quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

MINHA ROÇA DE MILHO


 MINHA ROÇA DE MILHO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2993)

     Dezenove de março, dia de São José, o protetor dos milharais. Quem deseja milho verde para a véspera de São João tem que semeá-lo naquela data. Mas naquele ano faltam as chuvas e foi quebrada a tradição pela maioria dos roceiros. Feliciano, entretanto, conservou-a fielmente. Era de fato fervoroso do Santo e confiava cegamente nele.
– Ora, vai Chover qualquer hora. São José não irá se esquecer da gente. Certamente houve qualquer coisa lá por cima. Alguma confusão ou falta de tempo. Quando menos se esperar a chuva chega, o milho nasce e findará dando boas espigas.
Feliciano chamou a mulher, pegou a enxada e o milho que havia guardado e lá se foram para a roça. A terra estava seca e quente, mas já preparadinha. Olhou para todos os cantos do céu e nem um fiapo de nuvem. O céu azul acinzentado não prometia nada. Aspecto de ano seco, desses em que só escapou padre e jumento.
- Vamos perder o trabalho e as sementes, Feliciano. A coisa não está de brincadeira.
- Olha Mariana, quem não tem fé não se salva. Quando Deus quer, mudo tudo de repente. Planta-se hoje, chove amanhã ou depois e os bestas que não plantaram vão ficar por aí se maldizendo. - Ah! Se eu soubesse...
- Vamos. Três sementes por cova e enterra bem.
 A enxada cortava o chão duro, carreira acima, carreira abaixo e Mariana semeando e fechando as covas com o pé. Quando o sol já procurava um buraco para se esconder e dormir, a roça de milho estava plantada. Feliciano de camisa suada e Mariana com os pés doidos; tomaram o caminho de volta.
- E se não chover, Feliciano?
- Chove mulher. Chove com toda certeza. São José não é qualquer santinho à toa não, Mariana. E a gente reza pra ele, acende uma vela e espera. O milho também espera na terra seca. E acaba com essa desconfiança. São José viu o nosso trabalho e qualquer hora dessa fala com São Pedro e vai ver a terra molhada, o milho nascido e encarreirado, fazendo inveja aos que duvidaram.
Oito dias depois céu era o mesmo. Impassível e cinzento. Mariana olhava para Feliciano sem dizer nada e tinha pena dele. – Coitado, com tanta fé e nada de chuva. Antes tivesse dado o milho às galinhas. Suou tanto para abrir as covas, certamente já pensando no milho maduro, na pamonha, na canjica, no milho cozido e assado.
- Oh! Meu São José ajude Feliciano. Ele tem tanta fé e tanta esperança. Bastarão algumas chuvas. A terra é tão boa e o milho é ligeiro. Repara que ele não tira os olhos do céu. Qualquer ruído que ouve à noite, pensa que é trovoada e às vezes levanta-se como se já estivesse sentindo o cheiro da terra molhada.
E o tempo não mudava. Feliciano não falava no assunto. A mulher também. Cada um guardava para si os seus temores, as suas preocupações. Mas Feliciano, intimamente já andava meio desconfiado. – Será que São José se esqueceu da gente, do seu dia, do plantio de milho para o São João, o colega dele? Doença não é, que santo não adoece. Só se foi alguma desavença entre São José e São Pedro. Tudo pode acontecer. Sei lá. Vai, Feliciano, tira essas bobagens da tua cabeça. E foi deitar-se calado, sem esperança. - A coisa estava ficando preta. Mas seja lá o que Deus quiser
Inesperadamente... Um relâmpago clareou a casa e o trovão roncou no espaço. Feliciano saltou da cama gritando pela mulher.
– Chuva, Mariana, chuva!...Eu não te dizia. Quando Deus tarda já vem no caminho.
E a chuva começou a cair e a água espanando nas goteiras.
- Faz um café, Mariana, vamos festejar. São José não é brincadeira. Também a gente queira que chovesse sem nuvens no céu! São José não fabrica nuvens. O que ele faz é mandar a turma peneirar a água. Trovão é o barulho das peneiras.
O dia amanheceu com um grande sorriso na boca do tempo. Tudo mudado. Subia no chão o cheiro gostoso da terra molhada. O sol veio saindo devagar, por detrás de nuvens prateadas.
 – Espia, Mariana, o bicho vem escondendo a cara com vergonha do que fez com a gente. Já estava secando até as cacimbas de beber. Parece que só anda morto de sede. Bebe toda água que encontra.
- Mas, Feliciano, o sol é bom para secar a roupa. Secar o feijão e o milho. Esquenta o tempo. Quando tem chuva não faz mal a ninguém. É até bom demais.
- Nem tinha pensado nisso. Mariana. Ele que perdoe minhas burradas.
- E tem mais, Feliciano. Sem o sol seria tudo escuro e como é que se podia trabalhar, viajar, ver as coisas.
- Quem te ensinou isso mulher?
- Ninguém. Basta pensar um pouco. O escuro faz medo. Quando o sol aparece fica tudo claro, tudo alegre.
- E tu que te lembra dessas coisas, onde é que o sol se esconde durante a noite?
- Sei lá. Só perguntado ao vigário.
- Agora é comigo. Não se esconde coisa nenhuma. O sol é uma lamparina grandona. Quando o gás se acaba, apaga-se e escurece sinhá boba.
Mariana achou graça.
- Vai cuidar de tua roça de milho, Feliciano. Só quem não vê as coisas; Todos os dias nasce de novo um sol que morre ao anoitecer. Isto sim!
Com a terra molhada e quente o milho botou a carinha de fora com toda a força de sua origem.
Feliciano diz a mulher:
- Olha Mariana, o milho já está ficando sabidinho. Bem que eu te falava. E com esta outra chuva que está começando a cair vai crescer aos pulos.
O mato começou a sair. Feliciano corria a enxada chegando-lhe terra. E o milharal viçoso já balançava as folhas ao vento, como se tivesse sendo acariciado. Feliciano não saia de junto. Nunca tinha visto um roçadinho mais bonito.
- O que é isso Feliciano. Alguma coisa no céu, Feliciano?
- Não Mariana. Estou olhando pra ver a situação das nuvens. O coitadinho do milho está querendo murchar. A terra está quase seca. Pede chuva mulher. Com mais um empurrãozinho de São Pedro a gente lucra. O milho já está querendo soltar o pendão e é quando mais necessita de chuva.
- Tem paciência, homem. O que se pode fazer, senão esperar e confiar em Deus?
Alguns dias depois Feliciano chamou Mariana.
 - Sabe de uma coisa minha nêga, vamos aguar o milho. Tem bastante água na cacimba. A gente não tem outra coisa para fazer. É até uma distração. Eu vou carregando água e tu vais botando nas touceiras. Uma caneca em cada uma.
- E será que vai dar certo.
- Tem que dar. Tu não molhas tuas plantas e elas crescem e botam flores. Com o milho será a mesma coisa.
E o trabalho recomeçava todos os dias. O milho deixou de murchar, soltava pendão e apontavam as espigas.
A notícia espalhou-se.
– Feliciano endoideceu. Está aguando o roçado de milho. É bom que se fique de olho nele. Era um homem tão aprumado do juízo e de repente acontece uma coisa dessas.
E os mais curiosos iam observar de longe.
 – Eu vi, eu vi mesmo. É uma pena.
E o milho crescendo e soltando as espigas.
- Agora é que precisa de água, Mariana. Vamos carregar mais a mão na aguação. Entrava dia e sai dia, semana inteira; saiam mais cedo e voltavam mais tarde.
- A coisa está piorando, minha gente. Estão saindo ainda com escuro e entram até pela noite, com o claro da lua. É bom avisar ao vigário, pedir que reze pelos dois.     Ninguém botava os pés em casa do Feliciano. E eles mesmos não sabiam o que estava acontecendo. E tome água no milho. São Pedro resolveu ajudar. Também já era demais aquele sacrifício. E ao pender do sol, formou-se uma nuvem escura do lado que vem às chuvas.
- Corre Mariana. Espia quem vem ali?
- O que, Feliciano?
- Uma chuva mulher. Vai cair aqui, na certa.
 E começaram a se formar as cordas d’água e a chuva a cair.
- E lá vem ela chegando. Olha, já está bem em cima da roça de milho. Já está tudo salvo Mariana. Eita santinho bom danado. É pena que não comam milho, senão iríamos manda-lhe uns atilhos de milho. As primeiras espigas.
- Não tem nada não. Leva para o padre Simão. É a mesma coisa. E diz que é para são José. Ele manda o recado sobre tua intenção.
Dezoito dias depois, o milho estava maduro. São João estava na porta. Mas ninguém tinha milho verde. E um são João sem canjica, sem pamonha, sem milho cozido e assado, é assim como uma festa sem vinho e sem mulher. Não tem graça.
- Sabes Mariana, vamos vender o milho. Fazer algum dinheiro.
- Mas o do padre Simão é de graça. Milho do santo.
Feliciano foi à cidade oferecer milho.
-Tenho milho verdinho, verdinho, para quebrar na hora. Vendo lá no sítio. E dava o preço da espiga ou da mão de milho. A notícia espalhou-se.
- Deve ser conversa de Feliciano. Dizem que ele andava avariado do juízo, aguando pé de milho. Em todo caso vamos até lá verificar. Foi um espanto geral. Milho espigado, cobrindo a terra limpa.
Na véspera de São João foi uma correria. Feliciano quebrava o milho e Mariana contava o dinheiro. A bolsa ia ficando recheada. Foi o dia de maior trabalho e de maior alegria.
- Está aí, minha gente. A doidice de Feliciano. A doidice dele era coragem de trabalhar, sabedoria e muito juízo. Ao redor de cada fogueira de São João só se falava na roça de milho de Feliciano. Ora se não fosse à doidice do homem, o São João não teria graça. Padre Simão recebeu a mão de milho de São José.
- Tu sabes Feliciano, santo não come milho, mas não te preocupes, pois eu sou o representante da turma celeste. Milho, peru, galinha gorda, um queijinho que quiseres oferecer a qualquer santo, não te esqueças que eu sou o representante autorizado.
- Pois não, seu vigário.
Passados meses, dona Mariana foi se confessar. E contou ao padre Simão que havia feito uma promessa, prometendo um peru a São Bento se a vaca de leite não morresse da picada de cobra. E não morreu. Pedia ao padre para trocar a promessa por uma penitencia qualquer. Não sabia onde morava São Bento.
- Ora minha filha, endereço de santo é comigo. Sou bem relacionado com todos eles. E São Bento não irá gostar dessa troca. Pode mandar o peru para cá que eu encaminho. Agora, outro assunto. O São João esta se aproximando. Não se esqueçam do milhozinho de São José. Assim terão sempre boas safras.
Mariana contou seus pecados, umas bobagens e findou confessando que tinha muita vontade de ter um filho, mas o Feliciano só pensava nas roças de milho. Sou uma mulher moça e sadia, mas não há jeito.
– Ora minha filha, padre Simão é versado nestas questões e pode resolver o problema.
- Então vou falar com Feliciano pra ele vir falar com o senhor.
- Feliciano! Deus me livre. És tu, criatura, quem deves vir e sem ele saber. Essas coisas se fazem em segredo.
Já de volta, Mariana entendeu a virada do padre. E o resultado é que nem mandou o peru de São Bento, nem mais o milho de São José. Desta feita seu vigário errou o pulo do gato. Com o dinheiro do peru e do milho, Mariana comprou um oratoriozinho para os dois santos de sua devoção. Estava pago a promessa. E todos os anos Feliciano mandava vender milho ao padre Simão. E Mariana recomendava:
- Cobra mais caro, Xexeu...
- E por que mais caro, mulher.
- Ora Feliciano. Padre ganha dinheiro sem trabalhar, não tem mulher nem filho pra sustentar. E quer comer tudo de graça. Puxa no preço, Xexeu...
- Pode vir castigo pra cima da gente, Mariana. E deixar de chover e o milho secar, sem dar espigas.
- Deixa comigo, Feliciano. São José está aí para nos proteger. E ele e São Bento. O padre falou que era bom ser devoto de São Cornélio, mas não gostei da lembrança. É um santo de nome esquisito. Perguntei a professora que nome era esse Cornélio e ela explicou: - Cornélio vem de corno que é a mesma coisa que chifre. E com chifre, aqui, só as vacas e o rebanho de cabras. Não achas? Ou queres ser devoto de santo e com chifre?
- Vôte, mulher. Vamos ficar só com os outros mesmo. E santo com chifre não cabe no oratório... E ficou assim!
A roça de milho de Feliciano aumentava de ano para ano. Quem queria milho verde era com ele. Caísse ou não caísse chuva. Tudo ia bem. Mas certo dia bate à porta de Feliciano, uma figura diferente das outras. Sujeito, calçado de botas, chapéu de campo e par de óculos. Antes que perguntasse quem era, o bicho foi logo falando.
- Sou um agrônomo. O prefeito aí do Serrote informou que o senhor estava produzindo milho sem chuva. E por isso vim conhecê-lo se puder ajudá-lo.
- Ah! Meu amigo, o trabalho é pesado. O senhor não vai agüentar. Carregar água na cabeça para aguar milho é para bicho da roça, como eu.
E contou toda a sua história. Dele e de Mariana.
- Vamos até lá. Quero ver.
A roça era perto e o milharal estava espigado, mesmo quase sem chuva.
- Muito bem seu Feliciano. Tem os meus parabéns. Mas se o senhor quiser, pode-se facilitar o seu trabalho. Fazer irrigação com uma moto-bomba. E assim, poderá plantar mais. Instala-se a moto-bomba aqui junto da cacimba e manda-se água para o milharal.
- Seria bom demais. Mas o senhor sabe. Não tenho dinheiro para comprar a tal de moto-bomba e nem os canos de que o senhor falou.
- Isso não será problema. O governo empresta tudo e vem instalar, sem despesas para o senhor. Basta comprar o combustível e o óleo para o motor. Tudo muito simples. O restante o senhor mesmo faz.
Depois dos acertos, lá se foi o agrônomo.
- Mariana, ou Mariana. Se o negócio der certo, vamos ficar ricos. E o doutor disse que a gente pode plantar outras coisas. Até capim para os bichinhos que a gente cria.
- E será que isso vai mesmo dar certo. Em todo caso, é tudo por conta do doutor.
E o agrônomo Jeremias não tardou. Chegou com o equipamento e mais um auxiliar. Colocou a moto-bomba no local adequado, instalou os canos e botou a estrovenga pra funcionar. A água espirou dentro da roça de milho e foi se espalhando. Feliciano e Mariana não podiam conter a sua alegria.
- Mas doutor, que invenção tão boa foi da cabeça do senhor?
- Não, Feliciano. Já se usa muito por aí. Estou apenas ensinando como se faz. E agora é só aprender a guiar a água, para que ela corra entre as carreiras de milho, feijão ou qualquer outra coisa.
Na safra seguinte e logo depois do milho colhido, Dr. Jeremias chegou com as máquinas puxadas a boi. O solo e os sulcos foram preparados. O milho foi semeado, acasalado com feijão de corda e fava.
E no dia seguinte, muita gente para assistir a irrigação. No meio, o prefeito, o vigário e até o Dr. Juiz. Padre Simão, meio encabulado. - Dona Mariana podia ter contado alguma coisa...
A experiência foi ótima. Feliciano foi elogiado. Alguém chegou até a comentar que na próxima eleição deveria ser vereador. Mas outro contestou:
- Já queres estragar o homem. Que mal ele te fez...
Padre Simão, benzeu as instalações e a roça de Feliciano. Deu uma rabiscada de olho em Mariana com ares de quem pede perdão. E intimamente lamentou-se;
- Perdi o peru e o milho verde. Pelo menos isso, Mariana...
O bicho não tinha mesmo cura... Por trás do breviário, a malícia.
A roça de milho com outras lavouras foi crescendo e já não havia mais época para plantar. Com chuva ou sem chuva Feliciano ganhava dinheiro. No meio da caatinga seca e pelada, a roça de Feliciano, manchava de verde o sertão. O sol espiava lá de cima e inundava de luz e vida, tudo quanto nascia e crescia na terra molhada.
- Manda, manda Mariana, um pouco de milho verde ao padre Simão. Ele benzeu a roça e deu a entender que não se esquecesse dele.
 - Manda por tua conta. Eu sei muito bem qual é o milho que ele quer. Não facilitar Feliciano... Padre Simão já possui o apelido de Quero-Quero, passarinho arrancador de milho.
- Pode ser, mais ninguém arranca milho na minha roça
- Mas só se o chão for duro.
- Não planto pra bicho comer. Em roça de Feliciano ninguém mexe...
- Não mexe, mas já tentaram. Quero-Quero é bichinho teimoso... Toma sempre cuidado, Feliciano.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.




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