mas estavam completamente enganados. O Croinha não queria
outra coisa senão ganhar dinheiro, e cumprir religiosamente sua ordenação.
Sabia que quando estivesse rico seria chamado e adulado. Teria paróquias para
escolher e promoções da dar com o pé. Iriam ver quem era o Croinha. E assim,
não perdia vasa para fazer festas e leilões. Santos que os paroquianos nunca
tinham ouvido falar, eram festejados. E venha dinheiro. Comprou fazendas,
gados, andava como um penitente, quase um flagelado, um modelo de humildade. Recomendava
aos seus fieis, honestidade, trabalho e amor ao próximo. Não seria necessário
passar o tempo rezando. O cumprimento das obrigações agrada muito mais a Deus.
Essa era sim obrigação dele. Rezava por todos. Para isto havia se ordenado. No
entanto não deixassem de contribuir para a Madre Santa Igreja. Os locais de
oração deveriam ser mantidos limpos e bem zelados. E era assim que conservava a
matriz e as capelas dos distritos. Fazia gosto vê-las. Fazia, do púlpito suas
prestações de conta. Havia gasto para isso, parte de suas minguadas economias.
- E minha gente, dizia a zeladora chefe, precisa-se
ajudar melhor a igreja. Não vêem como são tratadas as igrejas. Lá dentro está
Nosso Senhor e os Santos, olhando por todos. Permaneceu lá a vida toda só vigiando
os seus irmãos na fé.
E o padre João somava suas economias, engrossava
sua fortuna. Em casa não lhe faltava galinhas gordas e capões. Doces e frutas
sertanejas. O que havia de melhor.
Tempos depois correu a notícia entre o clero; o padre
João de Cacimbas, estava rico. Monsenhor Salustiano foi lá e viu. Ficou
espantado. Não atinava como era que num lugarejo pobre daquele, se podia fazer
tamanho milagre. Fazendão, muito gado e muito dinheiro. As gavetas da cômoda
estavam apipadas. Muita nota e muita prata. E quando padre João menos esperava,
já havia sido promovido a cônego, por merecimento. E só se vendo o zelo com as
casas de oração. Uma jóia. O povo o venerava pela sua humildade. Considerado um
santo.
Tentaram dar-lhe outra paróquia maior e mais perto
do bispado. Recusou. Estava muito bem onde estava. Que o deixassem lá. Não
tinha ambições.
E do púlpito da igreja explicou o seu gesto ao seu
povo. E foi aplaudido. Ninguém desejava sua saída. “Deus que nos livre”.
Seu apostolado era ume exemplo. Pensaram, em
castiga-lo, pelas suas impertinências de seminarista e o tiro saiu pela
culatra. Mas haviam de dar um jeito. Havia muitas freguesias que pouco rendia e
deveriam ser recuperadas. E para isso ninguém melhor do que o padre João com
sua santa habilidade. Arrecadadora. O senhor bispo chamou-o e tentou
convencê-lo. Porque então, iria envelhecer naquele buraco lá nos confins
daqueles Sertões brabos. Não seria justo.
- Não senhor, dom Patrício, ainda não paguei minhas
irreverências de seminarista. Sofreria muito se saísse de perto daquele meu
povo.
- Mas padre João, há diversas freguesias por aí a
fora que rendem muito pouco. Uma lástima os vigários não têm habilidade ou o
povo não acredita neles. O jeito é mandá-lo para essas paróquias. Prepara uma,
prepara outra e assim, no final, escolhe uma a seu gosto.
- Não, senhor bispo. Trabalhei de mais com
humildade e zelo. Iria envelhecer sem tranqüilidade.
-Ora, dizem que o senhor já possui uma fortuna.
Terá, assim, uma velhice de rico. A igreja exige um pouco de sacrifício de sua
parte.
-Oh! Excelência, mais do que já fiz quando me
jogaram, moço e inexperiente para uma lonjura daquela. E além disso um lugar
atrasado e perigoso. Piedosamente submeti-me. Agora, deixei-me lá.
- Mas isto é um ato de rebeldia. Uma falta de
espírito de colaboração, para com a igreja.
- Bem, o senhor me exige, eu recuso.
- Sabe que posso suspender-lhe as ordens
- Sei, sim senhor, mas dela não sairei nem por
gosto nem á força. Prefiro deixar a batina. Na realidade, dentro das normas
práticas da igreja, não preciso mas dela. Tenho com que viver. Voltarei a ser
um civil e com vantagem de poder me casar, coisa que a santa Sé, não permite,
embora seja absurda.
Aliás, é o que devo fazer. Saio num dia , caso-me
no outro.
- A Igreja proíbe e poderá ser excomungado. Esta
lembrado disto?
Quero ver se a excomunhão vai acabar com o meu
gado, minhas terras, meu dinheiro e evitará que o Sr. Juiz me case. E quer
saber de uma coisa, faça o senhor como quiser. Vou voltar e lá ficarei
esperando o impacto. Só de pedrada grande. Se for pequena eu aparo!
- O senhor é irreverente. O seminário estava mal dirigido.
Comigo não teria se ordenado.
- Por ventura o senhor pensa que não conheço a
vidoca dos bispos e padres. De mim é que nenhum terá o que mostrar de errado. E
nem tenho culpa de o povo de minha freguesia me querer bem. Apenas trato-os bem
ora esta. E essa estima nasce de minha conduta de padre, fiel ao seu
apostolado. Os outros que façam o mesmo. Já deixei, por ventura, de
recolher-lhe sua participação no pouco que arrecado sem abusar de minha
profissão. Nunca, bem sabe o senhor disso. Alias, há muito tempo estou pra
fazer-lhe uma consultazinha.
- Sobre o que? Não me venha com um de seus
disparates.
- Não eminência. É sobre uma dúvida, que me
acompanha. Coisa tola, mas, gostaria de se esclarecido.
- Vai lá, desembucha de uma vez.
- Bem, porque os senhores chamam paróquia de “freguesia”.
Entendo que freguesia é de casa comercial e a Igreja não é casa de negócio. Freguesia!
A coisa me parece de origem suspeita e explorativa.
- Eu já sabia que seria um disparate. E o que tem
isto. É apenas uma forma de expressão.
- Está bem. Deixe como está, já entendi. É o que eu
pensava mesmo. Lá em minha terra, não uso essa expressão. Não tenho freguesia.
Tenho irmãos e uma “paróquia”. Pois será assim, serei padre até o momento que
V. Excelência quiser. Teria preocupação se me faltasse coragem para trabalhar e
não tivesse tido o bom senso de fazer economia, vivendo modesta e honestamente.
Praticamente, só me falta uma coisa: - uma
companheira legalizada. Já estou saturado de andar pegando biscate, trocando de
arrumadeira e andando escondido como se fosse um marginal ou um ladrão de
frutas dos quintais alheios.
Será que só quem se cansa disto sou eu. É tão
bonito ter um lar, mulher que a gente ame e um par de filhos legítimos.
- Ponha-se fora daqui, seu desabusado. Não quero
mais vê-lo.
- Ponha-me para fora da Igreja; isto sim. Ou então
me espere. Eu mesmo tomarei a iniciativa. Já tenho na visada, uma companheira
que é uma jóia. Só me falta mesmo desabotoar esta saia preta, saia da renúncia.
- Imagino como anda essa sua paróquia!
- Bem, até outra vista. Já ouvi demais, suas
pieguices...
Despediu-se e se foi.
Dias depois recebeu o padre João uma suspensão de
seis meses. E não teve dúvida. Enrolou uma de suas batinas mais novas e
mandou-a de presente ao bispo, com o seguinte recado:
Sua
“freguesia” esta vaga. Convido-o para o meu casamento. Meu endereço, por ora, é
Fazenda “Mulher Bonita”, o resto do endereço é o mesmo. Quando quiser passar
umas férias no meu retiro, apareça. Agradeço a suspensão, que deu oportunidade
de tornar-me um dos homens mais felizes de seu bispado. Não tenha acanhamento.
Padre João.
- Bandido... Só eu não tenho esta coragem. Esta
vida é uma pinícula. Um padreca daquele, rico, independente e cerrando de cima.
Mete-se na batina, enrola os bestas, compra fazenda, enche-a de gado, junta
dinheiro e, por fim, desabotoa a batina, tem o desplante de mandar-me de
presente e convidar para o casamento. É, está de papo cheio! Bandido. Além de
tudo perdi a côngrua. Mando pra lá uma zebra qualquer e está visto que não me
vai arrecadar um quarto. E na certa o fogoso padre João, não me mandava pelo
contado... O bicho é muito esperto. Dinheiro, saúde de jumento, mulheres... E
vai se ver que daqui por diante não pega mais no rosário.
E pegou o
breviário e atirou-o em cima da mesa com certo desprezo. Rezar, só rezar feito
um idiota, pregando velhacarias, contando lorotas, comendo como um bicho e
dormindo como uma jibóia empapada. O que é bom mesmo é para o padre João, mau
seminarista e manhoso. Croinha de uma figa! Está me tentando ir visitá-lo,
conhecer sua mulher e se puder aplicar-lhe um bom par de galhos. Só é o que
aquele safadório e espertalhão merece...
Mas, afinal , depois de algumas noites de insônia,
resolveu o contrario. O padre João não era sopa. Poderia até tirar partido de
sua visita. Pregar-lhe alguma peça.
Pois não é que dias depois recebeu o bispo uma
fotografia do casamento do sem vergonha, beijando a mulher, com uma
dedicatória: Ao meu amado bispo, João e Letinha, a felicidade a dois.
Em 28.7.1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no
prelo.
maracajag@hotmail.com
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