MARIA PRETA*
João
Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Maria
Preta era a aluna mais aplicada e de melhor voz da escola da professora
Albertina.
As
melhores notas eram sempre as suas, sem que isto a torna-se vaidosa. Tinha como
dizia a professora, um rouxinol na garganta. Durante o recreio, a escola toda
se reunia pra ouvi-la cantar.
Mas,
pobre como era, não tinha como vestir-se bem e os pais nem sabiam o que fazer
da menina quando completasse o curso primário.
Chegou,
porém, a festinha do penúltimo ano e Maria Preta já estava com o seu papel
reservado. Cantar no intervalo de cada ato da programação. A festa de
encerramento do ano letivo era no salão da prefeitura, onde se reunia e o que
havia de mais seleto da cidade, além das famílias dos alunos.
Chegando
a vez de Maria Preta se apresentar, o inspetor da escola, convidado especial,
assustou-se quando viu Maria Preta anunciada para o seu número.
Não gostava de preto e
nem atinava porque razão, a professora escolher uma negrinha para preencher o
espaço nos entre atos. E de modo geral observava-se uma frieza geral. Pois
enciumados, murmurava críticas à mestra.
Mas
já estava sem jeito. A única coisa que salvava Maria Preta era a beleza do seu
rosto, e o aprumo curvilíneo do seu corpo. Certamente teria sido por isto a
escolha. Maria Preta vestida de branco, sai comprida e blusa rendada, fazia
sobressair o rostinho oval, na verdade bonito de causar inveja a qualquer
mocinha branca de família. O violão começou a ser tocado para o acompanhamento
da primeira canção.
Maria
Preta corria os olhos na assistência, percebendo nitidamente na assistência
certo espanto e desapontamento. Sorriu, fechou os olhos e começou a cantar uma
belíssima canção de amor.
Não,
não era possível que da voz daquela pretinha, saísse tanta beleza e tanta harmonia.
Ao terminar, aplaudida freneticamente, teve que repetir a canção por insistência
da platéia.
Pediram
à professora que mandasse descer do palco para ser vista e cumprimentada de
perto. O inspetor beijou-a chorando de emoção.
-
Maria Preta, quem te ensinou a cantar?
-
Foi a professora. Somente a voz é minha. Foi Deus que me deu.
-
Maria Preta, esta tua voz além de ser um dom especial, é uma riqueza.
-
É sim, senhor. Gosto de cantar para a professora e minhas colegas. Elas acham
bonito, mas fora disso, para que serve. Falo como as outras e não me ajuda nas
lições. Felizmente tenho uma boa memória, e aprendo com facilidade. Mas, que
poderei eu esperar, se ninguém gosta. Negra é para o fogão. Queria ser
professora e, no entanto, tenho quase certeza de que os pais não vão querer que
uma preta ensinasse os seus filhos. Será uma humilhação para eles.
-
Maria Preta, tu não precisas de mais nada além de tua voz maravilhosa. Queres
ir comigo, cantar nas rádios? Irás fazer sucesso. Ganharás muito dinheiro,
ficarás rica e admirada.
-
Não posso. Não tenho nada, nem outra roupa, nem sapatos. Minha fardinha papai
comprou com os maiores sacrifícios e nem terminou ainda de pagar. A gente é
pobre demais. Tem dia que nem se tem o que comer. E tenho tanta pena de papai e
mamãe. Deixa de comer para que eu não venha para escola em jejum. Pra que serve
minha voz, se nada me dão quando canto.
-
Bem, vou falara com teus pais para te levar comigo. Lá tomarei conta de ti.
Estudarás e usarás tua excelente voz para mandar dinheiro para eles. Ficará com
minha família até que a chames para a capital. E não demorará, estou certo.
Maria
Preta deixou “Tanques” com saudade da família, mas percebia que valia a pena
tentar. Se nada acontecesse voltaria como foi. Maria Preta ficou encantada com a
cidade e a família do Inspetor. Esperava pelo que poderia acontecer. Confiava
no professor Bento, mas, no entanto, não tinha verdadeiramente noção do valor
que atribuíam a sua voz. Talvez até a sua cor lhe ajudasse. Uma preta cantora
exibindo-se em público poderia ser uma novidade. Quem sabe. Era tão raro e
especialmente ela que era preta retinta e pobre que só dispensa de mendigo.
Passara
os primeiros dias sonhando como se estivesse se preparando para uma longa
viagem, a uma terra maravilhosa.
Professor
Bento iria fazer a apresentação de Maria Preta no encerramento do curso normal,
que reunia a melhor sociedade e autoridades. Queria um ambiente similar aquele
onde conhecera Maria Preta. Dar-lhe-ia maior tranqüilidade. Cantaria várias
canções nos intervalos das apresentações programadas. Tinha certeza que a
entrada de Maria Preta em cena causaria um desapontamento maior do que a festa
de “Tanques”.
Dentro
as muitas moças brancas e diplomadas, algumas deveriam possuir uma bela voz. E
então, por que aquela preta, cor de carvão no meio do palco.
Infelizmente
ainda perduram na memória das elites, os vestígios da escravidão. Negro ainda
era gente de senzala. E tanto era assim que naquele colégio não havia uma preta
matriculada. Poderia ser por falta de condição financeira, mas na verdade não
gostariam de tê-las.
O
salão nobre do colégio não comportava a assistência. Dado o início as
festividades e decorrido a primeira apresentação teatral, foi anunciado pelo
inspetor, número de cantos. Uma menina cantora que esperava, agradaria aos
ouvintes. E Maria Preta, surgiu no palco sob grande expectativa. Sua aparição
causou enorme estupefação. Não havia dúvida que seria um fracasso e o inspetor
deveria ser biruta a zombar da assistência. Acabava com o brilho da festa.
Maria
Preta, vestida a rigor, sobressaindo-lhe a cor da pele e os dentes alvos e
perfeitos, coisa comum na raça negra, ficou ao lado do inspetor e da diretora
do colégio até que se iniciasse o número.
Maria
Preta ficou só olhando para a platéia que nem sequer lhe aplaudiu como merecia.
Dois violões e uma flauta deram início ao número anunciado. Maria Preta sorriu
e começou, com uma serenidade de cantora consagrada. E ninguém respirava da
surpresa causada.
De
que pedaço de céu teria vindo aquele anjo negro de voz tão clara e tão
melodiosa. Era impossível aparecer outra igual. O inspetor apareceu no final da
primeira apresentação, tomou a mão de Maria Preta e fez um gesto de nova
apresentação.
Maria
Preta inclinava-se em agradecimento, como havia sido treinada. Os aplausos não
terminavam e alguém lá da assistência não se conteve e gritou.
-
De-me essa menina e eu custearei os seus estudos e sua manutenção. Somos um
casal sem filhos.
-
Obrigado meu senhor, já sou afilhada do senhor inspetor. Ele é quem sabe meu
destino. Um dia irei cantar um pouco na casa do senhor. Mais uma vez, muito
obrigado.
As
canções que Maria Preta ainda cantou, confirmaram sua consagração. E no final
das festividades, o Secretário de Estado, informou ao inspetor Bento que o
Estado se encobriria da educação de Maria Preta, caso não aceitasse o
oferecimento do casal.
O
certo é que a menina concluiu o curso de professora e foi logo nomeada para o
melhor colégio da capital, onde já estavam seus pais.
Durante
todo esse tempo, cantava, sob contrato em festas particulares e públicas.
Gravou alguns discos que eram arrebatados. Teria continuado sua carreira
artística se não houvesse sido surpreendida por um acontecimento inesperado.
Numa
das festas a que comparecia, despertou uma paixão violenta. O Dr. Bruno
Azevedo, médico já conceituado, foi a sua procura, e pediu-a em casamento. E
confessou que tinha ciúmes de ouvi-la cantando para os outros. Queria-a somente
para ele.
Maria Preta hesitou. Não poderia se assim.
Devia tudo a tantas pessoas e famílias que seria penoso deixar de atendê-los.
Casaria, sim, mas sem esse compromisso total. Afinal de contas, dentro de pouco
tempo talvez estivesse saturado de ouvi-la. E como não era apenas já voz que
encantava do Dr. Bruno aceitou a ponderação.
Onde
diabo alguém iria encontrar uma mulher mais perfeita e atraente do que Maria
Preta? Na estatura, na forma do corpo curvilíneo e flexível, no sorriso, na
boca ornada de dentes iguais e alvos, contrastando com a cor da pele e um rosto
de santa ainda menina-moça.
Casaram-se.
O Dr. Bruno passou a ser o marido mais invejado de todos. E Maria Preta,
mulher, tornou-se mais bela. A sombra de desgosto que Maria Preta sentia, na
dúvida de um dia alguém a querer ou ter que se casar com algum preto, como
tábua de salvação, desanuviou-se e agora ostentava um sorriso mais franco e o
corpo desabrochara como numa rosa, numa manhã luminosa.
E
então, já era o próprio Dr. Bruno que fazia questão de mostrá-la e ouvi-la
cantar e encantar as festas onde comparecia. A voz de Maria Preta não podia ser
egoisticamente só para ele. O corpo sim era intocável, como também os olhos e
os sorrisos. Isto aí não dividiria nem com os anjos da corte celeste. E nem
precisa pensar nisto, pois Maria Preta era tão fiel quanto a mais fiel balança
de precisão. Para o outros nem a misericórdia de miligramas.
Até
quando se teve notícias de Bruno e Maria Preta, já existia um casal de filhos,
moreninhos de cabelos lisos, com os olhos da mãe. Se o viver dos quatro não era
a felicidade vestida de amor, era por certo, um sonho feito só de carícias.
E
onde andavam os pais de Maria Preta? Exatamente como eles queriam. Em sua
casinha pintada toda de branco, no meio de um sítio onde cantavam os
passarinhos e o luar filtrava-se por entre as folhagens salpicando o chão de
mansinho.
O
professor Bento era presença obrigatória em casa de Maria Preta.
O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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