domingo, 5 de julho de 2015

MARIA PRETA

MARIA PRETA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Maria Preta era a aluna mais aplicada e de melhor voz da escola da professora Albertina.
As melhores notas eram sempre as suas, sem que isto a torna-se vaidosa. Tinha como dizia a professora, um rouxinol na garganta. Durante o recreio, a escola toda se reunia pra ouvi-la cantar.
Mas, pobre como era, não tinha como vestir-se bem e os pais nem sabiam o que fazer da menina quando completasse o curso primário.
Chegou, porém, a festinha do penúltimo ano e Maria Preta já estava com o seu papel reservado. Cantar no intervalo de cada ato da programação. A festa de encerramento do ano letivo era no salão da prefeitura, onde se reunia e o que havia de mais seleto da cidade, além das famílias dos alunos.
Chegando a vez de Maria Preta se apresentar, o inspetor da escola, convidado especial, assustou-se quando viu Maria Preta anunciada para o seu número.
Não gostava de preto e nem atinava porque razão, a professora escolher uma negrinha para preencher o espaço nos entre atos. E de modo geral observava-se uma frieza geral. Pois enciumados, murmurava críticas à mestra.
Mas já estava sem jeito. A única coisa que salvava Maria Preta era a beleza do seu rosto, e o aprumo curvilíneo do seu corpo. Certamente teria sido por isto a escolha. Maria Preta vestida de branco, sai comprida e blusa rendada, fazia sobressair o rostinho oval, na verdade bonito de causar inveja a qualquer mocinha branca de família. O violão começou a ser tocado para o acompanhamento da primeira canção.
Maria Preta corria os olhos na assistência, percebendo nitidamente na assistência certo espanto e desapontamento. Sorriu, fechou os olhos e começou a cantar uma belíssima canção de amor.
Não, não era possível que da voz daquela pretinha, saísse tanta beleza e tanta harmonia. Ao terminar, aplaudida freneticamente, teve que repetir a canção por insistência da platéia.
Pediram à professora que mandasse descer do palco para ser vista e cumprimentada de perto. O inspetor beijou-a chorando de emoção.
- Maria Preta, quem te ensinou a cantar?
- Foi a professora. Somente a voz é minha. Foi Deus que me deu.
- Maria Preta, esta tua voz além de ser um dom especial, é uma riqueza.
- É sim, senhor. Gosto de cantar para a professora e minhas colegas. Elas acham bonito, mas fora disso, para que serve. Falo como as outras e não me ajuda nas lições. Felizmente tenho uma boa memória, e aprendo com facilidade. Mas, que poderei eu esperar, se ninguém gosta. Negra é para o fogão. Queria ser professora e, no entanto, tenho quase certeza de que os pais não vão querer que uma preta ensinasse os seus filhos. Será uma humilhação para eles.
- Maria Preta, tu não precisas de mais nada além de tua voz maravilhosa. Queres ir comigo, cantar nas rádios? Irás fazer sucesso. Ganharás muito dinheiro, ficarás rica e admirada.
- Não posso. Não tenho nada, nem outra roupa, nem sapatos. Minha fardinha papai comprou com os maiores sacrifícios e nem terminou ainda de pagar. A gente é pobre demais. Tem dia que nem se tem o que comer. E tenho tanta pena de papai e mamãe. Deixa de comer para que eu não venha para escola em jejum. Pra que serve minha voz, se nada me dão quando canto.
- Bem, vou falara com teus pais para te levar comigo. Lá tomarei conta de ti. Estudarás e usarás tua excelente voz para mandar dinheiro para eles. Ficará com minha família até que a chames para a capital. E não demorará, estou certo.
Maria Preta deixou “Tanques” com saudade da família, mas percebia que valia a pena tentar. Se nada acontecesse voltaria como foi. Maria Preta ficou encantada com a cidade e a família do Inspetor. Esperava pelo que poderia acontecer. Confiava no professor Bento, mas, no entanto, não tinha verdadeiramente noção do valor que atribuíam a sua voz. Talvez até a sua cor lhe ajudasse. Uma preta cantora exibindo-se em público poderia ser uma novidade. Quem sabe. Era tão raro e especialmente ela que era preta retinta e pobre que só dispensa de mendigo.
Passara os primeiros dias sonhando como se estivesse se preparando para uma longa viagem, a uma terra maravilhosa.
Professor Bento iria fazer a apresentação de Maria Preta no encerramento do curso normal, que reunia a melhor sociedade e autoridades. Queria um ambiente similar aquele onde conhecera Maria Preta. Dar-lhe-ia maior tranqüilidade. Cantaria várias canções nos intervalos das apresentações programadas. Tinha certeza que a entrada de Maria Preta em cena causaria um desapontamento maior do que a festa de “Tanques”.
Dentro as muitas moças brancas e diplomadas, algumas deveriam possuir uma bela voz. E então, por que aquela preta, cor de carvão no meio do palco.
Infelizmente ainda perduram na memória das elites, os vestígios da escravidão. Negro ainda era gente de senzala. E tanto era assim que naquele colégio não havia uma preta matriculada. Poderia ser por falta de condição financeira, mas na verdade não gostariam de tê-las.
O salão nobre do colégio não comportava a assistência. Dado o início as festividades e decorrido a primeira apresentação teatral, foi anunciado pelo inspetor, número de cantos. Uma menina cantora que esperava, agradaria aos ouvintes. E Maria Preta, surgiu no palco sob grande expectativa. Sua aparição causou enorme estupefação. Não havia dúvida que seria um fracasso e o inspetor deveria ser biruta a zombar da assistência. Acabava com o brilho da festa.
Maria Preta, vestida a rigor, sobressaindo-lhe a cor da pele e os dentes alvos e perfeitos, coisa comum na raça negra, ficou ao lado do inspetor e da diretora do colégio até que se iniciasse o número.
Maria Preta ficou só olhando para a platéia que nem sequer lhe aplaudiu como merecia. Dois violões e uma flauta deram início ao número anunciado. Maria Preta sorriu e começou, com uma serenidade de cantora consagrada. E ninguém respirava da surpresa causada.
De que pedaço de céu teria vindo aquele anjo negro de voz tão clara e tão melodiosa. Era impossível aparecer outra igual. O inspetor apareceu no final da primeira apresentação, tomou a mão de Maria Preta e fez um gesto de nova apresentação.
Maria Preta inclinava-se em agradecimento, como havia sido treinada. Os aplausos não terminavam e alguém lá da assistência não se conteve e gritou.
- De-me essa menina e eu custearei os seus estudos e sua manutenção. Somos um casal sem filhos.
- Obrigado meu senhor, já sou afilhada do senhor inspetor. Ele é quem sabe meu destino. Um dia irei cantar um pouco na casa do senhor. Mais uma vez, muito obrigado.
As canções que Maria Preta ainda cantou, confirmaram sua consagração. E no final das festividades, o Secretário de Estado, informou ao inspetor Bento que o Estado se encobriria da educação de Maria Preta, caso não aceitasse o oferecimento do casal.
O certo é que a menina concluiu o curso de professora e foi logo nomeada para o melhor colégio da capital, onde já estavam seus pais.
Durante todo esse tempo, cantava, sob contrato em festas particulares e públicas. Gravou alguns discos que eram arrebatados. Teria continuado sua carreira artística se não houvesse sido surpreendida por um acontecimento inesperado.
Numa das festas a que comparecia, despertou uma paixão violenta. O Dr. Bruno Azevedo, médico já conceituado, foi a sua procura, e pediu-a em casamento. E confessou que tinha ciúmes de ouvi-la cantando para os outros. Queria-a somente para ele.
 Maria Preta hesitou. Não poderia se assim. Devia tudo a tantas pessoas e famílias que seria penoso deixar de atendê-los. Casaria, sim, mas sem esse compromisso total. Afinal de contas, dentro de pouco tempo talvez estivesse saturado de ouvi-la. E como não era apenas já voz que encantava do Dr. Bruno aceitou a ponderação.
Onde diabo alguém iria encontrar uma mulher mais perfeita e atraente do que Maria Preta? Na estatura, na forma do corpo curvilíneo e flexível, no sorriso, na boca ornada de dentes iguais e alvos, contrastando com a cor da pele e um rosto de santa ainda menina-moça.
Casaram-se. O Dr. Bruno passou a ser o marido mais invejado de todos. E Maria Preta, mulher, tornou-se mais bela. A sombra de desgosto que Maria Preta sentia, na dúvida de um dia alguém a querer ou ter que se casar com algum preto, como tábua de salvação, desanuviou-se e agora ostentava um sorriso mais franco e o corpo desabrochara como numa rosa, numa manhã luminosa.
E então, já era o próprio Dr. Bruno que fazia questão de mostrá-la e ouvi-la cantar e encantar as festas onde comparecia. A voz de Maria Preta não podia ser egoisticamente só para ele. O corpo sim era intocável, como também os olhos e os sorrisos. Isto aí não dividiria nem com os anjos da corte celeste. E nem precisa pensar nisto, pois Maria Preta era tão fiel quanto a mais fiel balança de precisão. Para o outros nem a misericórdia de miligramas.
Até quando se teve notícias de Bruno e Maria Preta, já existia um casal de filhos, moreninhos de cabelos lisos, com os olhos da mãe. Se o viver dos quatro não era a felicidade vestida de amor, era por certo, um sonho feito só de carícias.
E onde andavam os pais de Maria Preta? Exatamente como eles queriam. Em sua casinha pintada toda de branco, no meio de um sítio onde cantavam os passarinhos e o luar filtrava-se por entre as folhagens salpicando o chão de mansinho.
O professor Bento era presença obrigatória em casa de Maria Preta.

O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


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