quarta-feira, 6 de junho de 2012

O CROINHA


O CROINHA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

                Filho de pais pobres e religiosos, o Croinha, foi viver em casa do padre João e começou espanando os altares, mudando as velas dos castiçais e em seguida passou a ajudar missa com todas as respostas decoradas. Memória não lhe faltava. Memorizava tudo com facilidade, inclusive partes das epístolas dos sermões dos domingos. Padre João não teve dúvida que o Francisco dos Santos, daria um padre de boa raça. Falou com o Bispo e com o Reitor do Seminário e lá se foi o Francisco para o Seminário sob o patrocínio das Vocações Sacerdotais e ajuda do padre João que lhe dava o enxoval e algum dinheiro para lanches.
                Francisco dos Santos não se embaraçou. Enfiou-se no meio dos colegas, fez rapidamente camaradagem. Com a facilidade que tinha de decorar as coisas, tornava-se um contador de anedotas. Gostaria tanto de saber por que existe a Santíssima Trindade e ninguém lhe explicava: Pai, filho e Espírito Santo. O Pai, certamente refere-se a Deus, o supremo criador de todas as coisas. O Filho deve ser Jesus Cristo, mas o Espírito Santo, em forma de uma pombinha, não tinha a mínima idéia de quem poderia ser.
                - Pois olhe, se quer continuar aqui, deixe de tanta pergunta e aprenda o que se ensina. Religião e dogmas não se discutem. O problema é ter fé. Acreditar sem ver, sem pegar, sem pesar nem medir. É muito mais cômodo. E basta!
                Francisco dos Santos resolveu fazer o seu curso sem pestanejar. Virar padre, ganha uma paróquia, afinar as mãos e viver tranqüilo como os outros. Não adiantava ficar questionando com coisas da Santa Fé. Quem com muitas pedras bole, uma lhe cai na cabeça. Era aprender o latinório, decorar alguns trechos sagrados de uso corrente e deixar mistérios e dogmas para lá. Era coisa que nem dava conforto e muito menos dinheiro. E davam, sim pelo mistério que os envolvia. As coisas misteriosas causam medo, especialmente tendo purgatório e inferno pela frente. Para haver bom rendimento sem trabalho, havia de ser assim. Implantar o pavor do desconhecido. Quem quiser ganhar um cantinho no Paraíso, que colabore com a igreja, isto é, com os reverendos.
                Francisco dos Santos lia e relia o que pegava, mas guardava só para ele. Exteriorizar somente a velha rotina, o beabá costumeiro e acentuar os rigores das penas eternas. Na intimidade, Francisco dos Santos – o Croinha – meditava e se perguntava quem havia criado Deus, e tantos mistérios, senão os próprios padres. Imaginaram, passaram para o papel, enfeitaram os pés do pavão, a coisa deu certa e tocaram pra frente, tocando seu berimbau... E agora estava ele fazendo parte da orquestra, embora tocando rabeca. Da daqui e da de lá. O Croinha ordenou-se. Deram-lhe uma freguesia nos confins do Sertão, metida nas brenhas. Já conheciam suas tendências e que fosse viver com elas pra lá. Caso subvertesse a ordem, teria pouca repercussão. Mas estavam completamente enganados. O Croinha não queria outra coisa senão ganhar dinheiro, e cumprir religiosamente sua ordenação. Sabia que quando estivesse rico seria chamado e adulado. Teria paróquias para escolher e promoções da dar com o pé. Iriam ver quem era o Croinha. E assim, não perdia vasa para fazer festas e leilões. Santos que os paroquianos nunca tinham ouvido falar, eram festejados. E venha dinheiro. Comprou fazendas, gados, andava como um penitente, quase um flagelado, um modelo de humildade. Recomendava aos seus fieis, honestidade, trabalho e amor ao próximo. Não seria necessário passar o tempo rezando. O cumprimento das obrigações agrada muito mais a Deus. Essa era sim obrigação dele. Rezava por todos. Para isto havia se ordenado. No entanto não deixassem de contribuir para a Madre Santa Igreja. Os locais de oração deveriam ser mantidos limpos e bem zelados. E era assim que conservava a matriz e as capelas dos distritos. Fazia gosto vê-las. Fazia, do púlpito suas prestações de conta. Havia gasto para isso, parte de suas minguadas economias.
- E minha gente, dizia a zeladora chefe, precisa-se ajudar melhor a igreja. Não vêem como são tratadas as igrejas. Lá dentro está Nosso Senhor e os Santos, olhando por todos. Permaneceu lá a vida toda só vigiando os seus irmãos na fé.
E o padre João somava suas economias, engrossava sua fortuna. Em casa não lhe faltava galinhas gordas e capões. Doces e frutas sertanejas. O que havia de melhor.
Tempos depois correu a notícia entre o clero; o padre João de Cacimbas, estava rico. Monsenhor Salustiano foi lá e viu. Ficou espantado. Não atinava como era que num lugarejo pobre daquele, se podia fazer tamanho milagre. Fazendão, muito gado e muito dinheiro. As gavetas da cômoda estavam apipadas. Muita nota e muita prata. E quando padre João menos esperava, já havia sido promovido a cônego, por merecimento. E só se vendo o zelo com as casas de oração. Uma jóia. O povo o venerava pela sua humildade. Considerado um santo.
Tentaram dar-lhe outra paróquia maior e mais perto do bispado. Recusou. Estava muito bem onde estava. Que o deixassem lá. Não tinha ambições.
E do púlpito da igreja explicou o seu gesto ao seu povo. E foi aplaudido. Ninguém desejava sua saída. “Deus que nos livre”.
Seu apostolado era ume exemplo. Pensaram, em castiga-lo, pelas suas impertinências de seminarista e o tiro saiu pela culatra. Mas haviam de dar um jeito. Havia muitas freguesias que pouco rendia e deveriam ser recuperadas. E para isso ninguém melhor do que o padre João com sua santa habilidade. Arrecadadora. O senhor bispo chamou-o e tentou convencê-lo. Porque então, iria envelhecer naquele buraco lá nos confins daqueles Sertões brabos. Não seria justo.
- Não senhor, dom Patrício, ainda não paguei minhas irreverências de seminarista. Sofreria muito se saísse de perto daquele meu povo.
- Mas padre João, há diversas freguesias por aí a fora que rendem muito pouco. Uma lástima os vigários não têm habilidade ou o povo não acredita neles. O jeito é mandá-lo para essas paróquias. Prepara uma, prepara outra e assim, no final, escolhe uma a seu gosto.
- Não, senhor bispo. Trabalhei de mais com humildade e zelo. Iria envelhecer sem tranqüilidade.
-Ora, dizem que o senhor já possui uma fortuna. Terá, assim, uma velhice de rico. A igreja exige um pouco de sacrifício de sua parte.
-Oh! Excelência, mais do que já fiz quando me jogaram, moço e inexperiente para uma lonjura daquela. E além disso um lugar atrasado e perigoso. Piedosamente submeti-me. Agora, deixei-me lá.
- Mas isto é um ato de rebeldia. Uma falta de espírito de colaboração, para com a igreja.
- Bem, o senhor me exige, eu recuso.
- Sabe que posso suspender-lhe as ordens
- Sei, sim senhor, mas dela não sairei nem por gosto nem á força. Prefiro deixar a batina. Na realidade, dentro das normas práticas da igreja, não preciso mas dela. Tenho com que viver. Voltarei a ser um civil e com vantagem de poder me casar, coisa que a santa Sé, não permite, embora seja absurda.
Aliás, é o que devo fazer. Saio num dia , caso-me no outro.
- A Igreja proíbe e poderá ser excomungado. Esta lembrado disto?
Quero ver se a excomunhão vai acabar com o meu gado, minhas terras, meu dinheiro e evitará que o Sr. Juiz me case. E quer saber de uma coisa, faça o senhor como quiser. Vou voltar e lá ficarei esperando o impacto. Só de pedrada grande. Se for pequena eu aparo!
- O senhor é irreverente. O seminário estava mal dirigido. Comigo não teria se ordenado.
- Por ventura o senhor pensa que não conheço a vidoca dos bispos e padres. De mim é que nenhum terá o que mostrar de errado. E nem tenho culpa de o povo de minha freguesia me querer bem. Apenas trato-os bem ora esta. E essa estima nasce de minha conduta de padre, fiel ao seu apostolado. Os outros que façam o mesmo. Já deixei, por ventura, de recolher-lhe sua participação no pouco que arrecado sem abusar de minha profissão. Nunca, bem sabe o senhor disso. Alias, há muito tempo estou pra fazer-lhe uma consultazinha.
- Sobre o que? Não me venha com um de seus disparates.
- Não eminência. É sobre uma dúvida, que me acompanha. Coisa tola, mas, gostaria de se esclarecido.
- Vai lá, desembucha de uma vez.
- Bem, porque os senhores chamam paróquia de “freguesia”. Entendo que freguesia é de casa comercial e a Igreja não é casa de negócio. Freguesia! A coisa me parece de origem suspeita e explorativa.
- Eu já sabia que seria um disparate. E o que tem isto. É apenas uma forma de expressão.
- Está bem. Deixe como está, já entendi. É o que eu pensava mesmo. Lá em minha terra, não uso essa expressão. Não tenho freguesia. Tenho irmãos e uma “paróquia”. Pois será assim, serei padre até o momento que V. Excelência quiser. Teria preocupação se me faltasse coragem para trabalhar e não tivesse tido o bom senso de fazer economia, vivendo modesta e honestamente.
Praticamente, só me falta uma coisa: - uma companheira legalizada. Já estou saturado de andar pegando biscate, trocando de arrumadeira e andando escondido como se fosse um marginal ou um ladrão de frutas dos quintais alheios.
Será que só quem se cansa disto sou eu. É tão bonito ter um lar, mulher que a gente ame e um par de filhos legítimos.
- Ponha-se fora daqui, seu desabusado. Não quero mais vê-lo.
- Ponha-me para fora da Igreja; isto sim. Ou então me espere. Eu mesmo tomarei a iniciativa. Já tenho na visada, uma companheira que é uma jóia. Só me falta mesmo desabotoar esta saia preta, saia da renúncia.
- Imagino como anda essa sua paróquia!
- Bem, até outra vista. Já ouvi demais, suas pieguices...
Despediu-se e se foi.
Dias depois recebeu o padre João uma suspensão de seis meses. E não teve dúvida. Enrolou uma de suas batinas mais novas e mandou-a de presente ao bispo, com o seguinte recado:
 Sua “freguesia” esta vaga. Convido-o para o meu casamento. Meu endereço, por ora, é Fazenda “Mulher Bonita”, o resto do endereço é o mesmo. Quando quiser passar umas férias no meu retiro, apareça. Agradeço a suspensão, que deu oportunidade de tornar-me um dos homens mais felizes de seu bispado. Não tenha acanhamento.
Padre João.
- Bandido... Só eu não tenho esta coragem. Esta vida é uma pinícula. Um padreca daquele, rico, independente e cerrando de cima. Mete-se na batina, enrola os bestas, compra fazenda, enche-a de gado, junta dinheiro e, por fim, desabotoa a batina, tem o desplante de mandar-me de presente e convidar para o casamento. É, está de papo cheio! Bandido. Além de tudo perdi a côngrua. Mando pra lá uma zebra qualquer e está visto que não me vai arrecadar um quarto. E na certa o fogoso padre João, não me mandava pelo contado... O bicho é muito esperto. Dinheiro, saúde de jumento, mulheres... E vai se ver que daqui por diante não pega mais no rosário.
 E pegou o breviário e atirou-o em cima da mesa com certo desprezo. Rezar, só rezar feito um idiota, pregando velhacarias, contando lorotas, comendo como um bicho e dormindo como uma jibóia empapada. O que é bom mesmo é para o padre João, mau seminarista e manhoso. Croinha de uma figa! Está me tentando ir visitá-lo, conhecer sua mulher e se puder aplicar-lhe um bom par de galhos. Só é o que aquele safadório e espertalhão merece...
Mas, afinal , depois de algumas noites de insônia, resolveu o contrario. O padre João não era sopa. Poderia até tirar partido de sua visita. Pregar-lhe alguma peça.
Pois não é que dias depois recebeu o bispo uma fotografia do casamento do sem vergonha, beijando a mulher, com uma dedicatória: Ao meu amado bispo, João e Letinha, a felicidade a dois.
Em 28.7.1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
maracajag@hotmail.com

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