sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

NOVATO



NOVATO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Novato era o burrinho de sela de estimação do senhor meu pai. Aliás, dele somente não. De toda a família, além de ser ambicionado por todos que o conheciam.
Novato só não era gente porque não dava coice e nem possuía maus costumes. Manso, inteligente, sempre gordinho, andador, resistente, macio e simpático.
Sim. Um burro simpático e até brincalhão. Conhecia todo mundo e tinha uma aparência agradável.
A gente – a meninada – às vezes abusava de sua mansidão e de sua camaradagem. Quando foi ficando velho, começou a brincar com a gente, fazendo algumas peraltagens. Por exemplo: Comia quase sempre amarrado nos melhores pastos e quando a gente ia mudá-lo de local ou buscá-lo para alguma viagem, Novato não deixava chegar perto para desamarrar. Fazia que queria morder e corria pra cima da gente. Nunca fazia isso com pessoas grandes, a quem respeitava. Usávamos, então, uma tática. Enquanto uns ficavam pela frente procurando entretê-lo e desviando a sua atenção, outro ia por longe e desatava a corda. Então ele parava com as suas ameaças.
Mas, o engraçado era outro hábito que adquirira. Quando a gente ia buscá-lo, comumente, montávamos até quatro meninos de uma vez. Fazia uma fileira no lombo, e começava-se com converseira e risadagem. Novato não tolerava essa folia e quando menos se esperava, dava uma série de polpinhas miúdas para não machucar e jogava tudo no chão. Se a gente ia caladinho, nada acontecia. Levava tranqüilamente todo mundo. O negócio era algazarra. Nada disso fazia com pessoas grandes.
Meu pai só andava nele. Macio, bom andador e resistente, não se enfadava. Varava léguas e léguas de sertão, mudando a passada sem que fosse preciso estimulá-lo.
Sabia o que estava fazendo e o que meu pai gostava. Ora caminhava no baixo, ora num galopinho em cima de uma mão, que não enfadava ninguém. Mudava de passada por ele mesmo para não se enfadar tanto. Entendia tudo. Pai não gostava que outras pessoas montassem nele.
 E ai daquele que lhe batesse e desse uma esporada. Novato sabia o que fazer. E era mesmo. Conhecia todos os caminhos e parece que entendia para onde a gente ia. Era um burrinho bem educado.
            Certa feita aconteceu um fato curioso. A margem da estrada que saia para a Lagoa do Capim e que dava para vários lugares; ficava o canto do curral. Passava a dois ou três metros dela. Era por onde mais se passava. Pai mandou selar o Novato para ir, creio eu, a Esperança ou ao Riacho Fundo, terra de minha avó paterna. Foi saindo tranquilamente. Mas ao se aproximar da quina do curral, refugou e recuou inesperadamente, - o curral era de pau-a-pique. Torceu por dentro do mato, meu pai não gostava de teimosia. Tentou por várias vezes passar pelo caminho, mas não houve jeito. Ao aproximasse do canto do curral, Novato desviava-se rápido e só passava por longe.
Pai, parou, examinou tudo e nada observou de estranho. Podia ser cobra. Verificou o local, era limpo. Não encontrou nada que justificasse aquele medo de Novato. Teve que passar por fora e daí por diante, todas às vezes nunca mais passou direto. Pelos outros cantos passava tranqüilo. Vieram, então, várias suposições. Alguma cobra que meu pai não vira; alguma pessoa que estivesse escondido por trás do outro lado da cerca, e inclusive, a última suposição de pai; alguma assombração, coisa do outro mundo. Achava que não podia ser coisa a causar tanto medo a Novato, sem manha, sem cacoetes nas viagens. E meu pai, às vezes brincava. Se foi mal-assombrado, foi coisa muito feia. Podia ser alguma de Zé Furiba, o bicho mais feio das redondezas.
Os tempos foram se passando e Novato envelheceu. Meu pai resolveu aposentá-lo, como costumava fazer com os animais que havia servido por muito tempo. Soltou no pasto.
- De hoje em diante ninguém monta mais em Novato.
E assim foi. No entanto, era para não lhe falta nada. Comida, água, e banhos uma vez por outra. Sela no lombo, nunca mais. Iria morrer em seu poder.
Mas, infelizmente não foi assim. Certo dia Novato desapareceu. Os ladrões de cavalos, o furtaram.
Procurado por toda parte, nunca apareceu. Foi uma tristeza geral. A maior revolta de meu pai era saber que alguém deveria andar montado nele, já velho, esporeando-o e batendo-o.
Foi difícil conformá-lo.
E ainda hoje se tem saudade de quem foi tão bom e tão amigo. Nunca apareceu outro igual.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Nota: Reminiscência da fazenda Arara onde nasceu e viveu sua adolescência.



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