terça-feira, 8 de dezembro de 2015

OS BINÓCULOS



OS BINÓCULOS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Ele oitenta e cinco anos e ela oitenta e dois, um casal como poucos existem. Nasceram, e casaram-se no interior, vida de fazenda bem em cima da serra da Borborema. Fora do período escolar, iam à cidade pelas quatro festas do ano ou em solenidades especiais. Custódio, um velhinho, que tivera preguiça de crescer e ficara abaixo de um metro e trinta, coisa que não lhe causava qualquer complexo. Fisionomia agradável e dignidade à prova de maçarico. Ninguém sabia de um ato seu que não merecesse elogios. A fazenda era o seu mando e lhe rendia o que desejava pra uma vida normal. Não conhecia excessos e principalmente a moral era coisa sagrada. Qualquer liberalidade era considerada uma quebra de dignidade.
             Um decote, uma saia acima do tornozelo e até uma calça de homem muito justa, falta de vergonha. Manga curta não ficava atrás. Mulher que cortava os cabelos e fumava em público era um Deus nos acuda. Sem-vergonhice.
            Dona Alexandrina, nem era bom pensar. Ia além das regras do marido. Criatura simpática, alegre e religiosa como se fosse uma beata. Nada de falhar com suas rezas diárias no quarto do santuário. Santuário antigo, trabalhado e apinhado de imagens dos santos de sua devoção. Pelas paredes, estampas, crucifixos, rosários bentos e cruzes de palha benta dos domingos de ramos. Fazia gosto aquela devoção.
            A vida na fazenda foi se tornando em solidão. Os três filhos, todos casados, bem situados na vida e na sociedade, passaram-se para morar na capital a antiga Paraíba, de antes de João Pessoa.
            Pedro, o mais velho, Cirurgião Dentista, Jonas, Guarda Livro e Paulo, funcionário da Secretaria da Fazenda. A permanência do casal na fazenda era-lhes uma constante preocupação. Naquela idade, deveriam os pais viver pertinho deles. Embora tenha sido difícil convencê-los a transferirem-se para a capital, após imensa luta, conseguiram. Um problema era onde desejariam morar. No centro da cidade, num bairro ou na praia?
            - Nada de centro. O melhor seria mesmo um recanto onde estivesse em contato permanente com a natureza.
A escolha foi a praia de Tambaú. Ali estavam um mar admiravelmente belo, os coqueirais, os cajueiros nativos, as jangadas, os navios passando para Cabedelo e um mundo de poesia. Tambaú, Cabo branco, a praia de Gonçalo, Ponta do Mato, praia Formosa e o areal limpinho da praia.
            Mais distante, mar adentro, o cordão de arrecifes onde quebravam as ondas formando uma beleza sem igual, de brancas espumas. Aquilo era para não se cansar de ver. Mar esverdeado, mar azulado, mar claro, dependendo das horas. A saída e a chegada das jangadas era outro espetáculo deslumbrante.
            O casal Santiago mudara completamente de ambiente e de sistema de vida. A fazenda ficara entregue a um sobrinho que a fazia render ainda mais. Era um patrimônio de família intransferível, pelo valor e pela afetividade. Passaria de filhos a netos. Quando queriam diluir as saudades faziam–lhe uma visita, reviam recanto por recanto e voltavam com caixas de queijos e manteiga de garrafas, amarelinhas como se fosse gema de ovo.
            Nos dias santos e domingos os filhos reuniam-se a eles e aquela convivência enchiam-lhe de prazeres. Pela manhã e à tardinha, passeavam os dois pela orla dos mares e aquele ar saudável era-lhes um elixir de longa vida.
            Os tempos foram se indo imperceptivelmente e os costumes evoluíram numa corrida de doidos varridos. Os decotes cresciam, as saias encurtavam pernas, e seios mal protegidos, ofereciam um espetáculo novo aos olhos curiosos do casal. A princípio parecia o fim do mundo que estaria para acabar. Era um escândalo, moças de maiô colado, mostrando irreverentemente as curvas e reentrâncias do corpo.
            Dona Alexandrina não tirava os olhos de cima de Custódio. Acompanhava-lhe todos os movimentos.
 - O que é que estás olhando, Custodio? Vamos para casa. Isto é uma vergonha. Onde estão os pais dessas desajuizadas. Podem esperar o castigo.
            - Que nada, Alexandrina, o solzinho está uma delícia... São coisas do tempo mulher. Tudo que acontece é permitido por Nosso Senhor.
            - Esta não!!! Nosso Senhor não concorda com essas patifarias. Onde já se viu semelhante descaramento. Vamos, vamos...
            - Vá você. Preciso tomar mais um pouquinho de sol. Na fazenda passava a vida no campo, tomando sol. Aqui me faz falta.
            - Faz falta coisa nenhuma, velho enxerido. Conheço tuas manhas. O que queres é ficar olhando as pernas dessas lambisgóias sem pai, sem mãe, sem juízo...
            - Nada disso, mulher. Não me adianta ver mais essas coisas... Pernas, só mesmo as tuas.
            - Não admito safadeza, nem pilantragem.
            E o tempo foi galopando. Do maiô, passaram as meninas para os biquínis e as tangas.
            - O mundo vai se acabar mais cedo do que eu esperava – dizia dona Alexandrina, fazendo o pelo sinal da santa cruz. Sabes de uma coisa, Custódio, vamos voltar para a fazenda. Uma nudez dessas já passou de falta de vergonha. Tenho rezado para ver se a coisa para e é pior ainda. Essas doidas estão cutucando o cão com vara curta. O inferno não vai caber a metade.
            - Já te disse Alexandrina, isso é coisa da evolução. Mulher nua ou vestida é a mesma. Só porque querem mostrar os seus encantos, fazes este escarcéu. Deixa as meninas se divertirem.
            - Olha Custódio, estou te estranhando e é bom que cries vergonha nas fuças. E deu-lhe uma tapinha na boca.
            - Que é isto, mulher. Vou comprar umas pecinhas daquelas para teus banhos...
            - Não suporto deboche. Vou falar com teus filhos sobre teus desavergonhamentos. Tiro você daqui. Depois de velho, caduco. Metido com enxerimentos.
            - Mas, minha velha, não saio do teu lado e estou olhando somente para o mar, vendo as ondas quebrar, a espuma alvinha nos arrecifes. Vamos fazer um acerto. Ficaremos tomando sol e olhando só um para o outro.
            - Tem graça não. Já estou enjoada dessa tua cara deslavada. Bicho cínico!
            - Somente você reclama de mim. Eu ainda nada reclamei de você.
            - Reclamar o que?
            - Estão aí os homens quase nus, só com um calçãozinho imoral e não me tiras os olhos de cima.
            - Nada disso, seu cachorrão. Não me venhas com essas insinuações. Sou uma mulher honesta e católica.
            - Sei, sei. Mas nunca é tarde demais para sonhar...
            No dia seguinte, Custódio foi à cidade. Embora, como diz Jorge Amado, - sexo começa nos olhos -, na verdade só era o que restava no coronel Custódio. As meninas de tanga não lhe saiam, então, dos olhos. E como a vista não estava lá grande coisa, fora a uma casa de ótica e comprara dois binóculos, um de maior aumento que encontrara e outro mais delicado e de pouco alcance, para dona Alexandrina. Em casa, não falou no poder de visão e teve o cuidado de ocultar o que lhe pertencia. Seria, mais tarde, uma surpresa.
            - Está aí um presente dona Alexandrina. Assim poderás observar melhor os navios que passam e as jangadas que vão ou voltam das pescarias.
            - Que beleza, Custódio. És o melhor marido deste mundo e do outro.
            No domingo, a praia regurgitava de gente. Um domingo ensolarado, claro, bonito. O mulherio fizera uma invasão ainda não vista. Até parecia que as pecinhas haviam encurtado. Estava um dia magnífico para inaugurar um binóculo. Dona Alexandrina, de binóculo nos olhos corria a orla marítima e as distancia mar adentro.
            - Formidável Custódio - Custódio experimentou o binoclozinho de enfeite e mostrou-se também maravilhado. Minutos depois deu saltinho a casa e pegou o outro, o grandão, o dele, binóculo de homem.
            - Você escondeu o seu não foi, seu velho ordinário...
            - Para fazer uma surpresa e, além disso, teve mais efeito a entrega do teu. Botou-o na cara e lamentou-se. – Vou trocar, não vale nada. Só se ver pertinho. Fui enganado.
            Dona Alexandrina, preocupada com o dela, achando tudo bonito, pertinho dela, nem se preocupou com o binóculo do Custódio. Somente no domingo seguinte lembrou-se de experimentá-lo.
            - Deixa ver aqui, Custódio.
            - Não vale nada, mulher. Uma pinóia.
            - Então vai trocá-lo. Dinheiro é dinheiro, não se pode jogar fora assim, devias ter experimentado.
            - Confiei, mulher. Sou um matutão boboca.
            E foi disfarçando.
            - Ou não sabes regular. Mexe nessa rodinha aí.
            Custódio mexeu, mas para tirá-lo de foco. Só se podia ver umas sombras apagadas e meio disformes.
            - Deixa, deixa ver.
            Alexandrina tomou o bicho, examinou-o, parecia possante. Colocou-o por cima do nariz e deu umas voltinhas no regulador, foi tentando e o foco apareceu nítido, as imagens juntinhas dela, quase aos seus pés. Quase que através dos biquínis, e nos mínimos detalhes. Só faltava ver as pessoas por dentro. Uma maravilha. Mas sempre com cara de ingênua, tirou-o de foco e devolveu.
            - Na verdade não vale nada. Precisas trocá-lo, ou então fica com o meu e te diverte à vontade. O meu é ótimo!
            - Não, Alexandrina, vale a intenção que tive. Comprei esse aí para te dar e depois este outro não é próprio para mulher.
            - Fiz tudo, Custódio e não consegui regulá-lo. É uma pena.
            Custódio, sorrateiramente, regulou o bichão, chamou as banhistas para juntinho de si e ficava se deliciando. Engolia em seco, corria-lhe um calorzinho pela espinha, lembrava-se dos seus bons tempos. De qualquer maneira era um prazer meio diabólico estar olhando as coisas proibidas das mulheres e filhas das outras. Observava os menores gestos das donas, em todas as suas posições às vezes desleixadas. Mas sempre se lamentando com a mulher. – Fui ludibriado. Vou trocar; comprar mesmo um desse teu. É o jeito. Empresta-me aqui um pouquinho.
            - Nada, disso. Fica com o teu. Além disso, é feio um homem usando binóculo de mulher...
            Custódio certinho de que dona Alexandrina falava sério, foi a casa, ali pertinho e deixou o binóculo, por puro descuido no banco da praia. Dona Alexandrina tomou-o, com pena de Custódio. Não passava de um beócio. Não sabia nem focalizar um binóculo. Mas era bom assim. Não tinha que estar olhando para o corpo quase nu das mulheres. E nem o aconselharia mais a trocá-lo. E nessas conjecturas, levou o binóculo aos olhos. Quase cai de costas. As imagens eram maravilhosas. Uma nitidez incrível. E nesse momento percebeu quando uma dona ajeitava a pecinha de baixo, na maior sem-vergonhice e logo depois levantava as pecinhas de cima e olhava para os dois bichinhos como se estivesse querendo acariciá-los.
            Custódio não passava de um cachorrão, um velho safado, a depravação em pessoa. E foi vendo muito mais coisa interessante. Lá estava um casal agarrado enroscado, no meio das ondas. Uma pouca vergonha. Colocou o binóculo no lugar antes que Custódio aparecesse. E esperou Custódio chegar com a cara mais lisa deste mundo.
            - Nem vou mais usar isto. Tão grandão e tão péssimo. Não serve pra nada. Disfarçou um pouco, esfregou os olhos pra enxergar melhor e o binóculo dormindo no banco.
            - Pega, homem, toma o meu. Tenho dó de te ver assim, com a vista curta, sem poder apreciar o mar, as ondas, as jangadas, os coqueirais, a praia Formosa, Cabo Branco, Ponta de Mato, os navios...
            - Deixa mulher. Obrigado, obrigado. Não quero privar-te de uma boa manhã na praia.
            E com alguns bons minutos tomou o seu, tentou umas espiadas e largou-o no banco. Disfarçava.
            - Me deixa tentar novamente, Custódio.
            - Que nada. Já fiz tudo. Não tem jeito mesmo. Vou tentando assim mesmo com essas imagens embaraçadas.
            - Eu acho que as lentes estão é mofadas. Muito tempo na casa...
            - É isto. Deve ser isto. E levou o binóculo à cara e ficou percorrendo a praia até que se fixou num ponto.
            Dona alexandrina procurou localizar o mesmo objeto. Olhava na mesma direção e lá estava a atração de Custódio. – O sem vergonha, descarado. Um casal se enrolando na areia, distante dos outros e na maior intimidade. Só podia ser aquilo. Não se conteve mais. Tirou o binóculo dos olhos e ficou observando. Vez por outra dava uma observada com o dela. Em certo momento Custódio desceu o binóculo. E ela focou o dela. O casal havia se levantado. Não havia mias dúvida de que era a cena que o safadório observava. Era melhor irem para casa.
            - Não, mulher. Diverte-te mais. Não te incomodes comigo. Também não sirvo mais para nada.
            - Olha Custódio, vens tentando me enganar, mas descobri tuas manhas. O binóculo que irás trocar amanhã, amanhã mesmo, será o meu. Não tens vergonha de querer enganar tua própria mulher, mulher de mais de cinqüenta anos de vida contigo. Usei teu binóculo. Uma maravilha!!! Bandido... Toma esta porcaria que me deste e me trás igual a este teu ou maior. A invenção de binóculo foi tua. Aliás, passa-me para cá logo esse teu até que traga o outro.
            - Mulher, com binóculo ou se binóculo, não adianta mais nada. Quando a coisa congela não há mais esperança. Pode-se andar em cima de brasa, a temperatura é a mesma... Não sabe?
            - Mas dá uma saudade, Custódio...
            - Que dá, dá, mas, quem sabe se não causará um enfarte. Muita gente tem morrido disso.
            - Pior é ficarmos mais inutilizados do que já estamos. Sem levantar mais e com a boca torta.
            - De qualquer forma, amanhã vou trocar o teu binóculo. A coisa é divertida.
            - Faças como quiseres. Quem manda em casa é o marido...
            - Estás ficando depravada, mulher...
            - Depravado és tu que estavas olhando aquele bolo na areia da praia.
            - E não viste também.
            - Fui só ver o que estavas olhando tão interessado.
            - Vamos deitar acolá na areia da praia.
            - Pra que?
            - Simular, ao menos Alexandrina...
            - Descarado, depravado, cachorrão... Mas como quem manda é o dono da casa, vamos lá bicho velho reimoso!
            Água salgada e areia da praia fazem milagre...
            Dona Alexandrina animou-se, mas sabia que era inútil. Tarde demais. Tinham que ficar no binóculo mesmo.

Em 6.8.1985

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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