OS BINÓCULOS*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Ele oitenta e cinco anos e ela
oitenta e dois, um casal como poucos existem. Nasceram, e casaram-se no
interior, vida de fazenda bem em cima da serra da Borborema. Fora do período
escolar, iam à cidade pelas quatro festas do ano ou em solenidades especiais. Custódio,
um velhinho, que tivera preguiça de crescer e ficara abaixo de um metro e trinta,
coisa que não lhe causava qualquer complexo. Fisionomia agradável e dignidade à
prova de maçarico. Ninguém sabia de um ato seu que não merecesse elogios. A
fazenda era o seu mando e lhe rendia o que desejava pra uma vida normal. Não
conhecia excessos e principalmente a moral era coisa sagrada. Qualquer liberalidade
era considerada uma quebra de dignidade.
Um decote, uma saia acima do tornozelo e até
uma calça de homem muito justa, falta de vergonha. Manga curta não ficava
atrás. Mulher que cortava os cabelos e fumava em público era um Deus nos acuda.
Sem-vergonhice.
Dona Alexandrina, nem era bom
pensar. Ia além das regras do marido. Criatura simpática, alegre e religiosa
como se fosse uma beata. Nada de falhar com suas rezas diárias no quarto do santuário.
Santuário antigo, trabalhado e apinhado de imagens dos santos de sua devoção.
Pelas paredes, estampas, crucifixos, rosários bentos e cruzes de palha benta
dos domingos de ramos. Fazia gosto aquela devoção.
A vida na fazenda foi se tornando em
solidão. Os três filhos, todos casados, bem situados na vida e na sociedade,
passaram-se para morar na capital a antiga Paraíba, de antes de João Pessoa.
Pedro, o mais velho, Cirurgião
Dentista, Jonas, Guarda Livro e Paulo, funcionário da Secretaria da Fazenda. A
permanência do casal na fazenda era-lhes uma constante preocupação. Naquela
idade, deveriam os pais viver pertinho deles. Embora tenha sido difícil
convencê-los a transferirem-se para a capital, após imensa luta, conseguiram.
Um problema era onde desejariam morar. No centro da cidade, num bairro ou na
praia?
- Nada de centro. O melhor seria
mesmo um recanto onde estivesse em contato permanente com a natureza.
A escolha foi a praia de Tambaú. Ali estavam um mar admiravelmente belo,
os coqueirais, os cajueiros nativos, as jangadas, os navios passando para
Cabedelo e um mundo de poesia. Tambaú, Cabo branco, a praia de Gonçalo, Ponta
do Mato, praia Formosa e o areal limpinho da praia.
Mais distante, mar adentro, o cordão
de arrecifes onde quebravam as ondas formando uma beleza sem igual, de brancas
espumas. Aquilo era para não se cansar de ver. Mar esverdeado, mar azulado, mar
claro, dependendo das horas. A saída e a chegada das jangadas era outro espetáculo
deslumbrante.
O casal Santiago mudara
completamente de ambiente e de sistema de vida. A fazenda ficara entregue a um
sobrinho que a fazia render ainda mais. Era um patrimônio de família intransferível,
pelo valor e pela afetividade. Passaria de filhos a netos. Quando queriam
diluir as saudades faziam–lhe uma visita, reviam recanto por recanto e voltavam
com caixas de queijos e manteiga de garrafas, amarelinhas como se fosse gema de
ovo.
Nos dias santos e domingos os filhos
reuniam-se a eles e aquela convivência enchiam-lhe de prazeres. Pela manhã e à
tardinha, passeavam os dois pela orla dos mares e aquele ar saudável era-lhes
um elixir de longa vida.
Os tempos foram se indo
imperceptivelmente e os costumes evoluíram numa corrida de doidos varridos. Os
decotes cresciam, as saias encurtavam pernas, e seios mal protegidos, ofereciam
um espetáculo novo aos olhos curiosos do casal. A princípio parecia o fim do
mundo que estaria para acabar. Era um escândalo, moças de maiô colado,
mostrando irreverentemente as curvas e reentrâncias do corpo.
Dona Alexandrina não tirava os olhos
de cima de Custódio. Acompanhava-lhe todos os movimentos.
- O que é que estás olhando,
Custodio? Vamos para casa. Isto é uma vergonha. Onde estão os pais dessas
desajuizadas. Podem esperar o castigo.
- Que nada, Alexandrina, o solzinho
está uma delícia... São coisas do tempo mulher. Tudo que acontece é permitido
por Nosso Senhor.
- Esta não!!! Nosso Senhor não
concorda com essas patifarias. Onde já se viu semelhante descaramento. Vamos,
vamos...
- Vá você. Preciso tomar mais um
pouquinho de sol. Na fazenda passava a vida no campo, tomando sol. Aqui me faz
falta.
- Faz falta coisa nenhuma, velho
enxerido. Conheço tuas manhas. O que queres é ficar olhando as pernas dessas
lambisgóias sem pai, sem mãe, sem juízo...
-
Nada disso, mulher. Não me adianta ver mais essas coisas... Pernas, só mesmo as
tuas.
- Não admito safadeza, nem
pilantragem.
E o tempo foi galopando. Do maiô,
passaram as meninas para os biquínis e as tangas.
- O mundo vai se acabar mais cedo do
que eu esperava – dizia dona Alexandrina, fazendo o pelo sinal da santa cruz.
Sabes de uma coisa, Custódio, vamos voltar para a fazenda. Uma nudez dessas já
passou de falta de vergonha. Tenho rezado para ver se a coisa para e é pior
ainda. Essas doidas estão cutucando o cão com vara curta. O inferno não vai
caber a metade.
- Já te disse Alexandrina, isso é
coisa da evolução. Mulher nua ou vestida é a mesma. Só porque querem mostrar os
seus encantos, fazes este escarcéu. Deixa as meninas se divertirem.
- Olha Custódio, estou te
estranhando e é bom que cries vergonha nas fuças. E deu-lhe uma tapinha na boca.
- Que é isto, mulher. Vou comprar
umas pecinhas daquelas para teus banhos...
- Não suporto deboche. Vou falar com
teus filhos sobre teus desavergonhamentos. Tiro você daqui. Depois de velho,
caduco. Metido com enxerimentos.
- Mas, minha velha, não saio do teu
lado e estou olhando somente para o mar, vendo as ondas quebrar, a espuma
alvinha nos arrecifes. Vamos fazer um acerto. Ficaremos tomando sol e olhando
só um para o outro.
- Tem graça não. Já estou enjoada
dessa tua cara deslavada. Bicho cínico!
- Somente você reclama de mim. Eu
ainda nada reclamei de você.
- Reclamar o que?
- Estão aí os homens quase nus, só
com um calçãozinho imoral e não me tiras os olhos de cima.
- Nada disso, seu cachorrão. Não me
venhas com essas insinuações. Sou uma mulher honesta e católica.
- Sei, sei. Mas nunca é tarde demais
para sonhar...
No dia seguinte, Custódio foi à
cidade. Embora, como diz Jorge Amado, - sexo começa nos olhos -, na verdade só
era o que restava no coronel Custódio. As meninas de tanga não lhe saiam,
então, dos olhos. E como a vista não estava lá grande coisa, fora a uma casa de
ótica e comprara dois binóculos, um de maior aumento que encontrara e outro
mais delicado e de pouco alcance, para dona Alexandrina. Em casa, não falou no
poder de visão e teve o cuidado de ocultar o que lhe pertencia. Seria, mais
tarde, uma surpresa.
- Está aí um presente dona
Alexandrina. Assim poderás observar melhor os navios que passam e as jangadas
que vão ou voltam das pescarias.
- Que beleza, Custódio. És o melhor
marido deste mundo e do outro.
No domingo, a praia regurgitava de
gente. Um domingo ensolarado, claro, bonito. O mulherio fizera uma invasão
ainda não vista. Até parecia que as pecinhas haviam encurtado. Estava um dia
magnífico para inaugurar um binóculo. Dona Alexandrina, de binóculo nos olhos
corria a orla marítima e as distancia mar adentro.
- Formidável Custódio - Custódio
experimentou o binoclozinho de enfeite e mostrou-se também maravilhado. Minutos
depois deu saltinho a casa e pegou o outro, o grandão, o dele, binóculo de
homem.
- Você escondeu o seu não foi, seu
velho ordinário...
- Para fazer uma surpresa e, além
disso, teve mais efeito a entrega do teu. Botou-o na cara e lamentou-se. – Vou
trocar, não vale nada. Só se ver pertinho. Fui enganado.
Dona Alexandrina, preocupada com o
dela, achando tudo bonito, pertinho dela, nem se preocupou com o binóculo do
Custódio. Somente no domingo seguinte lembrou-se de experimentá-lo.
- Deixa ver aqui, Custódio.
- Não vale nada, mulher. Uma pinóia.
- Então vai trocá-lo. Dinheiro é
dinheiro, não se pode jogar fora assim, devias ter experimentado.
- Confiei, mulher. Sou um matutão
boboca.
E foi disfarçando.
- Ou não sabes regular. Mexe nessa
rodinha aí.
Custódio mexeu, mas para tirá-lo de
foco. Só se podia ver umas sombras apagadas e meio disformes.
- Deixa, deixa ver.
Alexandrina tomou o bicho, examinou-o,
parecia possante. Colocou-o por cima do nariz e deu umas voltinhas no
regulador, foi tentando e o foco apareceu nítido, as imagens juntinhas dela,
quase aos seus pés. Quase que através dos biquínis, e nos mínimos detalhes. Só
faltava ver as pessoas por dentro. Uma maravilha. Mas sempre com cara de
ingênua, tirou-o de foco e devolveu.
- Na verdade não vale nada. Precisas
trocá-lo, ou então fica com o meu e te diverte à vontade. O meu é ótimo!
- Não, Alexandrina, vale a intenção
que tive. Comprei esse aí para te dar e depois este outro não é próprio para
mulher.
- Fiz tudo, Custódio e não consegui
regulá-lo. É uma pena.
Custódio, sorrateiramente, regulou o
bichão, chamou as banhistas para juntinho de si e ficava se deliciando. Engolia
em seco, corria-lhe um calorzinho pela espinha, lembrava-se dos seus bons tempos.
De qualquer maneira era um prazer meio diabólico estar olhando as coisas
proibidas das mulheres e filhas das outras. Observava os menores gestos das
donas, em todas as suas posições às vezes desleixadas. Mas sempre se lamentando
com a mulher. – Fui ludibriado. Vou trocar; comprar mesmo um desse teu. É o
jeito. Empresta-me aqui um pouquinho.
- Nada, disso. Fica com o teu. Além
disso, é feio um homem usando binóculo de mulher...
Custódio certinho de que dona
Alexandrina falava sério, foi a casa, ali pertinho e deixou o binóculo, por
puro descuido no banco da praia. Dona Alexandrina tomou-o, com pena de
Custódio. Não passava de um beócio. Não sabia nem focalizar um binóculo. Mas
era bom assim. Não tinha que estar olhando para o corpo quase nu das mulheres.
E nem o aconselharia mais a trocá-lo. E nessas conjecturas, levou o binóculo
aos olhos. Quase cai de costas. As imagens eram maravilhosas. Uma nitidez
incrível. E nesse momento percebeu quando uma dona ajeitava a pecinha de baixo,
na maior sem-vergonhice e logo depois levantava as pecinhas de cima e olhava para
os dois bichinhos como se estivesse querendo acariciá-los.
Custódio não passava de um
cachorrão, um velho safado, a depravação em pessoa. E foi vendo muito mais
coisa interessante. Lá estava um casal agarrado enroscado, no meio das ondas.
Uma pouca vergonha. Colocou o binóculo no lugar antes que Custódio aparecesse.
E esperou Custódio chegar com a cara mais lisa deste mundo.
- Nem vou mais usar isto. Tão
grandão e tão péssimo. Não serve pra nada. Disfarçou um pouco, esfregou os
olhos pra enxergar melhor e o binóculo dormindo no banco.
- Pega, homem, toma o meu. Tenho dó
de te ver assim, com a vista curta, sem poder apreciar o mar, as ondas, as
jangadas, os coqueirais, a praia Formosa, Cabo Branco, Ponta de Mato, os
navios...
- Deixa mulher. Obrigado, obrigado.
Não quero privar-te de uma boa manhã na praia.
E com alguns bons minutos tomou o
seu, tentou umas espiadas e largou-o no banco. Disfarçava.
- Me deixa tentar novamente, Custódio.
- Que nada. Já fiz tudo. Não tem
jeito mesmo. Vou tentando assim mesmo com essas imagens embaraçadas.
- Eu acho que as lentes estão é
mofadas. Muito tempo na casa...
- É isto. Deve ser isto. E levou o
binóculo à cara e ficou percorrendo a praia até que se fixou num ponto.
Dona alexandrina procurou localizar
o mesmo objeto. Olhava na mesma direção e lá estava a atração de Custódio. – O
sem vergonha, descarado. Um casal se enrolando na areia, distante dos outros e
na maior intimidade. Só podia ser aquilo. Não se conteve mais. Tirou o binóculo
dos olhos e ficou observando. Vez por outra dava uma observada com o dela. Em
certo momento Custódio desceu o binóculo. E ela focou o dela. O casal havia se
levantado. Não havia mias dúvida de que era a cena que o safadório observava.
Era melhor irem para casa.
- Não, mulher. Diverte-te mais. Não
te incomodes comigo. Também não sirvo mais para nada.
- Olha Custódio, vens tentando me
enganar, mas descobri tuas manhas. O binóculo que irás trocar amanhã, amanhã
mesmo, será o meu. Não tens vergonha de querer enganar tua própria mulher,
mulher de mais de cinqüenta anos de vida contigo. Usei teu binóculo. Uma
maravilha!!! Bandido... Toma esta porcaria que me deste e me trás igual a este
teu ou maior. A invenção de binóculo foi tua. Aliás, passa-me para cá logo esse
teu até que traga o outro.
- Mulher, com binóculo ou se
binóculo, não adianta mais nada. Quando a coisa congela não há mais esperança.
Pode-se andar em cima de brasa, a temperatura é a mesma... Não sabe?
- Mas dá uma saudade, Custódio...
- Que dá, dá, mas, quem sabe se não
causará um enfarte. Muita gente tem morrido disso.
- Pior é ficarmos mais inutilizados
do que já estamos. Sem levantar mais e com a boca torta.
- De qualquer forma, amanhã vou
trocar o teu binóculo. A coisa é divertida.
- Faças como quiseres. Quem manda em
casa é o marido...
- Estás ficando depravada, mulher...
- Depravado és tu que estavas
olhando aquele bolo na areia da praia.
- E não viste também.
- Fui só ver o que estavas olhando tão
interessado.
- Vamos deitar acolá na areia da
praia.
- Pra que?
- Simular, ao menos Alexandrina...
- Descarado, depravado, cachorrão...
Mas como quem manda é o dono da casa, vamos lá bicho velho reimoso!
Água salgada e areia da praia fazem
milagre...
Dona Alexandrina animou-se, mas
sabia que era inútil. Tarde demais. Tinham que ficar no binóculo mesmo.
Em 6.8.1985
*O conto pertence
ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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