sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

EPAMINONDAS



EPAMINONDAS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Quando o sujeito que pede esmolas não é um velhinho, ou deformado ou um doente, é sempre um preguiçoso. Era o caso de Epaminondas. Físico normal, alegre, engraçado. Sem doença nenhuma, mas a profissão oficial era pedir. Pedir roupas, sapatos, comida e cigarros. Até para manter o vício de fumar pedia e censurava quem não lhe dava. Não quer dar, não dê, mas não me venha com sermões. Baixote simpático, de seus quarenta e cinco anos, sem pressa para nada. Nem para pedir quando estava com fome. Tipo curioso, figura popular de quem todos gostavam. Andava sempre limpo e empaletozado. Possuía parentes ricos, mas não os procurava. Procurava para que, se não tolerava trabalho.
            - Por que não vás trabalhar Epaminondas?
            - Quem, eu. Essa não. Estou vivendo muito bem. Tenho boa freguesia. Almoço e jantar certos. Até está sobrando. Algumas pessoas reclamaram porque não apareci.
            - Mas não é isso. Não tens doença, não és aleijado e fica feio andar pedindo, Epaminondas. Não te acanhas disso?
            - De forma nenhuma. Cada um tem a sua maneira de viver. Não obrigo nem boto a faca nos peitos de ninguém. Dá quem quer e tem boa vontade. Ora essa. Vou suar e me preocupar à toa. Era o que faltava. Chega a ser até falta de raciocínio e de inteligência. Olha aqui para minhas mãos. Lisinhas. Nem marca de calos. Ainda não te deu na cachola, pensar nisso. Nunca suei. Tomo banho para tirar a poeira e refrescar o corpo. Para lavar, suar, Deus me livre.
            Epaminondas possuía um sobrinho muito rico e na mesma cidade. Um amigo falou com ele.
- Olha Vieira, da um jeito naquele teu tio. Não fica bem, um homem normal e sadio viver pedindo esmola, quando todos sabem que é teu tio. Pelo menos lhe garanta a comida e a roupa. Assim deixará de pedir.
            Vieira mandou chamá-lo.
Epaminondas entrou na loja do sobrinho meio desconfiado. Deveria ser alguma reprimenda ou pior do que isso. Oferecimento de emprego, mesmo que fosse coisa fácil.
            - Muito bem, meu tio. Estava mesmo querendo vê-lo. Desejo ajudá-lo. Tirá-lo dessa vida humilhante de andar pedindo. Não fica bem, nem para senhor, nem para mim.
No momento Epaminondas ficou meio tonto e aceitou.
            - Volta aqui na próxima semana. Tenho um bom negócio para o senhor.
            E na semana seguinte, Epaminondas apareceu. Havia passado à semana pensando no que seria. Estava quase certo de que não seria boa coisa; pelo menos não seria melhor do que não fazer nada. Disso estava certíssimo. Ninguém iria lhe doar alguma coisa de mão beijada.
            - Bem meu tio. O negócio já está feito. Comprei uma propriedade na zona do Cariri. De porteiras fechadas. Vacas, cabras, ovelhas e outros animais. É chegar e administrar. Casinha boa, depósito, curral, toda cercada e mais um açudeco que raramente seca. Tem chovido e está coberta de pastagens. O açude cheio. Fica a margem da estrada de rodagem. Para sair basta esperar o ônibus. É sua não lhe custará um níquel. Vou deixá-lo lá. Para começar adiantarei dinheiro. Fará suas compras aqui em Campina Grande ou em Soledade. Tem também roça de milho, feijão, melancia e mais um bocado de coisas. Boazinha mesmo.
            Epaminondas conformou-se. Uma vez que era dele, valeria a pena tentar.
O automóvel para na porta de casa.
- Pronto, está aqui, meu tio. Como já lhe disse é sua, um presente que lhe dou. Não fica só. Está aí os vizinhos, uma bodega, uma pensãozinha. E o tráfego é constante.
Epaminondas entusiasmou-se. Jamais havia pensado em ser proprietário, possuir vacas, rebanhos de cabras e ovelhas. Parecia-lhe até um sonho. E lá ficou Epaminondas. No momento o trabalho era prender as vacas, tirar o leite, entregar ao comprador e tratar da roça já em vias de florar. E continuava chovendo. Ano, poucas vezes visto no Cariri. Epaminondas estava proibido de pedir qualquer coisa, inclusive cigarro. Havia ficado com dinheiro para manter-se. Mesmo assim, estava achando difícil quebrar o velho hábito. Os vizinhos gostavam do Epaminondas e o orientavam no manejo da fazendola. Tudo parecia ir muito bem. Mas um belo dia chega Epaminondas à casa comercial do sobrinho, e, meio desconfiado, ficou por ali como quem queria alguma coisa. Talvez o dinheiro houvesse se acabado e como estava proibido de pedir, acanhava-se de falar.
- O que é que há meu tio. Como vai a fazenda?
- Tudo bem, sobrinho. O gado está gordo, as lavouras floradas. Já se vê bonecas de milho, canivetes de feijão e vingas de melancia.
- Então está satisfeito e veio dar um passeozinho.
- Não, nada disso. A coisa lá está me dando muito trabalho. Aqueles bichos todos, a roça de milho e feijão, tiragem de leite, sair para entregar o leite na queijaria, olhe um trabalhão dos diabos. Francamente, Epaminondas está cansado de tanta obrigação. Está provado que não dou para essas coisas complicadas. Estou aqui para entregar tudo. Pode dar seu presente a outro. Muito obrigado. Bem que é certo o ditado: De esmola grande, cego desconfia.
- Mas meu tio. Tudo é seu. Comprei para lhe dar, só com a intenção de melhorar sua vida.
- Muito boa à intenção, mais o certo é que piorou muito. Epaminondas nunca teve obrigação e agora é aquela coisa danada, corre pra aqui corre pra li. Já pariram duas vacas, cinco ovelhas e três cabras. Já pensou no trabalho que estão me dando. Os bichos novos exigem muito cuidados. Não, não dá pra mim. A pior coisa do mundo é fazer aquilo que a gente não gosta. Um inferno. Dois meses e mais um pouco nessa luta de doido.
- Mas o gado é seu, a terra é sua, meu tio.
- Não quero nada, nem preciso.
- É mais agora tem que querer. Quem não quer sou eu.
- Pode tomar conta. A coisa atrapalhou completamente minha vida. Abandonei as famílias que me davam comidas e roupas, os conhecidos todos, os meus cantinhos, para viver metido com vacas e bodes, que só me dão trabalho. Incomoda de mais ter as coisas. Antes nunca tive essas preocupações. Obrigadinho pelo seu presente. De a outro.
Epaminondas saiu tranqüilamente. Voltou à vida de antes, embora com uma variante. Arranjou uma companheira igualzinha a ele. Altura, físico, simpática e simples. Pareciam irmãos gêmeos. A vidoca era a mesma, comer, dormir, passear.
Certo dia Epaminondas pediu a um amigo de seu sobrinho. Que conhecia muito bem a sua história.
- Dou não, seu velhinho preguiçoso. Pensa que não sei que largou a propriedade que lhe foi dada de mão beijada. Vá trabalhar.
- Dê se quiser, mas não me venha com sermão. E sabe de uma coisa. Sou mais feliz do que o senhor. Não faço nada. Não tenho preocupações. Durmo à beira das estradas em qualquer sombra, nos outões das casas, ninguém mexe comigo. O senhor, com a sua riqueza toda, dorme debaixo de sete chaves, assustado e às vezes nem dorme com medo. Não troco minha vida pela sua, tá bom? Pois é assim. Dê se quiser. Pode guardar a sua riqueza e deixe Epaminondas com a sua preguiça. Vamos ver quem vive mais. Nunca tive uma dor de cabeça. Até logo.
O parzinho simpático estava sempre nas ruas centrais da cidade. Não gostava de subúrbios. A convivência com gente de classe era o seu fraco. Epaminondas sempre foi um pedinte modesto. Sua forma de pedir também era simpática e deixava a pessoa à vontade – Pode dar uma ajudazinha a Epaminondas? E sem cara de tristeza. E por isso quase todos davam. Sabia onde comia. Cada casa uma vez durante a semana. Não pesava a ninguém. Agora com a mulherzinha, usava a tática de almoçar duas vezes quando a comida era pouca para os dois.
Não tinha outra coisa para fazer. Era até uma distração. Mas onde morava mesmo Epaminondas? Pagava o aluguer de um quartinho, onde colocara uma cama com um colchão que lhes deram. Praticamente só aparecia por lá à noite, depois de assistir uma sessão de cinema. Disso fazia questão. E pagava? Não. Conseguira entrada grátis e permanente. Isso não atrasava ninguém. Quando podia levava uma galinha gorda ao proprietário do cinema.
- Nunca esteve doente, Epaminondas?
- Doente! Adoecer por que. Não tenho dinheiro, nem fazendas nem casa comercial. Não me preocupo com coisíssima nenhuma. Como é que iria adoecer. Também não tenho raiva de ninguém.  O sujeito sem ambição sempre vive com ótima saúde. Além disso, não bebo. O meu vício é este cigarrinho, uma vez ou outra. Quem faz doença, meu velho, é esse tal de trabalho, e a ganância de ter as coisas, a ambição. Epaminondas, graças a Deus, não tem nada disso. Minha comida é variada. Cada casa um tempero diferente. Nunca me enjoa. Também não me casei antes. Quando queria vou à casa das negras. Como é que iria adoecer. Escovo os dentes e ando limpo. Nem a pasta que uso não sei quanto custa. Tudo de graça. Adoecer por que. Meu sobrinho rico só vive achacado...
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...Veja a vida de cachorro que leva, preocupado com tudo e com todos, desconfia até da própria sombra. Não dorme direito, tem pesadelos, só faz refeições correndo, por que o tempo não dá. Vai pra lá com esse negócio de trabalho. Nunca vi um preguiçoso morrer de nada, só morre de velho e é o que espero que aconteça comigo. Adeus, passe bem e se dane com sua esmola chorada!

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
O final, após a linha pontilhada foi completado, faltava a última página do original.




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