terça-feira, 7 de julho de 2015

LACIR

LACIR*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)  

Jurema, cidadezinha de poucas ruas, perdida lá nos confins do sertão da Paraíba, não perdoava amores que não fossem honestos e para casar na igreja. Casamento apenas no juiz era amigação, indecência, imoralidade, falta de vergonha. E o padre Santiago fazia questão de advertir seus fiéis contra qualquer liberalidade.        
Os namoros eram rigorosamente fiscalizados e o simples fato de uma moça mudar de namorado já era pecaminoso.
- Está vendo ai, a Mariana. Acabou o namoro e está se pegando com outro. Podem esperar pelo desmantelo. É uma doidinha. Como pode. O vigário se cansa de pregar, mas é a mesma coisa que falar no deserto.
- É isto mesmo, minha comadre. Os tempos estão mudados. Falta de respeito.
Lacir ouvia todos os dias aquela catilinária, inclusive, aos domingos, o sermão do padre Santiago, um puritano por conveniência profissional. Tinha que acompanhar as tendências do povo que dava água, pão, boas conversas e casa para morar.
Moça estudada na capital, não se acomodava com aquele puritanismo exagerado. Não era que pretendesse subverter a ordem normal da cidade, mas havia zelo demais e o convencionalismo asfixiava a população mais nova.
Algumas dúzias de velhuscas azinhavradas e carolas andavam de olho na rua e nas camarinhas e de nariz aceso sentindo cheiro de pecado por toda parte. Jurema deveria ser canonizada, cidade Santa. Uma moça que olhasse duas vezes para um rapaz já estaria se comprometendo e caminhava para a indecência.
E o padre Santiago era capaz até de citar os nomes lá de cima da escadaria do altar. Lacir estudava um meio de quebrar o rigorismo e libertar a cidade do bafio de santidade, antes que fosse tarde demais. Teria que juntar a mocidade e atirá-la contra o regimento do puritanismo fanático.
Deveria ser sigilo total no início, para evitar o amortecimento do impacto. Percebia-se que havia movimentos desusados em Jurema, mas desconheciam-se as causas e os objetivos.
As velhotas do comando tentavam descobrir qualquer coisa, mas nem ao menos sabiam de onde vinha o cheiro do xarope que estava sendo preparado. Rapazes e moças afiavam os cutelos para cortar até as raízes das velhinhas sociais de Jurema.
Acabar de uma vez com o puritanismo exagerado que pretendia manter a cidade na mais pura castidade. Enquanto Lacir prepara as moças e o ambiente para o desfecho do plano, Hortêncio cuidava da rapaziada e de um golpe que sacudiria Jurema como um terremoto.
A quarta-feira estava um dia esplêndido de sol e claridade. Às duas horas da tarde não se via um jovem pelas ruas. Nem moças, nem rapazes. As velhotas reunidas faziam comentários, os mais variados, com hipóteses, que, afinal, andavam bem longe da realidade. A líder da vigilância ia da sala de reunião á porta da rua, de nariz no ar a ver se sentia o cheiro de alguma coisa. E foi numa dessas idas e vindas que a bomba estourou. Apontava na entrada da rua principal uma passeata trepidante.
O ruído enchia o espaço. Não ficou viva alma dentro das casas. Moças, rapazes, numa algazarra infernal e de braços dados, na maior intimidade, avançavam rua adentro, rindo, cantando gritando como se estivessem fora de si.
As velhotas correram á casa do vigário, alarmadas.
- Corre seu padre, vá ver Jurema mergulhada na devassidão. Foi-se pelos ares todo o nosso trabalho. Do senhor também.
- Meu, meu, como?
-Tudo quanto o senhor pregava foi inútil. Vá, vá a rua ver a bandalheira, o deboche e tudo que há de pecaminoso. Parece até um bacanal. E o pior, Padre Santiago, é que o povo está assistindo e aplaudindo. Uma reviravolta na vida de Jurema.
- Acuda Padre, senão perderemos todo o nosso latim.
- Chame as autoridades, o delegado, para dissolver essa passeata imoral.
- Só se vendo. Marcham agarrados, abraçados e a canalha da rua engrossando a patifaria. Já fecharam até as casas comerciais para assistir o desfile cretino.
- Ora, dona Querumbina, quem pode com o povo, com a juventude. Deixem à turma dar expansão as suas alegrias.
- Mas estão mudando tudo, subvertendo a ordem religiosa. Só o senhor poderá dar jeito de conservar os princípios cristãos e agradar a Deus e as onze mil virgens.
- Não sei como não caiu pedaço de céu. E era bom que desabasse para esmagar a cambada que está zombando da moral religiosa e social.        
- Estarei com o povo e a juventude. Jurema estava carecendo de uma transformação radical. Isto aqui estava cheirando a mofo. A cidade parada, tudo proibido e somente reza e fofoca. O melhor é que caiam também no frevo, misturem-se com a mocidade para sacudirem a poeira e a teia de aranha. Olhem ali que coisa bela, a mocidade vibrando de braços dados. Agora sim, Jurema começa a viver. E sabem de uma coisa curta e certa, não me venham mais aqui com chateação.
Neste exato momento entra de casa adentro uma das fofoqueiras que havia faltado. As ventas acesas, as carótidas puladas, os olhos esbugalhados.
- Acudam! Que a cidade está perdida. Não se salvará mais e todo o nosso trabalho se foi na enxurrada.
- As mulheres da vida em Jurema! Seu Floriano acaba de me dizer. E foi obra dos rapazes. Quatro mulheres estão instaladas lá na ponta da rua. Quatro meninas que não se sabe de onde vieram, diz seu Floriano que novas e bonitas. Uma perdição. E estão agora mesmo lá atrás da passeata.
- Deus nos acuda e salve. Mande abrir a igreja seu vigário e vamos orar para ver se salva alguma coisa.
- Corra Padre!
- Correr para onde. Sumam-se daqui. Já estou cansado de viver no monturo que vocês criaram. Que se divirta a mocidade e a cidade se renove. Mulheres da vida, hein! Era disto que jurema estava se ressentindo. Vou é rezar uma missa solene de ação de graças. Entenderam! E já lhe disse, junte-se à turma renovadora se querem sobreviver. Uma cidade sem meninas livres é um perigo. A falta de relacionamento amoroso é contra a moral social. Vão ver sinhas peruas, como jurema vai crescer e florescer. Vocês não permitiam nem o namoro dos rapazes e moças.
- E não é pecado, seu vigário?
- Pecado coisa nenhuma. Quanto mais namoro, mais casamento, mais menino para batizar e crismar. A cidade está cheia de preconceitos bolorentos criados por vosmecês, pensando talvez que com isto, ganhariam o reino do céu. Pois perderam o tempo. Vão ver como a cidade vai ser visitada e como se tornará alegre. Quantas mulheres?
- Quatro! Está vossa reverendíssima achando pouco.
- Pouquíssimo, ora esta. A atração de uma cidade é o mulherio alegre. Quatro mulherzinhas não chegam para provar. E para fim de papo, vão a igreja ouvir meu sermão de domingo. Falarei sobre Jurema de ontem e de hoje. E é bom que abram bem as ouças.
- Vamos embora, e não poremos mais os pés nem no adro da igreja. Perdido já está, perdido fique.
E saíram resmungando e o assunto era o descaramento do padre Santiago. Era por isto que sempre mantinha em casa, arrumadeiras sapecas. Aquele não entra nas portas do céu nem feito rapé num corrimboque.
- Cala tua boca, comadre. Estás falando assim porque não tens mais farinha ou estás com inveja. A pessoa frustrada fica como um doente mental que vê tudo pelo avesso. Jurema foi até hoje uma cidade fechada para o progresso e só por culpa dessa turma de velhas que só esperam do mundo as tabuas do caixão e um buraco no cemitério. Além disso, empenhadas a fazer dos jovens um poço de água estagnada que não serve nem para reprodução de muriçocas. E o Padre Santiago deixou se envolver pela fofoca e dava asas à falsa santidade de todas vocês. Vocês sempre foram uns demônios.
- O que! Verás daqui pra frente em que vai se tornar Jurema. Vai apodrecer na libidinagem, na safadeza, na corrupção. Isto aqui que é o santuário da Paraíba, passará a ser o inferno. A cidade vai se encher de prostitutas e as famílias não terão mais sossego. Vai apodrecer com essas rameiras e os casados sem-vergonhas vão chifrar as mulheres. O diabo está solto em Jurema.
- O padre não é o que se pensava. Um fingido. Estás vendo. Saiu dizendo que iria observar a passeata, mas na certa está é metido no meio, farejando alguma coisa. É bem certo o ditado: quem não te conhecer que te compre.
- Quem era Jurema, e, o que vai ser. Um antro de perdição. Creio em Deus Padre todo poderoso...
- Que nada. Agora é que a cidade vai viver. Aberta e arejada. Já viram por ventura as quatro moças que chegaram para diverti a turma. Pois olha, são quatro coisinhas de causar inveja. Três moreninhas e uma aloirada.
- Francamente, se eu fosse um bicho macho já teria me enfiado lá.        
- Tesconjuro, velhota degenerada.
- Aqui só havia simulação e mentira.
O desfile vinha de volta, cada vez mais estridente e mais fogos. Era como se o açude secasse de repente, quando todo mundo estava morrendo afogado.
Padre Santiago, não aparecia e ai estava à coincidência. Das quatro mariposas passaram apenas duas morenas e a aloirada. A outra moreninha havia sumido. Onde andariam os dois?
No dia seguinte, jurema era outra cidade. As velhotas desapareceram do mapa. E não se falava noutra coisa senão nas quatro meninas e em namoro aberto. Padre Santiago fez um Sermão memorável, enaltecendo a ação da juventude sua visão em favor do bem estar de Jurema, dentro de uma nova filosofia de vida. Jurema não era mais do que um curral, onde se passava uma terrível sede de amor e procurava fazer uma escada para o céu, desprezando as leis da natureza.
Deus não queria ninguém no seu reino, conduzido pelas mãos e a vontade dos outros. Queria que se elegessem com liberdade e por si próprios. Venha à igreja quem queira vir. Vá para o céu quem entender que é melhor, contando que não seja pressionado, como se fazia com a boa gente de jurema.
Um grupo de puritanas, já fora de uso, querendo impor santidade, privando a juventude e a todos dos prazeres com as coisas agradáveis da vida. Jurema é hoje uma cidade renovada, liberta e aprazível.
Aqui se esperava o bem, vivendo no inferno das restrições e da violência contra os prazeres do amor, a coisa mais bela que Deus criou no seu momento de maior inspiração. Quem não quiser viver num mundo cor-de-rosa, que se tranque a quatro chaves dentro de sua burrice e incapacidade de amar.
Quando Nosso Senhor fez as mulheres belas e graciosas, não foi à toa. Criou Eva, uma perfeição de mulher e entregou-a a Adão, despertando-lhe a cobiça, quando lhe disse: não me toque na maçã. E como a maçã era fruta mais apetitosa do Éden, Adão preferiu arriscar-se e trincou-lhe o dente. Mas, quem já passou do tempo, amola-se, irrita-se e combatem-se aqueles que começaram a viver os seus sonhos de felicidade.
Tudo andou em Jurema. As velhas fofoqueiras e moralistas tiveram que aderir ao movimento renovador e uma delas montou uma pensão de mulheres, começando das quatro pioneiras nas varandas do amor livre.
- Mas Gargolina, assim também é demais.
- Ora, Januária, este é o melhor e mais fácil negócio de Jurema. Já te esquecestes de quando éramos novas! Casa cheia, e se enchendo mais. Qual é o ramo em que se ganha dinheiro deitada, enganando os bestas. As meninas bebem e fuma de graça, o dinheiro corre solto e estou vivendo folgada. Toda a questão é ter habilidade de arranjar meninas espertas e atraentes. Então, os casados abrem à bolsa.
- Quanto mais maduro o freguês, mais liberal. E por isto as meninas os preferem. E para solteirões e noutros casos especiais, trabalha-se a domicilio...
- E é pena que já não sirvo mais para dar de beber a quem tem sede. Imaginar somente é muito pouco...
- Por culpa de imbecis, perdi meu tempo e pelo que ouvi do vigário, o céu é aqui mesmo. O outro é conversa fiada...
- Se o céu fosse tão bom assim, cristo teria nascido lá...


Em, 11/09/1986

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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