terça-feira, 8 de dezembro de 2015

PRECONCEITOS DE IPITINGA






PRECONCEITOS DE IPITINGA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Ipitinga, uma cidadezinha muito antiga, quase um vilarejo de gente preconceituosa, socada num recanto da Serra da Borborema, zelava suas tradições religiosas e sociais.
Para se viver ali, não era apenas ocupar uma casa e comunicar-se com seu povo. Não. Não senhor. Era necessário obedecer aos costumes da terra, rezar pela mesma cartilha. Do contrário ficaria isolado, sob observação; comendo o pão que o diabo amassou. Ai daquele que não freqüentasse assiduamente as missas dos domingos; não cumprimentasse quem encontrava e não cedesse o lugar às mulheres. Essa coisa toda vinha de um passado bem distante, da família Nogueira que dera origem à cidade.
Mulheres de vida livre lá não estendiam a saia. Era chegar e ter que espirrar imediatamente. O ambiente era absolutamente familiar. E em decorrência desse rigorismo, é de se imaginar o que acontecia por trás dos muros. Desse no que desse, tudo havia de ficar em família.
Um belo dia de sol e de uma visibilidade admirável hospedara-se no hotel de dona Santa um estranho vindo não se sabia de onde. Instalou-se no melhor quarto; exigia boa cama e roupas lavadinhas. Seria pensionista, pois havia chegado para ficar.
Quem é quem não é, e o que se soube foi unicamente que se chamava José Francisco dos Santos; um nome comum, dando a entender que se tratava de pessoa de pouca importância. O que era para estanhar era a farpela. Sempre bem vestido, bem engomado, sapatos finos e anel caro no dedo anular. Não exercia qualquer profissão e aparentava não se preocupar com isso. Era uma posição que despertava curiosidade.
A gente do comércio considerava que poderia ser algum fiscal do governo e a população, de modo geral, atribuía-lhe a função perigosa de algum espião. Conversar com o homem era perdido, pois não dava uma deixa. Era sempre a mesma pessoa, andando pelas ruas, sentando-se na pracinha, conversando com quem lhe dava oportunidade. Um mistério dos diabos. José existia por toda parte, Francisco, a mesmíssima coisa e Santos nem se fala. Não tinha, pois, como adivinhar-lhe a família.
Os mais espertos faziam sondagens sem qualquer resultado. Não perdia missa, atencioso com todos. Apelaram para o vigário. Talvez se descobrisse com ele. Mas nem de longe. A única coisa que conseguiu pescar, não identificava nada. José Francisco adiantara apenas que andava procurando um lugar calmo para viver e havia gostado do clima da cidade, dos ares do Cariri. Estava se dando otimamente de saúde, admirava a conduta da população e que desejava ficar definitivamente ali, se tivesse a boa sorte de fazer um bom casamento.
Fazer um bom casamento assanhou a moçada. Com um visual daquele era mesmo de atrair qualquer donzela. Mas havia um embaraço dos diabos. Não se sabia quem era.
Um criminoso, um ladrão, um agente do governo. Tudo poderia ser. Esperavam que pelo menos o José Francisco se estabelecesse no comércio ou noutro ramo qualquer.
Diariamente aparecia com ternos novos, uma extravagância. Só poderia ser para chamar atenção e mais tarde enganar alguém.
Vez por outra, fazia uma viagem de poucos dias e retornava ainda mais apresentável. Era um enigma. Pela primeira vez acontecia aquilo em Ipitinga. E o mais sério estava para acontecer. Quando menos se espera, a filha do fazendeiro mais próspero de Ipitinga estava de namoro firmado com José Francisco. A cidade ficou estarrecida. Ou a moça estava doida ou o mundo estava mudando dos pés à cabeça. A família de Albertina chamou-a as falas. Não era possível. Onde já se ouvira falar em maior disparate. Sujeito misterioso, impenetrável e ainda encontrar uma tresloucada que se apaixonasse por criatura tão estranha.
- É, papai, não sei por que, mas fui atraída e quero me casar com ele. Pode ser uma doidice minha, mas não tenho forças para me dominar. Tenho procurado sair, esquecer, e, no entanto cada vez sinto-me mais presa.
- Vamos expulsá-lo daqui. Não poderemos consentir em tamanho desatino. Uma filha de Teodoro Abreu, casar com um troca-tinta. Nunca!
- Talvez não seja tanto assim, papai. É um moço distinto, respeitador, honesto, de boa conversa e não parece ser um zé-ninguém.
- E porque ele não diz quem é de onde veio e o que pretende. Esperamos que mudes de idéia.
- Não tenho forças. Estou vencida. Fale com ele. Pode ser que se declare.
- Nem quero vê-lo. Será melhor.
Albertina foi se encontrar com José Francisco. Contou-lhe tudo. Fez-lhe ver que precisava conhecê-lo e não seria contra sua família. De outra forma estaria tudo terminado entre os dois.
- Mas se eu te contar o meu passado, quem vai me assegurar que não te perderei?
- Naturalmente, se o teu passado for limpo, honesto, eu mesma afirmarei. Caso não seja, deverás compreender que será impossível. Como poderia casar-me contigo sem saber quem és. Julgava que me dirias tudo sobre tua vida.
- Que dizer que poderia confiar em ti se nada existir que me desabone?
- Certamente que sim.
- Pois, sob total sigilo, vou te dizer quem eu sou. Talvez não queiras acreditar, mas lhe direi somente a verdade. Sou filho daqui mesmo, deste Município de Ipitinga. Sai da roça ainda um meninote, um rapazinho que sonhava por assim dizer, com o inatingível. Fui-me de léu em léu e cheguei a São Paulo. Levei por vários anos, uma vida de cão sem dono. Parece, entretanto, que quanto mais o destino me acossava, maior era a vontade de prosseguir. Empreguei-me como auxiliar de balconista. Fazia o trabalho mais árduo, mais pesado. Estudava à noite na certeza de que venceria mais tarde. Como já podia comer e tinha onde dormir, tinha a impressão que estava vitorioso. Quando já sabia escrever e ler, mandei carta para meus pais, gente pobre e comecei a ajudá-los como podia. Anos depois, em dois anos consecutivos, faleceram. Foi aí que sofri o maior desengano de minha vida. Senti-me só, como se me houvesse jogado num deserto sem saída. Quem nunca ficou só, não sabe o que é solidão. Só, no meio de muita gente. Redobrei meus esforços. Subi de categoria. Reuni algum dinheiro e com a experiência adquirida, instalei um boteco. E fui somando, somando. Passei a uma mercearia e por fim a uma grande casa comercial em local que se tornou disputado. A cidade crescia e o que me pertencia estava então numa das zonas mais valorizadas de São Paulo. Começaram a fazer-me ofertas. Ofertas que me pareciam até coisas de loucos. E foi nessa fase que passei por uma imprevista transformação sentimental. A lembrança de minha terra. Parecia ver a casinha de meus pais, as mesmas árvores do campo, os mesmo recantos. Aquelas imagens não me saiam da memória. Tinha também a impressão de que aqui não mais me sentiria sozinho. Bastaria pisar no mesmo chão onde nasci e vivi minha infância. Dias e noites ouvia aquele chamamento. E foi assim que resolvi vender tudo e voltar para minha terra, comparar por qualquer preço o local de meu nascimento. E isto já o fiz. Matei minhas saudades e, agora, morro de amores por ti. Não necessito do dinheiro do teu pai. O que possuo nos bancos da capital, é talvez muito mais do que possas avaliar. Não me vanglorio em dizer que sou rico, mesmo porque dinheiro é apenas um bem. Riqueza é viver bem e não se vive bem sem amor.
E, se me casar contigo, ai sim, serei o homem mais afortunado deste mundo. Também não vou dizer que tenho dinheiro para te fazer feliz. Tenho de sobra, mas a felicidade, dinheiro não dá. Pode dar conforto material. Só isto. Felicidade é possuir quem a gente ama. Pois é minha querida, José Francisco dos Santos, hoje formado em assuntos comerciais, independente, podendo viver como deseje, e não sou, ainda, feliz. Ninguém pode ser feliz sozinho. Entendestes? Poderei mostrar a teus pais minhas contas bancárias meus certificados de idoneidade, minha certidão de nascimento e eles verão quem é José Francisco dos Santos. Se eu tivesse um nome ou um sobrenome de estrangeiro, talvez não me pedissem identificação. Seria logo um doutor e teria todas as qualidades de um homem de bem, embora fosse um patife.
No entanto, com esse nome prosaico, José Francisco dos Santos, nome de roceiro de pé de serra, ninguém me considera. A propriedade onde meus pais viveram que hoje é nossa é uma das melhores da região.
Se eu tiver sorte, mais tarde a conhecerás. Mas não necessito dela para viver, entendes. Mas lá estão meus pais e eu também.
Depois de comprada, paga e escriturada, confesso-te que me ajoelhei no local da casinha de meus pais e chorei de emoção. É assim que se mata uma imensa saudade, tudo quanto possuía em São Paulo e o que hoje possuo, pouco ou nada valia em relação aquele cantinho onde abri os olhos para ver as coisas do mundo. Agora só me falta uma coisa, aliás, a mais importante, que é casar-me contigo. Mas há uma condição, casar como estou; sem ninguém saber quem eu sou, por isto, peço-te absoluto sigilo. Somente os teus pais e nos dois saberemos. Pois é. Conta aos teus pais o que ouvistes de mim. Depois me levarás lá ou me esperarás para o pedido, se é que me aceitas. Depois de tudo que acabastes de ouvir.
- E porque não havia de querer. Sabes que te queria ignorando todo o teu passado e o teu presente. Não será, pois a tua fortuna, que ambiciono; mesmo pelo fato muito simples de sempre ter tido o que desejo. Meu pai já me presenteou com uma grande fazenda e possuo bastante gado e produção agrícola, suficientes para ter uma vida confortável com quem me casar.
- Pois é Albertina, a condição é só esta. Para o povo te casaras com um desconhecido. E só no dia seguinte saberão quem sou eu. Assim, assistiremos comentários a respeito de tua doidice de casar com um desconhecido. Irão fazer severas críticas a ti e a tua família que consentiu. Depois, logo no dia imediato, tudo mudará, não porque te amo e nos amamos, mas pelo que eu possuo e pelo que sou. A humanidade é assim. Condena hoje e abençoa amanhã. Verás que dirão com ar de espanto e indignação:
- Como é que Albertina casou-se com um sujeito que nem se sabe quem é. Vindo do oco do mundo e pode ser um grande trapaceiro como tudo indica que é. E o pior é ter tido o consentimento da família. Só um pai que se quer ver livre da filha. Ah! Mundo velho errado!... Escuta bem o que te digo...
Albertina contou aos pais a história de José Francisco.
- Não, não era possível.  Traze o moço aqui. Queremos conhecê-lo de perto.
E dentro de menos de um mês estavam casados. O noivado havia sido imediato.
Os comentários de rua e esquinas eram aterradores:
- Só uma moça desvalida, sem pai e sem mãe. Acabaram-se as tradições de nossa terra. Uma vergonha, uma tristeza. Aonde se vai parar com semelhante despautério. E logo quem, meu Deus. Chega aqui um sujeito misterioso e só porque anda todo enfarpelado e apresentável, aparece uma doidinha e se apaixona a ponto de ir casar com o consentimento dos pais irresponsáveis.
O caldeirão dos comentários malévolos fervia e espumava. Chegaram ao ponto de apelar para a interferência de seu vigário. Talvez assim pudessem evitar o disparate e a quebra das tradições sociais de Ipitinga.
- Ora, o padre da freguesia, que, afinal recusou-se a dar palpites. – São problemas coração. Além disso, o moço até hoje tem tido um comportamento exemplar. Se está por aqui oculto ou não, isso é com a família da noiva. Assim como pode ser um aventureiro, pode ser um moço de bem, Se não se declara quem é; paciência. Depois se saberá.
- Mas, padre...
- Nada de mais padre. Não meto minha mão em cumbuca. Além disto, é um homem católico, não perde missa e nunca se ouviu falar de sua conduta. Vocês também querem se meter em tudo... Ora essa!
- Estão vendo as idéias de seu vigário! Parece até que está conluiado com o tal do José Francisco. Acabaram-se os bons tempos. Cada um que cuide de si. Até o reverendo se sai com uma daquela. Está tudo perdido. Vamos rezar pela salvação das famílias de Ipitinga, senão irá tudo levar a breca.
O casamento realizou-se, o vigário fez uma bela oração. Parecia até que o noivo era a pessoa mais credenciada e a mais ilustre de Ipitinga. - Chegou até a elogiar as qualidades físicas do bonito par. Não passava de um desavergonhado. Pois não era. Um bicho desconhecido dá um golpe de sorte numa das melhores famílias da terra e o padreca teve aos maiores elogios. A moça não era filha dele. Pobre coitada. Tão bonitinha e educada que é. Está visto que o diabo tem muito poder. Enrolou até o vigário.
No dia seguinte a dinamite estouro. José Francisco era filho de Ipitinga; e a maior fortuna da cidade. Diziam até que os bancos não aceitavam mais dinheiro dele. A grande fazenda Santo Amaro, afamada nas redondezas era dele também. Formado em comércio, uma jóia de noivo.
A casa de José Francisco dos Santos passou encher-se de gente. Albertina era a moça de maior sorte da terra e do céu.
- Aquela diabinha tem um sétimo sentido, ou então sabia de tudo e ficou caladinha, a manhosa. E na certa o padre sabia também... Não viram as saídas dele. Tudo tramado. E nós, os imbecis, a meter a língua onde não devia. Terra pequena, de muro baixo.
- A terra, não; vocês, de língua de trapo. Falam de Deus e do diabo. Que vergonha...
Em 5.8.1985
*o conto pertence ao livro “Vidas nordestinas”, no prelo.



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