quarta-feira, 27 de junho de 2012

CATOLÉ


CATOLÉ*

João Henriques da silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Cidade pequena do interior, enfiada lá nos confins do sertão. Vida tranqüila, quase doméstica. Todos se conheciam e se ajudavam naturalmente.
            Quando alguém chegava de fora para se instalar em Catolé, botavam-se os olhos em cima. Gente de mau comportamento ficava isolada e findava desertando. Começava logo pelo comércio que se recusava a vender, mesmo a dinheiro vivo.
             – “Não. Não temos”.
            Mas certo dia chegou Pantaleão com a mulher e duas filhas moças, morenas dessas de sopapo. Bonitas de rosto e belas de corpo. Foi um impacto na cidadezinha. Ninguém sabia quem era Pantaleão, de onde tinha vindo e o que pretendia fazer. Também não sabiam se era algum cabra valente, vindo lá das bandas do Piancó, onde só se tinha medo das secas. Pantaleão instalou-se numa ponta de rua, em casa alugada com uma porta e duas janelas de frente.
            Bom de conversa, não perdia missa aos domingos e dava esmola a quem pedisse. Não tinha ocupação e nem dizia o que pretendia fazer. A curiosidade era geral, sobretudo pela a atração das duas meninas, que iam e vinham sem dar a menor confiança a quem botava os olhos em cima delas.
            Os comentários era o prato do dia, mas tudo a boca pequena.
            A figura de Pantaleão imprimia respeito. Alto, fornido de corpo sem ser gordo, fisionomia de cabra macho. A rapaziada vivia intrigada com a esquisitice das duas moças. Passavam como se caminhassem num deserto humano. Estudavam um meio de quebrar a resistência das meninas. Chegaram até a instituir prêmios para quem se aproximasse primeiro das duas intocáveis filhinhas do papai Pantaleão.
            Mal sabiam que era uma atitude calculada com a finalidade de chamar a atenção, de tornarem-se mais facilmente conhecidas.
            Pantaleão, por sua fez, estudava o ambiente comercial ou a possibilidade de adquirir uma fazenda nos arredores da cidade. Instalara-se em uma casa modesta muito de propósito.
            Não tinha pressa em revelar-se. Aumentavam as expectativas com aquela família esquisitona. Não tinham ocupação e viviam tranquilamente, sem demonstrar preocupação. Até o vigário e o delegado tomavam posição. Padre Néco ansiava para que alguém da família fosse se confessar, numa tentativa de colher alguma dica. O delegado procurava intimidade com Pantaleão, fazia-se de muito cordial, mas o mistério continuava.
             – “Este Pantaleão deve ter vindo de muito longe e quem sabe, um homem perigoso, algum brabão que vinha se ocultar em Catolé”.
            O diabo é que a conduta da família era irrepreensível.
            Certo dia lá estava os três Pantaleão na fila do confessionário.
            Padre Néco ficou irradiante. Seria o primeiro a desvendar o mistério. Iria empregar todo o poder de suas artimanhas. Uma ou outra teria que se descobrir.
            - Vai agora, menina. Serei a última.
            Cinira ajoelhou-se. Padre Néco esfriou – esfregava as mãos antegozando a vitória. Iniciou a confissão meio embaraçado. Cinira depois da reza recomendada contou algumas coisas banais. Nada cheirava a pecado.
- Minha filha, você é quase uma santa. Não esta me ocultando alguma coisa?
- Graças a Deus, não, seu vigário.
- Gostaria de saber donde você veio. Toda a cidade deseja saber, conhecer uma família tão admirada quanto a sua.
- O senhor faça o favor de perguntar a papai.
E levantou-se. Depois da Salete, ajoelhou-se dona Cristina. Desta vez não falharia. Desse no que desse. Não tinha podido puxar pelas meninas, mas dona Cristina, católica fervorosa, daria maior atenção ao vigário. Depois da penitencia – apenas rezar um terço, levantou-se antes que o padre tivesse tempo de abrir o bico. Desapontado, ouviu a pecadora seguinte. Por sorte do diabo, trazia uma boa carga de pecados, algumas de arrepiar os cabelos. Padre Néco, embora já estivesse habituado a saber da vida íntima dos outros, ficou escandalizado.
- Você fez tudo isso, filha?
- Não, seu vigário, contei somente uma parte. Deixei o resto para depois. A penitencia ficaria menos pesada...
- Assim, não poderei perdoá-la.
- Então vamos deixar tudo para a próxima vez.
Padre Néco interessado como estava em ouvir o resto, ficou decepcionado.
- Hoje não é meu bom dia. Estou de má sorte. – “Pergunte a papai”... Menina malcriada. E é pena. Tão bonita que é. Também não se sabe quem é. Chegaram sós e só para confundir todo mundo. Não se fala noutra coisa. Pantaleão pra cá, Pantaleão pra lá e ninguém desvenda o mistério. Eu mesmo fracassei redondamente.
Quando menos se esperava, correu a notícia. Seu Pantaleão comprou a fazenda do coronel Jacinto. A maior das redondezas. Á vista e de porteira fechada. E também de surpresa, comprara uma das casas melhores da cidade. Foi um alvoroço. O homem botava as unhas de fora. Ninguém o chamava mais de Pantaleão. Agora era Coronel Pantaleão Pereira.
Os políticos se assanharam.
- Vai tomar conta de tudo. Teremos que nos resguardar. Vamos ver que partido vai tomar. O bicho é manhoso e já deve ter escolhido. Está aqui esse tempo todo, só observando as coisas. Ainda hoje não se sabe quem é e nem de onde veio. Só se sabe verdadeiramente é que as filhas são as moças mais bonitas da cidade. Mais tarde vieram, a saber, que eram ambas, professoras formadas em colégio da capital. E meses mais tarde correu a notícia. O coronel Pantaleão era mesmo coronel reformado da policia de um estado vizinho. O sargento delegado foi logo render homenagem.
 Casado com moça rica, queria passar o resto de sua vida longe do cotidiano de tantos anos de profissão. As filhas iriam estranhar, mas terminariam se acomodando no sertão que, aliás, tinham um imenso desejo de conhecer. E estavam gostando. Ambiente social e clima diferente. Deliciavam-se com o desapontamento da rapaziada. Toda aquela encenação havia sido preparada para despertar curiosidade e dar tampo as sondagens que o coronel Pantaleão queria fazer.
Inesperadamente o coronel recebe duas visitas. Nada mais, nada menos do que os dois namorados das meninas. E noivaram ambas, mas com uma condição. Casar e morar em Catolé. Ali havia campo para um médico e um dentista. Voltaria para o padre Néco dar-lhes um banho de água benta e com algumas palavras latinas concedendo licença para morarem juntas.
Pantaleão trazia progresso para Catolé e conquistava a admiração dos catoleenses. Pretenderam envolve-lo na política. Ótimo candidato para prefeito ou deputado estadual.
- Escolhi Catolé para descansar de tantos anos de trabalhos e preocupações. Colaboraria com o partido do governo de quem sempre recebera atenção. Não tinha porque mudar. Caso contrário manter-se-ia politicamente neutro.
A fazenda “Aroeiras” tornava-se um modelo na região. Renovou-se o rebanho e tornava-se um ponto de atração.
As eleições aproximavam-se, apelaram para o padre Néco falar com o coronel Pantaleão a aceitar pelo menos a prefeitura.
- Não padre Néco. Esses cargos devem ser reservados aos homens da terra. Aqueles que fizeram o seu progresso e deram à cidade essa tranqüilidade que se vê.
Darei minha contribuição e tudo farei para que Catolé continue assim tranqüila e acolhedora.
- Mas, coronel, o povo exige.
            - Bem, vamos deixar para o futuro, embora sem compromissos.
            - O senhor será um excelente candidato. Tem o meu voto.
            - Leve aos amigos o meu abraço de agradecimentos e de confiança. Desejamos ser amigos de todos. Viemos aqui para isso.
            Casaram-se as filhas do coronel. A festa foi o maior atrativo de Catolé.
            Foram instalados consultórios e uma escola para os genros e filhas do coronel Pantaleão.
            Um desses terríveis rebentões secos castigava os sertões. Surgiram, então, os grupos de cangaceiros que assaltavam fazendas e pequenas cidades.
            A notícia correu em Catolé. Um grupo de bandidos rondava a cidade. O susto e o medo causavam pânico.
            A população não sabia bem o que fazer. Nas fazendas a segurança era ainda menor.
            Desta feita o coronel Pantaleão, tomou a iniciativa de proteger a cidade. Traçou os planos. Quem possuía armas e munição que se apresentasse. Formaram piquetes em todas as entradas com o maior sigilo.
            - Vamos prender ou dar fim aos cabras. Vamos deixá-los entrar na cidade para encurralá-los. Em seguida faz-se o serviço. O grupo, dizem que é perigosíssimo comandado por um cabra atrevido e valente. Mas deixem comigo. Tira-se o chefe logo na pontaria.
            Em várias casas e em pontos estratégicos, ficava um atirador. Foi colocado gente para avisar a aproximação. Roceiros, gente do povo, desarmados para não causar suspeita.
            O aviso chegou. Lamparina estava bem próximo. Atacava em pleno dia. Além dos saques, abusavam de moças e casadas. E aí de quem se metesse. A última notícia informava: onze cabras bem armados. E o delegado com as suas praças, entrincheirados bem no centro comercial, de um lado e de outro da rua. O primeiro tiro seria o sinal. E era para derrubar Lamparina logo. O preto entrou como se estivesse entrando em casa. Nenhum sinal de reação. O comércio e as casas de família todas de portas fechadas. Isso não tinha importância.Todos dormiam.           
            – “Esta cambada vai ver quem é Lamparina”.
            Preparava o grupo para os assaltos quando caiu com uma bala de rifle na caixa dos peitos. O tiroteio começou e para onde corriam o rifle ia derrubando. Ninguém teve tempo de entregar-se. O grupo foi dizimado. A policia juntou os corpos; mandou abrir uma cova e atirou-os dentro. O preto Lamparina trazia uma lista e orientação. Cada cabra teria direito a duas mulheres e metade dos assaltos. Era o incentivo.
            A notícia correu mundo.
            Em Catolé a população com a policia liquidou o grupo de Lamparina, o terror daquela zona. O governo mandou um tenente saber como foi. Quem planejou a defesa da cidade. Precisava dar-lhe um premio. O tenente voltou com as informações. O cabeça de tudo foi o coronel Pantaleão Pereira. Recusou qualquer premio. Cumprira apenas com seu dever de cidadão. Todos colaboraram. Foi a cidade que se defendeu.
            O governo convidou o coronel Pantaleão para ir ao Palácio. Desejava conhece-lo pessoalmente. Mandou-lhe transporte. E o coronel compareceu. O governador ofereceu-lhe o comando da Policia Militar Estadual. Agradeceu. Estava pronto a servir, mas sem novos encargos.

*Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.




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