VELHOS BRINQUEDOS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Há, na certa, gente que depois de crescida, gosta
de fantasiar sua vida de menino. Ou por outra, começa a mentir, aparentando que
teve uma infância dourada, repleta de brinquedos e diversões as mais variadas.
Outras contam dissabores e uma vida lastimável de menino pobre. Saíram do nada
e se fez gente a custa dos próprios esforços. Comigo e meus irmãos não se deu
nada disso.
Tivemos uma infância comum, sem luxos, nem
riquezas, mas também sem miséria. Sempre tivemos o essencial: casa, comida,
roupas e o campo para nossas brincadeiras. Ninguém teve bicicleta, nem pistolas
de plásticos ou automáticas ou outras espécies de brinquedos que saíram das
fabricas. Minhas irmãs, essas tinham bonecas, geralmente de louça que eram um
mimo e de plástico também. Mas não eram muitas.
Em compensação não faltavam outras diversões que
não trocaríamos por nada neste mundo e que a meninada das cidades não possuía e
invejavam. Caçar ninhos de passarinhos, armar arapucas e esparrelas para
apanhar concriz, galos de campina e sabiás; montar a cavalo e em bezerros,
andar trepado nas árvores, tomar banho nos açudes e lagoas, apanhar cumatí,
murta, umbu e brincar de fazendeiro. Com vacas e bezerros de osso, inclusive
vaqueiros. Era uma coisa rústica, mas gostosa. Sempre se ambiciona aquilo que
não se tem. E as brincadeiras de esconde-esconde, de apostar careira, armar
fojo para pegar preás, tantas coisas que ainda hoje nos deixa saudades.
Só o que nos contrariava era deixar tudo isso para
ir à escola. As brincadeiras tinham mais força e a gente mesmo as inventava.
Não nos faltava companheiros. As meninas de tia Aninha, de Manuel Gonçalves, de
Robertinho, os negros de Nicolau, os Patrícios e muitos outros. Uma figura
inesquecível era o Antônio de seu Pedro Vital, compridão, tolo e molenga. Nos
dias de sábado e domingo quando o meu pai ia à feira ou a missa, a turma
juntava-se para trancar os bezerros no curral, laçar, montar e cair. Era coisa
para valer. Meu pai amansava carneiros para a gente montar. Chegou até a mandar
fazer uma selinha de carneiro. Era uma delícia, e os meninos da rua davam uma
perua ao diabo para uma semana na Arara¹ ou no Algodão. Sebastião e Egídio Lima
tinham esses privilégios. O Egídio era moleirão, mas adorava. Lá em casa todos
trabalhavam, fosse no que fosse. Não tinha essa história de viver penteando
macaco. Na roça, em casa, levando recado. As coisas às vezes eram duras, mas
meu pai e minha mãe sabiam muito bem o que estavam fazendo.
O Joaquim, o mais velho era meio escorão e cedo,
inventou de negociar na cidade. E foi. Era um armazém de cereais e legumes que
não durou muito. Passou para outro tipo de comércio. Positivamente naquela
fase, não gostava de roça. Era metido a homem. Embirrento. Foi toda a vida
assim.
Heleno queria ser o mais inteligente e mais sabido.
E eu acho que era mesmo. De minha parte, sempre fui um boboca, mas arengueiro a
toda prova.
Queria fazer pouco de mim e lá iam as brigas. Mas
era tudo como fogo de palha. Passava logo.
- Vai João para ali, vai João pra acolá - e o besta
ia.
Matias e José formavam uma canga. Fazia suas
artimanhas às ocultas. Chegavam até a arrombar o açude velho e meu pai nunca
soube... Das mulheres, as brigonas e valentes eram, Ana e Olivia. As outras,
Mãezinha, Maria, Helena, Izabel e Rosa, eram nossa tabua de salvação. Olivia e
Ana, também boas amigas, geniosas e de mãos pesadas... Tinha-se de pisar macio.
Tivemos todos uma infância agradável. Trabalhava-se
e ninguém se maldizia. As festas, passava-se na cidade todos de roupa e sapatos
novos. As mulheres tinham que ter um vestido diferente para cada noite de
novenário. Fora da escola e da preguiça nada mais me afligia.
Os outros, bem se notava, eram mais dedicados. O
Heleno não era também muito afeiçoado a estudos. Gaseava quando podia e me
agradava àquela solidariedade. José e Matias abandonaram cedo os estudos.
Inventaram que não tinham boas cabeças para os estudos. Quem complicou a minha
vida foi o Seminário. Quando o larguei, meu pai disse que eu não queria
estudar. Cai na besteira de afirmar que queria, só não no seminário. E tive que
sustentar a palavra. Terminei um estudioso, com pouca memória e inteligência
comum. A moral de meu pai levou-me a formatura agronômica. Afinal, até agora
não me arrependi. Creio que não paguei o quanto os meus pais e meus manos
fizeram por mim. Quem sabe se o esforço foi pouco...
A vida na roça é saudável e divertida. Dispensa
artifícios e coisas fabricadas a troco do metal sonante. Os fabricantes não
pensam em distrair ninguém. A propaganda falsa interessa só para impingir os
seus artifícios. Dia da criança, dias das mães, dos pais, dias de todo o mundo,
é puro comércio, legítima exploração comercial. Uma vergonha nacional. Isso faz
lembrar o escritor Ariano Suassuna, que criava uma seriema no quintal e não
possuía televisor.
Um vendedor que o advertiu da falta de um televisor
para distrair os filhos, que deveriam ter inveja dos filhos do vizinho. Ele
replicou:
- É. Venha cá. Os outros têm televisões, mas não
tem uma seriema como esta no quintal!
No campo há de tudo que é bom e divertido. Riachos
correndo, lagoas cheias, açudes sangrando, pássaros, campos floridos, abelhas
zumbindo, pássaros nos ninhos, milho verde, pitomba, ubaia, murta, goiaba,
cavalos para montar, leite puro no curral, oxigênio para encher os pulmões e
sem as poeiras da civilização. Se não fora o sacrifício da danada da escola, a
felicidade da infância teria sido completa. É certo que depois, usufruem-se as
vantagens de ter frequentado à escola, embora arrastado como bode para dentro
d’água.
Minha ojeriza pela escola era tal que pedia a Deus
que matasse todos os professores de uma porretada só. Enquanto existissem não
haveria paz no reino das crianças...
E quantas vezes engoli as consequências de um
primário chamuscado. Havia tanta distração no campo, que odiava à escola e dos
professores que comiam à custa do sacrifício dos meninos que os pais empurravam
para a escola, a fim de não criá-los burros.
Uma velha brincadeira era a gangorra ou o João-Galamarte². Balançar no sobe e desse ou rodar até
cair tonto. As grandes fogueiras do São João e do mês das flores de maio,
faziam parte de nossa vidoca de menino da roça. As bacias com água para ver o
rosto e saber quem alcançaria o outro são João, os copos com água com clara de
ovo para saber quem casa ou não. Se formasse uma capelinha era casamento certo.
Tinha cabra nervoso que não via o rosto e saia com a certeza de não ver a outra
festa.
Era motivo de vaias e galhofas. E não ficava nisso.
Enfiar faca nas bananeiras para no dia seguinte tirá-la com as iniciais do nome
do noivo ou noiva. Tudo isso era uma poesia encantadora.
Quem viveu na roça não conheceu os encantos da vida
nas fazendas. Nas cidades tudo é artificial, irreal, sofisticado.
Em 10/04/85
Nota
do digitador:
¹ Fazenda Arara fica
no Município de Esperança Paraíba, onde meu pai nasceu e se criou.
² Galamarte
Brinquedo
que estava presente em quase todas as regiões do estado e muito lembrado com
uma boa dose de nostalgia por todos aqueles que com ele brincaram. O galamarte,
ou galamacho (Tibau do Sul), ou ainda, João Galamarte (Florânia), consistia
numa tora de pau, com mais ou menos três metros de extensão, e com um furo no
meio, justamente no seu centro de gravidade. Próximo às suas extremidades
enfiava-se um pedaço de pau, que era o torno, uma espécie de suporte para as
crianças se segurarem. Fazia-se uma base para recebê-lo, fincando-se no chão um
pau bem resistente, geralmente pau-d’arco ou jucá, com a ponta afiada para
encaixar no buraco feito na tora de pau. Essa base servia de eixo para a tora
girar em círculo ou em movimento de cima para baixo, como uma gangorra.
A
madeira para confecção do galamarte variava de região para região, e de acordo
com a matéria-prima disponibilizada pela natureza: na região Oeste do estado,
usava-se o tronco da carnaúba; na região do Seridó, a madeira utilizada era o
pinhão; e, no litoral, era o galamache, árvore típica da mata atlântica.
Cavalcante (2007) ressalta que o furo, para receber o eixo, era feito com ferro
quente, para não haver risco de rachar.
A
brincadeira consistia em girar o galamarte com duas crianças sentadas nas suas
extremidades. O equilíbrio do peso, segundo Figueiredo (1966), se dava pela
aproximação ou distanciamento das crianças dos extremos das hastes móveis.
Medeiros
de Barros (2006), que teve sua infância em Tibau do Sul, nos fala que a
brincadeira se “tornava boa”, porque ficava uma criança no meio, empurrando o
galamarte, e, quando pegava velocidade, o desafio era tentar sair, sem que o
pau nela batesse. Isso se tornava difícil, porque, à medida que a criança
girava, ficava tonta, dificultando sua saída, já que tinha que correr em
velocidade para escapar da tora. Às vezes a solução era deitar no chão para
escapar, ou então, subir na tora, e ficar girando junto com as outras duas crianças.
Em Florânia, o desafio era ver quem aguentava mais tempo girando. Girava-se o
galamarte até uma das crianças cair tonta ou desistir do desafio. Acontecia, às
vezes, de uma ou outra criança enjoar e vomitar. Assim Figueredo (1966) se
refere ao galamarte:
[...]
As crianças do sexo masculino brincam montadas, enquanto as meninas antigamente
sentavam-se, à maneira inglesa de cavalgar. Agora, com o uso de calças
masculinas entre mocinhas, todos montam-se no Galamarte, sem distinção de sexo.
O brinquedo pode provocar sérios acidentes. Quando a criançada lhe dá movimento
rápido demais, fora do comum, constitui verdadeiro perigo.
Usava-se
carvão e sebo para diminuir o atrito da junção entre o eixo e a tora rodante, o
que provocava um barulho muito parecido com os de um carro de boi. Cavalcante
(2007) descreve o processo de preparação do carvão com o sebo:
[...]
o melhor sebo é o de carneiro. Aí, nós pilava o carvão bem picadinho, pega o
sebo e estendia [..] misturava bem misturadinho, o sebo com o carvão [...],
quando acabava tacava dentro do buraco do galamarte. Aí vinha para a ponta do
pião, colocava um bolão na ponta, dentro do galamarte colocava outro bolão, aí
sentava em cima.
Esse
rangido era muito peculiar, tanto que todas as pessoas que brincaram, fazem
referência ao barulho provocado pelo Galamarte. Diziam que o “galamarte
cantava”. Cavalcante (2007) lembra que na Cidade em que viveu, o rangido do
galamarte era denunciador de que as crianças estavam brincando. O barulho era
tão forte, que o galamarte era construído distante das casas e, mesmo assim,
toda a vizinhança ouvia o barulho. Ele morava a uma distância considerável do
local onde brincava com seus amigos, mas, ainda assim, o barulho do objeto lhe
denunciava ao seu pai, que não queria que ele brincasse no galamarte, pois
achava perigoso.
Melo,
M. (1953, 104) descreve o galamarte:
Entre
as brincadeiras dos meninos, há uma igualmente curiosa e interessante. É a do
João-Galamarte (23). Pegava-se uma banda ou lasca de carnaúba, plainava-se por
dentro, tiravam-se os nós que havia por fora, e no centro abria-se buraco a
formão e a fogo. Feito isto, enfincava-se um pau preparado no chão: estava
pronto o Galamarte. Os meninos montavam nas duas extremidades e começavam a
rodar. Para que o Galamarte cantasse, usava-se sebo, carvão e gás.
Ainda sobre a
brincadeira, havia um versinho que dizia:
João Galamarte
De pau e colher
Que vendeu a mulher
Por um dedo de mel
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