terça-feira, 26 de junho de 2012

O LEITEIRO



O LEITEIRO*
João Henriques da silva
(In Memoriam – 17/09/1901 – 16/04/2003)

              - Leite puro, leite puríssimo, diretamente do peito da vaca. 
            E Jotoca ia rua acima, rua abaixo, fazendo a entrega e recebendo o dinheiro. Na verdade só o que era puro era a água, que fazia questão de colocá-la limpinha, coada em pano fino. Também não misturava mais de vinte por cento. Fazia questão de ser honesto. A água era rigorosamente medida. Adquiriria diariamente cinqüenta litros e entregava sessenta. Nem mais uma gota. E tinha também o cuidado especial de fazer uma mistura absolutamente homogênea. Assim tinha a certeza de que todos recebiam um produto igualzinho. Filho de rico e filho de pobre bebia o mesmíssimo leite.
         Não admitia privilégios. Seria desumano. E mesmo rico não dava oportunidade a ninguém. De qualquer forma tomava algumas precauções. Sabia que os fiscais da saúde vez por outra examinavam o produto. E por isto levava sempre um ou dois litros de leite realmente puro. Não fazia como os outros que vendiam leite a granel, em baldes. E todos os dias, um ou dois fregueses eram beneficiados com leite de primeiríssima qualidade. E para ser rigoroso e honesto, fazia a distribuição de forma que variassem os contemplados. Não queria privilégios.
            Jotoca aumentou a freguesia. Já fornecia 70 litros. Estava satisfeito com o negócio. O lucro não era lá essas coisas todas, mas era um ganho certo. No entanto, pensou, em maiores lucros. Não era nada de mais um aumentozinho de cinco por cento. Um quarto de boa água não iria fazer mal a ninguém. Água pura, potável, qualquer um beberia sem reclamar. Além disso, todos pagavam água que até às vezes faltava. Apenas cinco por cento, pouco representava. Poderia até, colocar dez por cento. Ainda era pouca água para tanto leite. E depois o consumidor devia atentar para o fato de que o leite é uma coisa preciosa, saída de xiringuinha em xiringuinha do peito da vaca. Coisa muito limitada. A água, não, descia nas chuvas, ou vinha das fontes e o governo cobrava. Setenta e cinco por cento ainda era muito leite. Se era!
            A experiência ia dando certo. Ninguém havia estranhado ou reclamado. Mas, imprevistamente, o fiscal encontrou. Jotoca apressou-se em apresentar-lhe um litro de leite.
            - Muito bem. Bom, bom mesmo. Quero ver outro.
            - Todo é do mesmíssimo.
            - Faz mal não. E deixe que eu apanhe.
            O grau baixou muito. Jotoca empalideceu. Iria perder tudo. Falou com o fiscal tentando explicar-lhe.
            - As vacas haviam bebido água perto da ordenha e por isto o leite estava dosado. Foi somente naquele dia. Tivesse paciência. Era pobre vivia daquele pequeno negócio.
            Saíram lágrimas forçadas dos olhos cínicos.
            - Tinha mulher e filhos para alimentar.
            O fiscal condoeu-se e marcou a multa e a perda do leite para a próxima vez. Jotoca agradeceu e saiu. Havia se livrado daquela vez. Mas, pela sua experiência, só de mês em mês ou mais, o fiscal lhe aparecia. Tinha, pois, uma boa folga. E logo no dia seguinte, o fiscal pegou-o logo na entrada da rua. Jotoca esfriou. Quase se mija da surpresa.
            - E, então. Como vai o leite?
            - Ótimo, ótimo.
            - Deixa ver. Quero recomendar o teu produto. Sabes como é. Se o fiscal disser que o leite é puro, venderás mais e poderás até aumentar um pouco o preço.
            - Não. Como está, está muito bem.
            - Em todo caso queria fazer uma aferição para comparar com o leite dos outros.
            E foi aquele aguaceiro.
            - Que diabo é isto Jotoca?
            - O dono do estábulo que suspendeu a ração de concentrado. Está dando somente capim verde. Ponta de rama que só tem água. Deixe que leve ao menos para casa, para os meninos.
            - Não admito que dê aos seus filhos, esta porcaria. Esta visto que você não tem o menor escrúpulo. Dar leite com água aos filhos, onde já se viu uma barbaridade desta. Derrama essa água já e já.
            - Mas seu fiscal, eu nem sou casado nem tenho filhos. No entanto, os outros têm. E se eu não entrego este leite, vão passar o dia com fome. Já pensou que desgraça. E eu vou perder a freguesia.
            - Vê bem! Não passa de hoje. Da próxima vez quebro até as garrafas.  É uma pouca vergonha!!!
            - Não senhor, não é falta de vergonha não. É que não sei vender leite sem água, e se levar puro, a freguesia vai estranhar, e serei perseguido pelos outros leiteiros. Poderei ser até vítima de uma agressão. Água limpa nunca fez mal a ninguém. Leite sem uma dosagenzinha, o lucro é tão pouco que não paga nem o capim do burro... E não tenho nem água limpa de graça para dosar.
            - Vai, vai embora. E nunca mais passes perto de mim. Mas te previno de uma coisa. Leite com mais de 50 por cento de água passa a ser água com leite e o preço será outro. Vê bem, seu sabidão. Afinal de contas, o teu leite ainda é o mais puro que tenho encontrado. Pelo menos não tem piaba, nem larvas de mosquito...

*Este conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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