terça-feira, 8 de dezembro de 2015

ZORILDO

 
ZORILDO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

Zorildo, ponta de rama da família, nascera raquítico e como se já tivesse nascido cansado. Baixinho e franzino, tinha desgosto de ter vindo ao mundo com aquele físico que os outros achavam ridículo. Esperava crescer até os 18 anos, mas não avançou mais do que uns escassos centímetros. Nem dava para medir. E aquela coisa emperrada, minúscula, sentia-se deprimido diante dos colegas. Havia de valer-se de algum recurso pessoal para superar a deficiência física. Fazer um esforço sobre humano para destacar-se nos estudos. Até então não havia se apercebido de que dispunha de uma boa memória e de uma inteligência razoável, talvez superior aos que poderiam supor. Mas será que levariam em conta esses seus dotes intelectuais? De qualquer forma era o de que poderia valer-se. Caía em cima dos livros e dos deveres assim como um animal faminto. Lia, relia, rabiscava papel, tentando expressar seus sentimentos, consultava dicionário, para correção da ortografia. Não participava de  brincadeiras, ausentava-se das festas, onde poderia até parecer uma figura meio ridícula.
Com o tempo, percebeu que era dotado de facilidade de escrever e falar. Adquiria livros especiais sobre literatura e oratória. Devorava tudo quanto lhe caia nas mãos. Mas seria difícil fazer com que acreditassem em sua capacidade de improvisar e descrever. Teria que conseguir oportunidades. Idealizou, então, um jornalzinho semanário para o colégio. Escreveria alguma coisa e colocaria o seu nome logo em cima. Acreditas sim ou não, mas ali estaria o seu nome. Mostraria que tamanho, gordura, poderia ter valor na balança, o que valia era o intelecto.
Saiu o primeiro número. Foi um espanto. O diretor do colégio chamou Zorildo:
- Quem escreveu esta crônica, Zorildo. Teu pai? É feio assinar coisas que os outros escrevem. Não repitas isto. A pessoa deve ser correta desde cedo. Quem começa assim, desacredita-se logo.
- Mas quem contou ao senhor que não fui eu quem escreveu? Ou é apenas suposição do senhor. Será porque sou um rapazinho raquítico, não tenho a estampa dos outros. Posso dar uma comprovação. Vou pegar papel e lápis, e vou escrever aqui na presença do senhor. Não é possível que já traga decorado. Aliás, o senhor pode dizer o assunto, contando que seja literário. Como o senhor vê, minha cabeça é pequena, proporcional ao corpo, mas não é vazia.
Fez o teste, puxou pela massa cinzenta e escreveu uma página até lírica. Correta no escrever e num estilo próprio.
O Padre Teodomiro pediu perdão. - Não sabia que possuías esses dotes. Desculpe-me.
- Não tenho o que desculpar. Todos podem se enganar. Deus me deu essa compensação. Já pensou se além de miudinho como sou, fosse também um burrinho?
E semanalmente o jornalzinho saia com o nome de Zorildo. Cada vez melhor. Noutra coluna, fazia a biografia humanística.
Na semana seguinte o “Pirilampo” estampava a biografia humanística do monsenhor Cardoso, Mas, elogiosa. E no arremate, Zorildo declarava que o Monsenhor havia lhe oferecido um livro de física com o intento de ajudar um estudante raquítico e pobre. Fazia o agradecimento. E o Monsenhor não teve onde espirrar. Comprou o compêndio e presenteou-o.
- Olha Zorildo, continua e não faltará quem te ajude. Sabes dizer as coisas e a gente fica a te querer bem. Mas não penses que vou te dar notas boas só por isto. Estuda, bicho...
Zorildo procurava uma oportunidade para fazer um discurso de improviso, numa solenidade. Queria mostrar quem era. Chegou o dia das mães. Festa no colégio. Convite para comparecimento das mães dos alunos. Ninguém se lembrou de Zorildo. O Reitor designou-o padre Florêncio para fazer o elogio às mães. Era considerado um bom orador.
No final do discurso, foi facultada a palavra. Zorildo meteu os pés. Era a sua vez. A assistência ficou gelada. O que poderia sair daquela coisinha chocha e morena; logo depois de ouvir o padre Florêncio, como era que concediam a palavra a uma muriçoca daquela.
Zorildo subiu à tribuna e fez um arzinho de riso, olhou o ambiente, demorou um pouco como se nada soubesse dizer. Os comentários saiam baixinho, mas ouvia-se o zunzum da assistência. Zorildo começou a falar com uma tranqüilidade de velho orador. A oração saiu como água cristalina, jorrando de uma fonte de cristal. Fazia comparações e derramava poesia sobre as mães que o ouviam embevecidas. Os padres e os seus colegas pararam a respiração. Não, não podia ser Zorildo. Deveria ser o espírito de algum gênio oculto naquela figurinha que parecia mais um galhinho seco das caatingas do Nordeste.
Nem foi breve, nem se alongou demais. E arrematou
– Mães! Minha mãezinha está entre vós. É a mais simples e a mais humilde de todas. Ninguém pode avaliar o sacrifício que tem feito para manter-me neste colégio. Moramos numa casinha de barro, coberta de palha isto não impediu que esta santa criatura fizesse de mim um dos alunos deste colégio. Levanto as mãos magras para o céu e peço à mãe de todas as mães, que abençoe essas santas que muitas vezes sorriem para nós, ocultando uma lágrima para que sempre nos sintamos felizes. Uma mãe é o santuário de todas as nossas esperanças e alegrias. Não há riqueza maior do que a riqueza do coração de uma mãe. Onde está uma mãe está uma benção. Quando está ausente, nos leva no coração. Mãe, minha mãe, a roupa que tu lavas com as mãos já cansadas, para o nosso sustento e a camisa que visto, hei de compensar-te um dia!

04/07/1979

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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