PADRE
CELESTINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Havia sido
coroinha do vigário da freguesia, que o encaminhara ao Seminário. Fora nascido
para ser padre, e sem que fosse necessário proibir-lhe o casamento. Nunca
sentira qualquer atração pelas mulheres. Frio, frio, como uma pedra de gelo e
ademais criado como coroinha, no cheiro do incenso e nos borrifos de água benta,
completara as suas tendências antimatrimoniais. Também não sentia nada.
Foi para o
Seminário da Paraíba, pelas Vocações Sacerdotais. Como não pensava em mulheres,
dedicava-se somente aos estudos e não fora mau aluno. Só pensava mesmo nos caminhos
do céu e imbuiu-se da filosofia de que as mulheres eram a perdição do mundo.
Havia muito cabra no inferno e penando no purgatório, só e só, por causa delas.
Eram um bichinho pecaminoso e, além disso, cheias de artimanhas. Andava por aí
mostrando as pernas, de braços nus e até de saias curtas para chamar atenção. E
o pior eram os decotes, insinuando coisas... Uma perdição; e o mundo estava
também perdido. O diabo teria que construir novas cidades para alojar a multidão
dos desviados da Santa-Madre-Igreja. Era uma pouca vergonha.
Observava que
muita gente ia à igreja, não para rezar, mas para exibir vestidos e ternos novos
e puxar namoro. Quando se ordenasse iriam ver quem era padre celestino.
Revoltava-se quando via os padres ou os seminaristas conversando com moças e
casadas, sem a menor cerimônia, aparentando até certas intimidades. Onde é que
estava o espírito religioso daquela gente. Que coisa. E achava estanho que nas
igrejas, mais de oitenta por cento eram só de mulheres. Homens, mas velhotes e
o resto era de fedelhos, bigodetes que iam ali somente namorar. Nenhum deles
com um rosário ou um livro de rezas. Não sabiam nem se benzer. Além disso, não
paravam os cochichos, os olhares pra um lado, para outro, como se estivessem
procurando alguma coisa ou com medo de alguém. Uma pouca vergonha.
E nas leituras
que fazia, certo dia descobriu que certo santo havia levado parte de sua vida
amasiado e teria sido um desregrado na mocidade. Mesmo assim tornara-se santo,
um dos mais importantes da igreja. Passa, então, a não entender mais de nada.
De nada mesmo. Um sujeito que se metera com mulheres, com desregramento emocional
e afetivo considerado um “doutor da igreja” e santo.
Não lhe restava à
menor dúvida de que teria de lutar muito para consertar a vida de sua futura
paróquia. Não quis mais estudar vida de santo para não ter novas decepções. Nem
atinava para que criaram mulher. Uma coisa para ele sem sentido.
Afinal, chegou a ordenar-se. E no dia da
ordenação a Igreja estava apinhada de mulheres. E do bispo aos padres e seminaristas
sempre de olho nelas, furtivamente. Via tudo àquilo com certa tristeza. Não,
não dava pé. E se perguntava que graça poderiam achar naquela coisa de rosto
empoado, boca pintada, busto saliente e cheia de salamaleques. Alguma coisa
deveria estar errada. Seria que somente ele não sentia nada ou era mesmo
perversão. Mulheres. Que mulher que nada. Safadeza. Iriam ver um padre
legítimo. Eva laçou Adão e botou-o a perder. E foi quem inventou o pecado.
Começou daí o desmantelo. Também entregaram uma mulher completamente nua, a um
cabra que não tinha uma tanga. Só podia dar mesmo em safadeza. Aquela história
de cobra é conversa fiada. Mas, comigo não vai ter acordo. Vou botar tinindo!
Padre Celestino
ganhou uma paróquia na cidade perto da área mais perigosa. Entrou na igreja
para a missa do domingo preparado para introduzir bons costumes e respeito. Antes
da celebração virou-se para os fiéis e examinou-os detidamente e soltou o
verbo:
- Quem não
estiver decentemente vestido como manda a Santa-Madre-Igreja, queira
retirar-se.
Ninguém se mexeu.
Repetia advertência e o silencio foi o mesmo. Renovou a determinação. E foi,
então, que uma mais despachada, perguntou em voz bem clara como era a decência
mencionada.
- Sem mangas
curtas, sem decotes, sem mostrar as pernas. Aqui é a casa de Nosso Senhor e
estas coisas não combinam com os preceitos cristãos.
- E o que é que
tem essas bobagens com a fé que se tem. Quando Deus fez Adão e Eva deixou-os
nus no Paraíso, com tudo de fora. Pois daqui, reverendo, não vai sair ninguém.
Celebre se quiser.
- Não admito, não
admito e não admito. Aqui quem manda sou eu! A casa de Deus merece todo
respeito.
- E nos também.
Aqui não tem ninguém fazendo nada errado. E de que planeta veio o reverendo? E
cuide em dizer a missa, senão iremos falar como bispo.
- Podem falar até
com o papa!!! Onde já se viu uma coisa desta. Podem sair que vou mandar o
sacristão fechar a igreja. Não haverá missa.
- Missa de um
padreca ignorante de sua marca, não queremos mesmo ouvir. Em todo caso, no
próximo domingo lhe atendemos.
- Bem, com esta
promessa, vou celebrar. Sabia que iriam me entender.
E no domingo
seguinte, padre Celestino entrou na igreja com ar de vitorioso. Mas de repente
teve um susto de cair para trás. Os decotes haviam baixado as saias muito mais
curtas e os vestidos não tinham mangas. Alarmou-se. Deu um pinote e entrou na
sacristia mordido. Aquilo era um canalhismo e um deboche. Iria excomungar até o
caco de sal. Mas veio-lhe uma meditação. A coisa estava dura. No domingo
anterior não arrecadou para o café. Havia se esquecido até dos batizados. Tinha
dois casamentos a fazer e de nada se lembrou. Mais uma semana de crise e iria
pedir esmolas sem ter quem lhe desse. A coisa estava pretíssima. Passar fome
seria terrível. Havia de dar uma solução. Refletiu maduramente, paramentou-se e
foi para o altar aparentando tranqüilidade. Celebrou sem uma referencia ao
disparate e ao desrespeito. Quando se virava para o povo, era com um rizinho
solene. E uma coisa lhe chamou a
atenção. A sacola andava de ala em ala, recebia donativos. Chegou o momento da
prática religiosa. Fez um sermão. – “Venham à igreja como acharem melhor. O
calor intenso reclamava roupas sumárias. Nosso Senhor não queria saber de roupa
de ninguém. Queria era o coração, a pureza d’alma”. - E de ver tanto decote,
tanta perna bonita, - chegou ao exagero de lembrar os índios que apesar de
despidos eram puros de intenções. Deus, na verdade, não fizera ninguém vestido,
mesmo por que não havia teares e nem fibras para tecelagem no céu. A maldade
era dos próprios que viam “coisas” atiçadas pelo demônio. Mas isto era problema de cada um.
No meio daquela gente, lá estava à mulata
Florinda, quase mostrando os peitos. Os joelhos de fora. A boca pintada como
uma fruta madura de facheiro. E foi aí que padre Celestino acordou. Começou a
sentir-se diferente, com uma coisa ardendo dentro dele. Não sabia o que era,
mas sentia que não era mais o mesmo. Lembrou-se de santo Agostinho que vivera
amigado por muito tempo e tornara-se o doutor da Igreja, além de santo. Naquela
noite não conseguiu dormir. Havia uma coisa bulindo com ele. Fechava os olhos e
o que lhe aparecesse era o decote doido da morena. Sua vida de pureza
periclitava. Tentou controlar-se, mas tudo completamente inútil. Mordia os
lábios, fechava novamente os olhos mais aí é que a mulata lhe aparecia, não
mais decotada, mas completamente pelada. Estava perdido. Nunca havia prestado
atenção naquelas coisas desparafusadas. Antes, não lhe despertavam qualquer
atração, De qualquer forma haveria de resistir, confirmando o juramento que
fizera.
Nunca havia
sentido que as coisas belas despertam atração e desejos. E começaram os maus
pensamentos sem que pudesse se livrar deles. E como as coisas do mundo estavam
mudando aos seus olhos. Adão e Eva já não eram as mesmas pessoas bíblicas, e
nem Eva havia sido criada só e só para fazer companhia a Adão e tanto era assim
que eram muito diferentes no físico e principalmente no sexo. E padre Celestino
descobriu mais uma novidade. Poderia ver mil homens nus sem sentir qualquer
atração. No entanto, um decote numa mulher, um pedaço bom de pernas a mostrar
era como se tomasse um cálice de uma bebida afrodisíaca. E aquelas coisas
estranhas foram crescendo dentro dele a ponto de perder o sono e o apetite.
E no dia seguinte
teve a sensação de ter visto sua arrumadeira pela primeira vez. A notar-lhe as
curvas e as saliências do corpo ainda jovem, embora já profanado. Tomou o breviário
e leu o quanto pode pra fugir ao assalto daqueles pensamentos ilícitos e perigosos.
Mas não havia jeito. Tornara-se impaciente, intranqüilo, passando a perceber
que lhe estava faltando qualquer coisa ainda meio indefinida, mas ligada aos
decotes, e as pernas das mulheres. Estremeceu, pensou no purgatório e no
inferno, benzeu-se, fechou os olhos e quanto mais fechava mais via o corpo da
arrumadeira e o decote atrevido da morena da igreja. Resolveu, então, ir ao
convento dos frades para ser ouvido em confissão pelo frade Moises que ele
considerava já santificado. Precisava de orientação, de conselhos que o
livrassem das artimanhas do capiroto. Contou tim-tim por tim-tim o que se passava
com ele. Não tinha dúvidas que só poderiam ser mesmo tentação do maligno.
- É meu filho.
Todos nós passamos por essas fases difíceis, essas tentações. É, pois, coisa
muito natural. Mas, afaste-se disso. Você; está visto, não dá para essas coisas
não. É um inocente, sem experiência. Fique mesmo com suas rezas. Pois não é! Um
homão desses ainda me vem confessar bobagens. Isso é iniciativa de cada um. E
não me amola com essas coisas não, que já passei da idade e não quero ficar
recordando o passado. Vai, vai rezar...
Padre Celestino
saiu ainda mais confuso. O que queria dizer, “não ter mais idade”. Será que já
passei também dos bons tempos? E entrou em casa sem ter noção do que deveria
fazer. A arrumadeira lhe apareceu para dar-lhe um recado. Deveria ir fazer uma
confissão num lugar suspeito, numa ponta de rua onde padre era proibido de
freqüentar. Mas, havia de ser. Era no cumprimento de seus deveres sagrados.
- Minha gente, aonde
vai padre Celestino. Certamente perdeu a cabeça.
- Só poderá ser
alguma confissão. É um vigário irrepreensível. Em todo caso, não boto minha mão
no fogo por seu ninguém.
- Olha aí! Está
entrando em casa da desavergonhada da Títa.
- Com toda
certeza, passa mal. Essa gente também adoece, e a Títa nunca perdeu missa.
- Padre Celestino;
pedi para o senhor vir aqui para lhe pedir perdão de uma coisa, isto é, ter ido
tão decotada para a Igreja. É isto. O uso de casa vai à praça.
- Ora, tem nada
não, menina. O que vale é a boa intenção. Assista sua missa como melhor puder
se vestir.
- Mas eu vi o
senhor olhando tanto para mim, que julguei estar me censurando. Naqueles dias,
cheguei a pensar que eu era a culpada de tudo. Era a mais decotada e de saia e
mangas mais curtas. Pode me perdoar?
- Não! Porque não
há de que.
- Pois é, mas
naquele domingo eu me parecia completamente nua no meio do povo.
- Minha filha, a
nudez é relativa. Os índios, por exemplo, andam nus e nem por isso os padres
deixaram de catequizá-los. E o que é uma mulher tem demais que não se possa
ver. Eu mesmo nunca vi. Sei mais ou menos, isto é, faço apenas uma idéia. Deve
ser bonito, pois todo mundo anda atrás de ver. Mas Deus me livre. Deve ser uma
tentação do demônio.
- Mas aqui
estamos somente nós dois. E Títa desabotoou a blusa.
- Não, não faça
uma coisa dessas!... Disse padre Celestino coma voz tremula.
E a blusa saiu, a
saia curta também e o resto. Padre Celestino caiu de costas na cama, todo se
benzendo e fazendo que não tinha visto nada.
- Se vista
menina.
- Não, padre,
vestida não presta...
E o padre
Celestino retirou-se depois do batismo de fogo. Ia se sentindo leve de corpo e
de alma. E muitos curiosos, avisados, esperavam a saída do reverendo. E alguns
chegaram a ver Títa, pelo desvão da porta, se despedindo.
- Então, padre
Celestino, doença grave?
- Gravíssima. Sei
não. Fui-lhe confessar, talvez viesse a morrer em pecado mortal. E é necessário
que alguém vá lhe prestar assistência. Só por ser uma menina de vida livre, não
quer dizer que se deixe morrer a míngua.
E o padre se foi,
ou se mandou, antes de mais conversa. E dois dos mais compadecidos foram à casa
da Títa. Precisavam mesmo dar assistência. Afinal de contas ela também era
gente. Empurraram a porta como de costume e lá estava a menina ainda em trajes de
Eva, com uma toalha no ombro e uma saboneteira na mão. Ia tirar o cheiro
enjoado de incenso.
- Ora! Desculpa
Títa. Pensei que estavas à morte. Pelo que o reverendo falou, havia te dado a
extrema unção...
- Tenho nada não.
Nunca estive tão bem.
Estava visto que
havia tramóia. Mas teria que calar a boca para não prejudicar Títa. Afinal, ela
vivia dessas visitas e o freguês novo tinha boas granas. Ele que se livrasse do
sapateiro, que era arreado pela Títa. Mas isto era problema exclusivo dos dois.
E o pior era que o padreca era de raça pesada e, pelo que se sabia, não largava
uma FN de seis tiros. Em todo caso era melhor preveni-lo. Fazer-lhe uma
cartinha de advertência. O sapateiro também não era moleza e paixão por mulher
da vida ainda, era a pior paixão. O homem recebeu o aviso, mas não se
impressionou. Paixão era a dele. Quem quisesse que mudasse de caminho. Fora
Títa que o tirara do Limbo e enfrentaria até uma legião de demônios.
E planejou uma
solução. Um emprego para Títa na Prefeitura. Assim deixaria a vida livre e
passaria a ser uma moça reservada. Mudaria de casa e estaria encerrada a
questão. E tudo foi feito.
Mas o sapateiro
não abriria mão. Foi se ter com a Títa, que não quis mais saber do bicho.
Estava cansada daquela vida miserável.
- Então, casa-te
comigo.
- Nada disso. Só
sei viver só.
E o sapateiro
ameaçou-a. Iria vigiá-la.
- Iras te dar
mal. Vou falara com o delegado.
Mesmo assim, continuou
rondando. E certa noite viu alguém entrando em casa da Títa. Aguardou a saída
de botou-se ao intrometido. Ouviram-se dois tiros seguidos. E o sapateiro
amanheceu de olho duro. Uma boa distancia da casa da Títa. Com não tinha
parentes, a policia fez o enterro.
Padre Celestino
fez a encomendação do corpo e terminou calmo e tranquilo, com as palavras de
piedade. “Descansa em paz...”.
Na verdade era
ele quem estava descansado do intruso. O delegado nem abriu inquérito. O
sapateiro era turrão, metido a brabo e já havia brigado com a policia. Era
apenas um de menos para lhe dar trabalho.
Títa sabia de
tudo. Assustou-se com o reverendo. O bicho era perigoso e aquilo poderia virar
pro lado dela. Resolveu sumir. Juntou os panos, pegou o dinheirinho economizado
e não amanheceu na cidade.
Padre Celestino
tomou um choque. Procurou informar-se veladamente, por intermédio do sacristão
e nem noticias. Desapontado, retornou a casa e também não encontrou mais a
arrumadeira. Certamente o diabo estaria conspirando contra ele. Se o avistasse
o queimaria também. Mudou as balas da FN. Para que não falhassem. Já havia
queimado um e queimaria uma dúzia.
No quarto da empregada encontrou um bilhete. –
“Sei de tudo”. Estou indo com a Títa. Ela é minha irmã. Não tive sorte com o
senhor e mesmo a Títa, o senhor pagou mal. É um seixeiro. Mande pelo correio
para recife, posta-restante o que ficou me devendo. E não mande pouco, se não
iremos contar tudo ao senhor bispo, inclusive, a morte do sapateiro. Minha irmã
também já estava enjoada de suas baboseiras. Vosmecê é um porco degenerado. E
não demore.
- Chantagem. Vão
todas para a casa do diabo. Por causa daquela sujeitinha e para escapar,
queimei o estúpido do sapateiro. Foi medo. Somente medo do escândalo e de
morrer. O maior desastre de minha vida. Tudo porque comecei a entender o mundo,
tarde de mais. E é difícil ou impossível saber a razão daquela ojeriza pelas
mulheres. Não fora isso tudo teria sido evitado. Mas não será tarde para ter
uma vida normal, fazer como os outros. Em todo o caso; foi a diaba da Títa quem
me acordou, ou por outra, mostrou-me o caminho da realidade. A bichota que
tinha em casa e que respeitei, era uma simuladora. Nunca havia falado na Títa.
Talvez ou certamente sabia de meu relacionamento com a irmã e tinha ciúmes. E a
propósito, quem sabe se não me levou alguma coisa?
Examinou os
quatro cantos da casa. Tudo nos seus lugares. Havia sido honesta. Uma boa
menina.
- Perdi-a de
burro que fui.
E por que diabo
tinha tanto medo de perder a Títa. Marinheiro de primeira viagem. Só isto. É
por essas coisinhas que muita gente não entende, muitas vezes, o que se passa
com os outros. Só mesmo quem está dentro de si mesmo é quem sabe. E, mesmo
assim, nem sempre.
Não deveria mais abusar da batina. Ela
lhe merecia todo respeito. Quando fez a primeira viagem, comprou um terno
cinzento e sapato marrões e chapéu cinza. Ninguém o reconheceria. Poderia dar
suas saídas como um cidadão livre qualquer. Ninguém diria mais: - “Olha aonde
vai entrando o padre Celestino” – Acabou-se isso.
E andava bem
feito de corpo, quando recebeu uma carta da Títa. Pedia desculpas. A carta
anterior havia sido escrita pela irmã. Soube depois. Lamentou mais não havia
mais jeito. A irmã estava casada e tinha se ido. Estava abandonada, passando
miséria. Não estava mais feia. Era a mesma Títa. Poderia voltar se ele
quisesse. Seria boazinha. E mesmo que não a desejasse mais, se poderia ajuda-la
de alguma forma. Mas queria mesmo era voltar. Havia saído com medo, depois do
que acontecera com o sapateiro. Vira tudo, mas nunca revelaria nada. Seu
sofrimento era, sobretudo o isolamento. Passa dias de fome, mas isso era o
menos. Não tinha ao menos com que voltar.
E padre Celestino
teve pena de sua “professora”. Poderia ser um tanto perigoso, mas acima de tudo
estava o seu espírito religioso e caritativo. E mandou-lhe dinheiro para a
volta e para chegar decente. Não queria vê-la desarrumada. Teria remorso por
haver causado sua fuga intempestiva. E ficou na expectativa. E já mais de um
mês e nem noticias. Desta feita havia caído mesmo numa chantagem. Mais uma vez
havia bancado o cavalocípede. E andava desapontado.
Celebrava a missa
do domingo, sem pensar em nada além do santo sacrifício. Chegou o momento da
prédica. Virou-se para os fies e começou a pregar o evangelho do dia, na maior
compenetração religiosa. E de momento fez uma pausa. Não, não era possível o
que os seus olhos viam. Lá no meio do povo, estava a Títa, sem decote, vestida
como uma moça de família, um véu banquinho cobrindo-lhe a cabeça e os ombros.
Até duvidou que não fosse uma santa. Com esforço, recomeçou o sermão, não sem
despertar certa atenção. Alguns pensaram que lhe havia faltado a imaginação e o
dom da palavra. Títa olhava para o altar embevecida. Mas nem era o altar. Era o
padre Celestino que não tirava os olhos dela e havia perdido o controle.
Encerrou o sermão. Virou-se para o altar e pronunciou as últimas palavras.
Tinha pressa. Quando procurou Títa, não a viu mais. Botou-se para casa, sem
saber onde pisava, só farejando os arredores. Deus que o perdoasse, mas não era
ele, era a força dos instintos. Entrou em casa desalentado.
Tomou café, que
não havia açúcar que adoçasse. Acendeu o seu costumeiro charuto Florinha e saiu
para a varanda, como quem fazia uma sondagem pelo infinito. E de repente, Títa
lhe aparece com o rosto meio encoberto. Preferia não ser vista em conversa com
o vigário. E depois dos cumprimentos, as perguntas:
- Por que voltastes
Títa. E onde estás?
- A carta disse
tudo e estou na mesma casinha velha onde me viu a primeira vez.
- Faz a volta e
entra pelo quintal. Comer alguma coisa, conversar mais um instante. Sabes, já
ando com medo das mulheres. Por causa delas o sapateiro viajou.
- Não serei mais
quem eu era. Vou tentar um trabalho limpo. Minhas portas só estarão abertas
para uma pessoa, se essa pessoa quiser ainda aparecer. Podia até me empregar
aqui, mas o povo iria falar...
- Falar o que e
de quem. Em minha casa, quem manda sou eu. Acabou-se o encolhimento. Tenho que
ter minha vida como Deus manda. Ninguém pode mesmo com a língua do povo, ora
esta. Ficarás aí se quiseres. E porque nunca dissestes que a Linda era tua
irmã?
- Nada não, ela
era uma moça e poderia se envergonhar se soubesse que era minha mana. Foi bom
assim. Está casada. Mas teve muita mágoa porque o senhor nunca quis saber dela.
- Respeito pela
casa paroquial. Respeito bobo Títa. Gostava muito dela. Tinha medo, também.
Poderia aparecer novidade, entendes.
- É foi bom
assim. Eu iria ter ciúmes.
- Agora, cuida em
ir arrumar o meu quarto. Vou te mostrar onde é e como é que o quero.
E daí para
frente, o que acontecia é que a cama estava sempre desarrumada...
- Títa voltou. É
a nova arrumadeira do padre Celestino.
- Estas
brincando, comadre.
- Ora
brincando... E o padre Celestino brinca em serviço. Dizem que foi ele quem
matou o sapateiro por ciumada.
- Lava tua boca,
linguaruda. Não se diz tudo quanto se pensa ou se sabe. A Títa também é gente e
precisa viver. E viver não é somente, comer, andar, dormir. O mais importante
não e necessário dizer... E depois, qual seria a moça que havia de querer ficar
sozinha em casa de padre. Só se estivesse mesmo procurando sarna para se coçar.
*O conto faz
parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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