quinta-feira, 23 de julho de 2015

GORGOLINO

GORGOLINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Num casebre de taipa, à margem do Riacho da Cachoeirinha, nasceu Gorgolino numa sexta-feira de agosto, dia treze. E lhe deu tanto azar, que lhe botaram logo um nome estrambótico, saído da cabeça do pai que adorava coisas esquisitas. Ainda mais, nascera de sete meses, raquítico, a cabeça grande e chata, as pernas finas e tortas e olhos miúdos como olho de cafife, donde veio depois o apelido: Gorgolino Cafife. Cresceu desmantelado. Tinha, entretanto a seu favor, uma inteligência viva e uma memória admirável. Quem não o conhecia na intimidade, não dava nada por Gorgolino Cafife. Os pais pediram a Deus que não nascesse outro igual e a mãe se queixava de que o Gorgolino era assim por que havia sido gerado numa cama de varas, amarrada com embira de caroá e forrada com colchão de capim amargoso em estopa de sacos velhos de fardos de carne de Ceará. O pai, entretanto, discordava. Deveria ter sido mau jeito e afobação da mulher.
            - Se foi assim, a culpa foi tua, Cagaíto.
            - Minha, não, Torfina. A pressa era tua, o chamego era teu. E agora o que se vai fazer com o cotado assim tão desengonçado!
            - Cria-lo para ver em que dá.
            - Que bicho, Cagaíto. Ainda ficas com tuas brincadeiras.
            - Brincadeira, uma ova. E a culpa é mesmo tua. Foi defeito da forma. Não há peça que saia perfeita numa forma aleijada. E o coitadinho que sofra as conseqüências. Eu bem que desconfiava daquela tua barriga cheia de altos e baixos, diferente das outras mulheres buchudas.
            - Toma vergonha nessa cara e vamos cuidar direitinho do Gorgolino. Nascer feio não é pecado não.
            Gorgolino cresceu um pouco. Tinha que ser mesmo baixote e fraquinho de corpo. Mas era ágil como um gato do mato. Punham-lhe apelidos que ele levava na gozação e por isto não pegavam. No entanto tinha uma habilidade danada de apelidar os outros e o apelido ficava como uma cola que não desgruda. Tinham medo dele por isso e mais ainda pela galhofa que fazia com a cara mais cínica deste mundo. Ganhou fama na escola, graça à sua memória fantástica. Era como um gravador novinho em folha. O que ouvia ou lia, ficava para sempre na memória. Além disso, imitava a fala de qualquer um e por isto sempre ajudava os colegas nas perguntas que a professora fazia. Bastava perceber que o menino titubeava na resposta. Mas a professora admirava-se que alunos burros estavam se sobressaindo de um momento para outro e chegava a elogiá-los. E ficava convencida que seus métodos de ensino eram os melhores deste mundo.
            Gorgolino crescia na estima dos colegas, mas tinha receio de que a professora viesse a perceber a tramoia. E de fato, com algum tempo aconteceu o inesperado. O Sabino, vaidoso e safado procurava um meio de complicar Gorgolino que sempre estava à sua frente em conhecimento. Menino filho de gente rica e prestigiada, não se conformava em não ser o primeiro da escola. Sabia que Gorgolino ajudava os colegas e certo dia gritou de lá:
– Quem respondeu foi Gorgolino professora!
            - Não acredito, conheço a voz de todos e não era do Gorgolino.
            - Imitação, dona Chiquinha. Vem fazendo isto há muito tempo, enganando a senhora.
            Gorgolino ficou calado enquanto a classe se levantava em protesto.
            A professora pediu calma – esta bem, turma. Sei que Gorgolino seria incapaz disso, no entanto se o fizesse seria apenas para brincadeira e camaradagem. Sentem-se, sentem-se.
            E foi, então, que o Gorgolino abriu o bico.
            - Fiz para ajudar o colega, professora.
            - Mas a fala era a do Trigueiro!
            - Era senhora. E repetiu a voz do Trigueiro, fielmente.
            A professora riu e perguntou se ele era também capaz de imitá-la.
            - Sou, mas respeito à senhora.
Mas no dia seguinte, antes que a professora chegasse; Gorgolino imitando sua voz dava uma aula de coisas meio licenciosas, enfim, pornográficas. E a professora entrou de surpresa quando Gorgolino explicava a barulheira dos gatos no telhado, o namoro mais escandaloso deste mundo. E imitava os miados até o momento em que os dois gatos se chocavam e começavam a gemer no auge da safadeza. A escola havia virado um saco de gatos. E Gorgolino perguntava à turma:
- E vocês sabem por que os gatos gostam de namorar no telhado?
            - Não, não, não.
            - Ora, também vocês não sabem de nada, vou reprovar todo mundo. Procure aprender as coisas seus beócios.
            A professora, oculta, esperava ansiosa a explicação. O Gorgolino não tinha cura. Também feio como era, tinha que compensar de alguma forma aquele desmantelo físico.
            - Pois bem, rapaziada. É só por que gato na tem cama. E no telhado ninguém vai interrompê-los.
            - E por que fazem aquele arauzé dos diabos?
            - É por que gato não é igual à gente que faz tudo escondido, calado, com medo. Gato faz questão de fazer zoeira para saberem que está na melhor e deixar os outros enciumados.
             A professora entrou na classe e ainda apanhou Gorgolino no seu lugar.
            - Que estava fazendo aí, Gorgolino.
            - Dando aula de catecismo, ajudando à senhora. A turma é de uma ignorância de fazer pena. Mas hoje ficaram sabendo de um bocado de coisa.
            - E se eu te disser que ouvi tua aula.
            - Viu! Gostou? Ainda bem.
            Quando terminou a aula, a professora chamou Gorgolino à parte.
            - Espertinho, não é? Onde aprendesse tanta coisa, Gorgolino.
            - Á toa. Ninguém me ensinou. A gente vai crescendo, vai vendo, vai guardando na memória.
            - Mas não fiques metendo essas coisas na cabeça dos meninos.
            - E vai morrer tudo burro, sem saber o que se passa no mundo dos bichos.
            - E sabes muitas histórias de bichos?
            - Um bocado, mas...
            - Mas o quê? Depois quero que vá me contando.
            - Mas tem umas de arrepiar.
            - Arrepiar o que, Gorgolino.
            - Muita coisa... Em todo caso à senhora é que é a professora e sabe o que esta pedindo...
            E Gorgolino fez um dos seus caricaturistas. A professora achou graça e o mandou sair.
            Gorgolino saiu pensando. Será nota dez todos os dias. Peguei o fraco da dona e agora é só tocar os pauzinhos.
            - Gorgolino, para que foi que a professora te chamou?
            - Para corrigir minha aula de religião. Achou que eu estava ainda muito atrasado. E passou-me um pito. A mulherzinha é mais violenta do que eu pensava.
            Gorgolino completou o primário e a feiura não impediu que fosse o primeiro da turma. Ficou então, sem saber o que fizesse. Meios para estudar fora nem pensava nisso. A saída seria mesmo arranjar um trabalho numa casa comercial ou onde fosse. Já estava taludão, um rapazinho e não queria viver só a expensas dos pais. Estava nesse dilema, quando a professora o chamou para ajudá-lo no ensino. Ganharia alguma coisa e ela ficaria aliviada de tanto esforço. Gorgolino aceitou e passou a ser professor. Pediu livros emprestados à professora e não perdia tempo.
            Gorgolino lia, lia e ia guardando o que lhe cabia na memória. A professora aumentou as matrículas e por fim abriu uma escola particular que entregou a Gorgolino. Mas o jovem não se conformava em deter-se somente em ensinar. Aquela cabeçorra era um mundo de imaginação e criatividade. Começou a rabiscar seus primeiros escritos.
            Levou-os ao jornal – “A Lamparina”, e lá saiu seu nome subscritando historinhas engraçadas; que serviam de admiração. – “O Gorgolino é jornalista” – comentavam. E foi entrando num mundo diferente. Mas até aí Gorgolino criava nome, mas não entrava dinheiro. Em todo caso continuava a escrever coisas e a guardá-las. Ia treinando. Veio-lhe então uma ideia. Ir ao jornal semanário – “O Facão” e pedir um lugar que lhe rendesse qualquer coisa. Conseguiu trabalhar de revisor e com direito a publicar seus escritos.
Bicho esperto; resolveu fazer pequenos comentários focalizando o que se fazia de bom na cidade, citando nomes. Aqui e ali escrevia algumas críticas sobre erros e descasos cometidos, sem cometer injustiças. Ao mesmo tempo rebatia críticas e fofocas à administração e aos homens de bem. De um lado, agradava, de outro assustava. Era bom que gostassem dele e ao mesmo tempo o respeitassem. Não tocava, entretanto, na vida privada de ninguém. Só uma coisa Gorgolino não perdoava. Era comunista. Corja de ambiciosos e vagabundos sem patriotismo. Uma canalha que não deseja bem a ninguém e só pensa em se locupletar com as coisas alheia. Iludir o povo besta, para depois escravizá-lo. Mentirosos e safados.
            Dentre os livros que a professora lhe emprestava, caiu-lhe nas mãos - ”Discursos Para Todas As Ocasiões” – Gorgolino ficou empolgado. Decorara vários sobre aniversários, casamentos, enterros e festa de batizado. Foi aí que descobrira o seu fraco e ao mesmo tempo o seu forte.
            Falar em público; achava que era a coisa mais bela da vida. Só não gostava das pregações do padre Januário, que ameaçava com o purgatório e o inferno e só terminava falando em caridade e pedindo dinheiro. Era sermão comercial. Gorgolino estava doido para estrear. Foi quando chegou o aniversário de dona Chiquinha, sua professora. Teria que fazer-lhe uma saudação. Mas não seria o discurso do livro. Imaginou elogios, criou frases bonitas, andou pelo dicionário a verificar os verdadeiros sentidos das palavras e armou-se para o ato festivo. Iria ver quem era Gorgolino. E no momento exato, depois das falas do Promotor e do Prefeito, Gorgolino assustou a todo mundo, pedindo a palavra. Muita gente esfriou. Que Gorgolino escrevesse suas historinhas e seus comentários, nada mais. Falar de improviso e logo depois do promotor era uma temeridade.
            E Gorgolino, sem titubear, numa linguagem simples, adequada e colorida, foi o mais aplaudido. Não sabiam e não podia entender como podia sair daquela feiura humana, tanta coisa bonita. Foi uma consagração. Dentro daquela cabeça meio disforme, corria uma fonte de cristal.
            Os políticos ficaram logo de olho nele. As campanhas políticas se aproximavam. Gorgolino recebeu convites dos dois partidos para se filiar e colaborar na campanha.
            - Não, não era possível. Não lhe convinha desagradar alguém. Pobre como era e além de tudo professor, precisava da amizade de todos. Além de tudo o que precisava era ganhar mais para dar maior conforto à família e ninguém havia se lembrado disso para lhe oferecer um trabalho melhor remunerado. Também não possuía vocação política. Era apenas um eleitor que não votaria no chefe político, e sim no melhor candidato.
            - É verdade, chefe, nunca alguém se lembrou do Gorgolino. Imagine se, por acaso, aderir aos nossos adversários. O bicho fala para emocionar. E é capaz de conduzir o povo. E sua feiura chama atenção e ajuda. Talvez dinheiro dê um jeito...
            - Então me faça uma sondagem. Quem sabe mesmo. Pode até quebrar-lhe a resistência. Dinheiro é como água, amolece tudo.
            Gorgolino foi procurado em casa, após o jantar. Nesses momentos as pessoas estão mais tranquilas e mais razoáveis.
            - Olha Gorgolino, a vida está dura e difícil. O chefe está disposto a te ajudar. Mereces um padrão de vida melhor. És um moço inteligente e capaz. No entanto, sem o vil metal, não há inteligência que o substitua. Pensa calmamente e dá uma boa esperança, se não quiseres fazer logo um acerto.
            - Muito bem. Receberei algum dinheiro durante a campanha e depois o saldo será menos alunos no meu ganha pão e um bocado de inimigos para caírem em cima de mim, como um bando de carcarás. Será isto que me irá sobrar. Além de outras rebordosas que posam vir. Dou o meu voto. É o que posso fazer. Obrigado pela boa intenção         
            - Deu em nada patrão. O Gorgolino é muito esperto. Tem receio das conseqüências, posteriormente.
            - Não será pela colaboração daquele macaco, que iremos perder a eleição.
            Gorgolino não era nem besta para se meter com a oposição, sem uma situação definitivamente segura. O prefeito foi visitá-lo. Fez uma proposta idêntica, também recusada. Daria o seu voto.
            - E se lhe arranjar um emprego na Prefeitura ou no Estado?
            - Só se for a caráter de efetividade. Preciso ter casa e comida asseguradas. Coisas passageiras podem desarticular ainda mais minha vida.
            - Então, tem minha palavra e pode prepara-se para a campanha que está à porta. Ganharemos folgadamente a eleição e seu lugar estará nas mãos.
            - E se perder, como ficará. Promessa não enche saco vazio. Primeiro o emprego. Em seguida a campanha.
            - Será que não confias na palavra do Prefeito.
             Confio sim, mas quem é pobre como eu, não tem como esperar. Acontece um imprevisto e Gorgolino não terá para quem apelar. Com o prestígio que o senhor tem tudo será fácil. Vamos aguardar. Não posso me arriscar. O Deodato ainda hoje está aí sem o emprego prometido e atolado até as orelhas. Além disso, ridicularizado pela oposição. Ninguém lhe da nada, além de novas e fugidias promessas.
            - Mas isto foi um caso isolado.
            - E eu posso ser o segundo...
            Os cargos da Prefeitura não valiam uma titica era lógico que o Gorgolino não iria aceitar. Teria que tentar junto aos secretários de Estado ou o Governador.
            E a solução sugerida pelo Governador foi criar um novo cartório na cidade e nomear Gorgolino. Mas isto dependeria da política. Em todo caso faria uma tentativa. O cartório, entretanto não saiu. Poderia ser nomeado agente fiscal. Mas o homenzinho só aceita efetivo. Roda pra lá, roda pra cá, e a nomeação não apareceu. Gorgolino tinha toda razão. A coisa era sempre a mesma. Sempre a mesma enrolada política.
            Amarrou-se na escola e no jornalzinho. Não deixava, todavia, de fazer seus comentários sobre a vida da cidade. Elogiava o que estava certo e criticava, sem ofensas, o que estava errado. Sugeria o que lhe parecia indispensável fazer em favor da comunidade. Nada de bajulação nem cortejamento.
            A oposição vitoriou. E, inesperadamente, Gorgolino foi convidado para secretário da prefeitura. Mas deu-se ao luxo de não aceitar. Daria qualquer colaboração ao seu alcance, mas sem filiação política. Não havia porque se incompatibilizar com a outra ala.
            O Gorgolino é teimoso e intransigente. Precisavam de seu trabalho na Prefeitura. Nada havia de política, nisso. Era a pessoa ideal para a secretaria. Além de honesto, sabia ler, escrever e fazer discursos quando necessário. Coronel Sabino, chefe político da oposição foi falar com o vigário numa tentativa de convencer Gorgolino, já conhecido como o professor Gorgolino.
            - Vem cá meu rapaz, quero falar-te com toda isenção de ânimo. Por que não aceitas a secretaria da Prefeitura. Não quer com isto te envolver em política. Querem é utilizar tua capacidade e teus conhecimentos. E mesmo que não fosse como queres, melhorar teu padrão de vida se não aceitas cargos de um lado nem de outro. É necessário que colabores com as administrações. Conheces os problemas do município, como se deduz pelos teus escritos. Dessa tua participação poderão resultar duas coisas. Melhorar teu padrão de vida e uma preparação para assumirdes a Prefeitura no próximo período. Conquistarás a simpatia do povo e a admiração dos políticos. Daí à prefeitura é um salto, apenas. Sabes que o prefeito – o Malaquias - é pouco letrado e sem um secretário como tu, ficará extremamente embaraçado. Além disso, elegeu-se sem tua participação na campanha. Não vai, portanto, querer te envolver. Acaba com essa timidez e esses preconceitos. Não levam a nada. Tua origem modesta não será um empecilho. Pelo contrário, é motivo de admiração por parte de todos. Vai aceitar ou vás nos decepcionar com essa tua caturrice?
            - Vou aceitar. Afinal, o senhor me esclareceu e me convenceu.
            - Muito bem, meu rapaz. Pega na perna da onça e segura. Já falei com tua família e ela aprova totalmente. Os teus amigos também.
            - Mas e essa gente do governo não irá cair em cima de mim, me perseguir?
            - Perseguir como e em que. Tens uma vida limpa, sem implicações. Irá é precisar de teu prestigio dentro da prefeitura. Pois não é. És amigo de todos e um amigo, onde estiver, é coisa valiosa.
            Na semana seguinte, Gorgolino assumiu a secretaria geral da Prefeitura. Os comentários saíram:
– Com o Gorgolino, aquele bestalhão de prefeito vai findar fazendo uma boa administração. O menino é bom em tudo, até na feiura. Aliás, a feiura lhe é um dom. Chama atenção e por isto todos o conhecem. Toda vez que tiver de falar em nome do prefeito para gente de fora, servirá de admiração. É um atrativo, por causa do contraste. Feiura, inteligência e preparo. Irão ver, não custa que o convidem para coisa melhor na administração do Estado. O bicho é bom de verdade. E, afinal, é um filho de nossa terra, pobre, simplório, modesto e devemos ajudá-lo também e prestigia-lo. Se houvesse feito isto antes estaria ao nosso lado. Mas o deixamos aí esquecido, por causa dessa nossa infame mentalidade política. Gente que não tem votos, não valia nada!...
            - Vamos cuidar cedo e apresenta-lo candidato a prefeito ou a deputado na próxima renovação. Da-se um golpe.
            - Isto se o coronel Sabino não andar em nossa frente... Aquilo é macaco velho.
            - Mas também quem era que havia de pensar que aquele cafuçu desajeitado fosse dar para alguma coisa. E agora está aí, secretário da Prefeitura, montado em nossas costas. E ainda mais escrevendo para jornal, arriscado a meter o pau na administração passada.
            - E se fizer, vai ter muita sujeira a denunciar.
            - Esta aí, aposto como não fará isto. É um moço, direito, sem certos preconceitos. Vai lá apenas para servir a sua terra e a comunidade.
            - Então vai demorar pouco, com essa cambada suja da oposição.
            - É melhor não se falar de sujeira. Que mais do que fez o nosso partido na administração. Aqui para nós somente, mais uma lata de lixo e por isto mesmo lá se foi à prefeitura. E verás que irão primar para não perderem mais o poder.
            E foi mesmo. A primeira coisa foi varrer o lixo das ruas e tapar a buraqueira. Inesperadamente foi feito um aumento aos servidores municipais, sem elevação dos proventos do prefeito que, aliás, doou os seus vencimentos ao abrigo dos velhinhos.
            - Outra sujeira. É só para fazer demagogia. Vai tirar muito mais dos cofres da Prefeitura. Era bom que se pudessem ver as folhas de pagamento e os recibos de compras e prestação de serviços.
            - Não creio, coronel. O prefeito sempre foi um homem honesto e bem intencionado, apesar de ser nosso opositor.
            - E por que não te mudas logo para o partido deles, se são essas jóias que dizes.
            - Jóias ou não, vamos aguardar. De mim, estou bem onde estou e bem sabe que nunca usufrui benefícios diretos nem indiretos da Prefeitura. Mesmo porque deles não necessitei. A rua onde moro não tem calçamento e vai ver que são capazes de pavimentá-la. Não te admires.
            - Ah! Se fizerem será de propósito para enganarem os trouxas. Gastaram dinheiro nas eleições e vai buscá-lo com um rodo. Esse negócio de obras para aqui e para ali, é para justificar os furtos. Sempre foi assim.
            - Foi, mas pode deixar de ser. Sabem que estamos de olho neles.
            - Bobagem, meu compadre. Tem certeza que não abriremos o bico. Devemos é pedir às onze mil virgens, que não revolvam o monturo da administração do nosso tempo. Francamente, ando de nariz no ar com receio de mau cheiro da lixeira que o teu dileto amigo acumulou em sua administração.
            - E por culpa tua. Alias fostes muito beneficiados. A rua de tua casa, bem pavimentada, estrada para tua fazenda, parentela empregada e o desvio dos lanches das escolas para tua criação de porcos. Imagina se tudo isto vem a furo. Será mesma coisa que espremer um tumor maligno. O prefeito que se foi; não tinha um pau para dar num gato. Hoje, fazenda, gados. Nem tem escrúpulos de tanta baboseira. E repara uma coisa. O atual prefeito não demitiu nem os teus parentes nem os dele. Do jeito que a coisa anda, vamos ficar sozinhos e adeus votos. Não elegeremos nem um vereador.
            - Já de disse que tudo isto é pura demagogia de politiqueiro sem vergonha.
            - Olha, estão falando que o prefeito vai publicar um boletim mensal. Isto me parece um tanto perigoso.
            - O medo que faz é o Gorgolino. O bicho é inteligente e preparado. Além disso, é metido a gaiato. Ridiculariza um com a maior facilidade, sem ofensa propriamente.
            - A boa política é calar o bico e quando possível demonstrar boa vontade com a nova administração. Esse tal de boletim mensal cuidará somente das realizações. Não se deve acordar quem está dormindo, nem cutucar o cão com vara curta.
            O boletim saiu e não fez qualquer referencia ao passado. Foi um consolo. O tempo passou como se tivesse asas ligeiras. Fim de governo e a ala governamental manifestou, por antecipação, o desejo de fazer o Gorgolino seu candidato. E alias não falava outra coisa. A oposição oficializou a candidatura de Gorgolino. Seria candidato sem opositores. Os governistas tinham de apoiá-lo, mesmo porque seria inútil apresentar outro.
            Eleito, Gorgolino assumia a Prefeitura com a presença dos dois partidos, coisa inédita em Casa Velha. Tomou conta da cidade e governou sem interferência dos políticos, agremiando uma maioria que liquidou os dois existentes, cujas sobras reuniam apenas, alguns reacionários, casco de burro. No período seguinte, elegeu os dois ex-chefes políticos, um para a Prefeitura outro para a Câmara Estadual. E os dois juntos, criaram um cartório para Gorgolino, o seu sonho, isso é um lugar efetivo, estável e rendoso.
             Ausentou-se da política em definitivo, casou-se, o que a todos parecia quase impossível. Almina apaixonara-se pelos versos que Gorgolino publicava e mais ainda pela sua feiura. E tornava-se certo o ditado: quem ama o feio, bonito lhe parece.
            Almina já andava lá pelos seus trinta e era uma moça vistosa e bem educada. Enamorara-se pela inteligência e desambição de Gorgolino. Aqueles versos publicados semanalmente eram como se fosse o seu missal. Esperava-os com ansiedade e sua paixão chegou ao auge quando leu as seguintes quadras:

            Tens um sorriso de flor
            Tem tudo quanto desejo.
            Se tu me matas de amor,
            Vou te matar com um beijo.

            Estou morrendo de sede,
            Sede de afago e carinho
            Da-me no embalo da rede
            O que não tenho sozinho.

            Por que Deus me fez assim,
            Tu não sabes, mas eu sei,
            Vem para perto de mim
            E só então te direi.

            Mas ninguém vem, quando chamo,
            Quando chamo ninguém vem,
            Despreza-me quem eu amo,
            Só minha mãe me quer bem.

            Sou triste quando amanhece,
            Quando o mundo todo desperta,
            E mais triste quando anoitece
            Sem uma janela aberta.

            Sei que nasci sem sorte,
            Sem estrelas, sem luar,
            Mas não é possível que a morte
            Me leve sem me casar...

            Gorgolino, com o seu cartório e uma mulher que não se assustara com o seu físico desengonçado, Sentia-se como criado asas para voar. Nada mais lhe apetecia.
            Com o casamento alcançara o impossível, com o cartório à estabilidade econômica. Quiseram fazê-lo candidato a um lugar na Câmara dos Deputados e recusou. Ajudaria a eleger um amigo, isto sim. A política não o atraia. Sentia nojo dos aproveitadores da coisa pública.
            A mulher concordava com ele. E o pior era impunidade. Não adiantavam denúncias. Ficava tudo no mesmo, mesmo quando comprovados os alcances.
            Nasceu o primeiro filho. Felizmente não se parecia com o Gorgolino. Diziam até que não podia ser filho dele...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.












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