NOVATO*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Novato era o burrinho de sela de
estimação do senhor meu pai. Aliás, dele somente não. De toda a família, além
de ser ambicionado por todos que o conheciam.
Novato só não era gente porque não dava coice e nem possuía maus costumes.
Manso, inteligente, sempre gordinho, andador, resistente, macio e simpático.
Sim. Um burro simpático e até brincalhão. Conhecia todo mundo e tinha
uma aparência agradável.
A gente – a meninada – às vezes abusava de sua mansidão e de sua camaradagem.
Quando foi ficando velho, começou a brincar com a gente, fazendo algumas
peraltagens. Por exemplo: Comia quase sempre amarrado nos melhores pastos e
quando a gente ia mudá-lo de local ou buscá-lo para alguma viagem, Novato não
deixava chegar perto para desamarrar. Fazia que queria morder e corria pra cima
da gente. Nunca fazia isso com pessoas grandes, a quem respeitava. Usávamos,
então, uma tática. Enquanto uns ficavam pela frente procurando entretê-lo e
desviando a sua atenção, outro ia por longe e desatava a corda. Então ele
parava com as suas ameaças.
Mas, o engraçado era outro hábito que adquirira. Quando a gente ia
buscá-lo, comumente, montávamos até quatro meninos de uma vez. Fazia uma
fileira no lombo, e começava-se com converseira e risadagem. Novato não
tolerava essa folia e quando menos se esperava, dava uma série de polpinhas
miúdas para não machucar e jogava tudo no chão. Se a gente ia caladinho, nada
acontecia. Levava tranqüilamente todo mundo. O negócio era algazarra. Nada
disso fazia com pessoas grandes.
Meu pai só andava nele. Macio, bom andador e resistente, não se
enfadava. Varava léguas e léguas de sertão, mudando a passada sem que fosse
preciso estimulá-lo.
Sabia o que estava fazendo e o que meu pai gostava. Ora caminhava no
baixo, ora num galopinho em cima de uma mão, que não enfadava ninguém. Mudava
de passada por ele mesmo para não se enfadar tanto. Entendia tudo. Pai não
gostava que outras pessoas montassem nele.
E ai daquele que lhe batesse e
desse uma esporada. Novato sabia o que fazer. E era mesmo. Conhecia todos os
caminhos e parece que entendia para onde a gente ia. Era um burrinho bem
educado.
Certa feita aconteceu um fato
curioso. A margem da estrada que saia para a Lagoa do Capim e que dava para
vários lugares; ficava o canto do curral. Passava a dois ou três metros dela.
Era por onde mais se passava. Pai mandou selar o Novato para ir, creio eu, a
Esperança ou ao Riacho Fundo, terra de minha avó paterna. Foi saindo
tranquilamente. Mas ao se aproximar da quina do curral, refugou e recuou
inesperadamente, - o curral era de pau-a-pique. Torceu por dentro do mato, meu
pai não gostava de teimosia. Tentou por várias vezes passar pelo caminho, mas
não houve jeito. Ao aproximasse do canto do curral, Novato desviava-se rápido e
só passava por longe.
Pai, parou, examinou tudo e nada observou de estranho. Podia ser cobra.
Verificou o local, era limpo. Não encontrou nada que justificasse aquele medo
de Novato. Teve que passar por fora e daí por diante, todas às vezes nunca mais
passou direto. Pelos outros cantos passava tranqüilo. Vieram, então, várias
suposições. Alguma cobra que meu pai não vira; alguma pessoa que estivesse
escondido por trás do outro lado da cerca, e inclusive, a última suposição de
pai; alguma assombração, coisa do outro mundo. Achava que não podia ser coisa a
causar tanto medo a Novato, sem manha, sem cacoetes nas viagens. E meu pai, às
vezes brincava. Se foi mal-assombrado, foi coisa muito feia. Podia ser alguma
de Zé Furiba, o bicho mais feio das redondezas.
Os tempos foram se passando e Novato envelheceu. Meu pai resolveu
aposentá-lo, como costumava fazer com os animais que havia servido por muito
tempo. Soltou no pasto.
- De hoje em diante ninguém monta mais em Novato.
E assim foi. No entanto, era para não lhe falta nada. Comida, água, e
banhos uma vez por outra. Sela no lombo, nunca mais. Iria morrer em seu poder.
Mas, infelizmente não foi assim. Certo dia Novato desapareceu. Os
ladrões de cavalos, o furtaram.
Procurado por toda parte, nunca apareceu. Foi uma tristeza geral. A
maior revolta de meu pai era saber que alguém deveria andar montado nele, já
velho, esporeando-o e batendo-o.
Foi difícil conformá-lo.
E ainda hoje se tem saudade de quem foi tão bom e tão amigo. Nunca
apareceu outro igual.
*O conto faz
parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Nota:
Reminiscência da fazenda Arara onde nasceu e viveu sua adolescência.
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