ZORILDO*
João
Henriques da Silva
(In Memoriam
– 20/09/1901 – 16/04/2003)
Zorildo,
ponta de rama da família, nascera raquítico e como se já tivesse nascido
cansado. Baixinho e franzino, tinha desgosto de ter vindo ao mundo com aquele
físico que os outros achavam ridículo. Esperava crescer até os 18 anos, mas não
avançou mais do que uns escassos centímetros. Nem dava para medir. E aquela
coisa emperrada, minúscula, sentia-se deprimido diante dos colegas. Havia de
valer-se de algum recurso pessoal para superar a deficiência física. Fazer um
esforço sobre humano para destacar-se nos estudos. Até então não havia se
apercebido de que dispunha de uma boa memória e de uma inteligência razoável,
talvez superior aos que poderiam supor. Mas será que levariam em conta esses
seus dotes intelectuais? De qualquer forma era o de que poderia valer-se. Caía
em cima dos livros e dos deveres assim como um animal faminto. Lia, relia,
rabiscava papel, tentando expressar seus sentimentos, consultava dicionário,
para correção da ortografia. Não participava de brincadeiras, ausentava-se das festas, onde
poderia até parecer uma figura meio ridícula.
Com
o tempo, percebeu que era dotado de facilidade de escrever e falar. Adquiria
livros especiais sobre literatura e oratória. Devorava tudo quanto lhe caia nas
mãos. Mas seria difícil fazer com que acreditassem em sua capacidade de
improvisar e descrever. Teria que conseguir oportunidades. Idealizou, então, um
jornalzinho semanário para o colégio. Escreveria alguma coisa e colocaria o seu
nome logo em cima. Acreditas sim ou não, mas ali estaria o seu nome. Mostraria
que tamanho, gordura, poderia ter valor na balança, o que valia era o
intelecto.
Saiu
o primeiro número. Foi um espanto. O diretor do colégio chamou Zorildo:
-
Quem escreveu esta crônica, Zorildo. Teu pai? É feio assinar coisas que os outros
escrevem. Não repitas isto. A pessoa deve ser correta desde cedo. Quem começa
assim, desacredita-se logo.
-
Mas quem contou ao senhor que não fui eu quem escreveu? Ou é apenas suposição
do senhor. Será porque sou um rapazinho raquítico, não tenho a estampa dos
outros. Posso dar uma comprovação. Vou pegar papel e lápis, e vou escrever aqui
na presença do senhor. Não é possível que já traga decorado. Aliás, o senhor
pode dizer o assunto, contando que seja literário. Como o senhor vê, minha
cabeça é pequena, proporcional ao corpo, mas não é vazia.
Fez
o teste, puxou pela massa cinzenta e escreveu uma página até lírica. Correta no
escrever e num estilo próprio.
O
Padre Teodomiro pediu perdão. - Não sabia que possuías esses dotes. Desculpe-me.
-
Não tenho o que desculpar. Todos podem se enganar. Deus me deu essa
compensação. Já pensou se além de miudinho como sou, fosse também um burrinho?
E
semanalmente o jornalzinho saia com o nome de Zorildo. Cada vez melhor. Noutra
coluna, fazia a biografia humanística.
Na
semana seguinte o “Pirilampo” estampava a biografia humanística do monsenhor
Cardoso, Mas, elogiosa. E no arremate, Zorildo declarava que o Monsenhor havia
lhe oferecido um livro de física com o intento de ajudar um estudante raquítico
e pobre. Fazia o agradecimento. E o Monsenhor não teve onde espirrar. Comprou o
compêndio e presenteou-o.
- Olha
Zorildo, continua e não faltará quem te ajude. Sabes dizer as coisas e a gente
fica a te querer bem. Mas não penses que vou te dar notas boas só por isto. Estuda,
bicho...
Zorildo
procurava uma oportunidade para fazer um discurso de improviso, numa
solenidade. Queria mostrar quem era. Chegou o dia das mães. Festa no colégio.
Convite para comparecimento das mães dos alunos. Ninguém se lembrou de Zorildo.
O Reitor designou-o padre Florêncio para fazer o elogio às mães. Era
considerado um bom orador.
No
final do discurso, foi facultada a palavra. Zorildo meteu os pés. Era a sua
vez. A assistência ficou gelada. O que poderia sair daquela coisinha chocha e
morena; logo depois de ouvir o padre Florêncio, como era que concediam a
palavra a uma muriçoca daquela.
Zorildo
subiu à tribuna e fez um arzinho de riso, olhou o ambiente, demorou um pouco
como se nada soubesse dizer. Os comentários saiam baixinho, mas ouvia-se o
zunzum da assistência. Zorildo começou a falar com uma tranqüilidade de velho
orador. A oração saiu como água cristalina, jorrando de uma fonte de cristal.
Fazia comparações e derramava poesia sobre as mães que o ouviam embevecidas. Os
padres e os seus colegas pararam a respiração. Não, não podia ser Zorildo.
Deveria ser o espírito de algum gênio oculto naquela figurinha que parecia mais
um galhinho seco das caatingas do Nordeste.
Nem
foi breve, nem se alongou demais. E arrematou
–
Mães! Minha mãezinha está entre vós. É a mais simples e a mais humilde de
todas. Ninguém pode avaliar o sacrifício que tem feito para manter-me neste colégio.
Moramos numa casinha de barro, coberta de palha isto não impediu que esta santa
criatura fizesse de mim um dos alunos deste colégio. Levanto as mãos magras
para o céu e peço à mãe de todas as mães, que abençoe essas santas que muitas
vezes sorriem para nós, ocultando uma lágrima para que sempre nos sintamos
felizes. Uma mãe é o santuário de todas as nossas esperanças e alegrias. Não há
riqueza maior do que a riqueza do coração de uma mãe. Onde está uma mãe está
uma benção. Quando está ausente, nos leva no coração. Mãe, minha mãe, a roupa
que tu lavas com as mãos já cansadas, para o nosso sustento e a camisa que
visto, hei de compensar-te um dia!
04/07/1979
*Este conto faz parte
do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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