quinta-feira, 2 de julho de 2015

PIPOCA

PIPOCA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Pipoca nasceu e viveu até os 17 anos no Agreste Paraibano. Como não se dava com o clima, mudou-se para a zona do Cariri. Ali o ambiente seco e saudável poderia trazer-lhe bem estar. E foi assim. Um ano e pouco depois Pipoca já não era o mesmo. O apelido veio-lhe de sua quase mania de comer pipoca. A mãe tinha que ter paciência e botava o caco no fogão para as pipocas de André. Habituara-se e por Pipoca ficou.
            A família – pais e manos – Continuou no Agreste, no que era seu. Pipoca fora-se para casa de parente que, embora afastado, o aceitou com prazer. A mudança de clima e de normas de vida deu-lhe novo ânimo, um novo vigor. Não teve dúvida de que todo o seu mal estar provinha do clima frio e úmido do Agreste. E que Deus o livrasse de retornar. Visitaria a família, mas por poucos dias. Benção pai, benção mãe, até logo mais e lá se ia de volta.
            A casa do primo era como se fosse sua. Na ausência do Chico, assumia tudo com o maior respeito. Merecia total confiança. E a coisa ia indo muito bem até que um dia o caldo começou a entornar. A mulherzinha do primo começou a por os olhos compridos, como um desafio. Bonitinha, sem filho, dava sempre um jeitinho para ficar sozinha com ele. Parecia-lhe arte do diabo.
            Pipoca estava vendo há hora o primo e amigo perceber ou surpreender qualquer movimento comprometedor da mulher. E ele sabia que mulher quando começa a se derreter para o lado de um homem, já tendo um, torna-se atrevida e imprudente, sendo capaz de cometer doidices do diabo. E mesmo o seu primo não merecia qualquer espécie de deslealdade ou traição. E o tempo ia passando no meio daqueles desafios.
             A Jaci continuava insistindo e apertando o cerco. Ora passava roçando nele, ora mostrava mais um pouquinho do corpo, ora abrindo-se num sorrisinho atrevido e convidativo. Até que um dia a coisa precipitou-se. Chico viajara por dois longos dias e Jaci deu graças à sua boa sorte.  Dessa feita não iria escapar-lhe.
            André estava já dormindo quando sentiu um balanço na rede. Teve medo de assombração, mas logo ouviu: - “Sou eu, a Jaci”.
            - Você está louca...
            - Não, estou desesperada. Não me abandone, pelo amor que tem a sua mãe. Não resisto mais. Será um segredo para nós dois.
            - Mas não posso fazer isso. Chico é meu primo e meu grande amigo. Tem toda confiança em mim.
            - Sei muito bem disso. Mas não poderei mais esperar. Findarei enlouquecendo. Não custa nada e vou te confessar. Chico não tem relações comigo há muito tempo. Não tem mais força para isso. Ele tem pena de mim, mas infelizmente aconteceu.
            - Mesmo assim, criatura, é uma deslealdade.
            - Pior seria se fosse com outra pessoa. Com nós dois ficará em família. Entenda-me, por favor. Estou me valendo de você, como um recurso extremo. Caso não me queira terei que abandonar a casa, o que irá me doer terrivelmente.
            E Jaci não teve mais dilema. Caiu nos braços de André. O dia seguinte amanheceu tranquilo, sereno e tudo mudado. Jaci procurava esconder-se dentro de si mesmo. André entrou com o leite e as vacas já batiam o chocalho a caminho do pasto.
Olharam-se os dois sem uma palavra, sem um gesto. Entretanto, por dentro havia tumulto. Ninguém vira o que acontecera à noite, mas era muito provável que houvesse ficado uma prova inevitável. Bastaria esperar três ou quatro meses, apenas. E Chico, qual seria o seu comportamento, do jeito que ele era. Nem seria bom pensar. Caso André caísse fora, estaria se denunciado, caso ficasse teria de ajustar contas com o marido traído, puxa, diabo...
            A situação dava mesmo para ficar mudo. Durante o café, voltou à fala dos dois.
            - E agora, dizia Andre com a voz assustada.
            - E depois é que é o perigo. Fui uma louca, não achas. Poderia não ter chegado a tanto, mas, o diabo acende fogo sem fósforo. Por que Chico deixou a gente sozinhos. Bem que podia ver que era um perigo. E você seu bobo, porque não trancou a porta do quarto? Certamente foi de propósito. Quem sabe. Caso houvesse fechado evitaria que eu me aproximasse. Agora, o jeito é descobrir uma saída. Chico sabe que está totalmente incapacitado a gerar filho.
            - Vamos, então, cair fora. Temos tempo para pensar. E tem uma coisa. Ficaremos nos encontrando. Você também foi um safadório. Poderia não ter querido. Sabe que a mulher é a parte fraca. Aproveitou-se dessa fraqueza e de minhas angustias.
            - E quem diabo pode resistir às tentações de uma mulher bonita, nova e atraente. Vocês mesmas, - as mulheres – zombariam daqueles que recusassem. E sabes de uma verdade, vamos tomar cuidado, pois o Chico está para chegar. Nosso comportamento deverá ser o mesmo de antes da tua doidice. Qualquer mudança poderá despertar atenção.
            - Pois é. Se Chico desconfiar estarás perdido.
            - Não uses perfumes, nem penteados diferentes. Chico deve ser ciumento e com razão – e ciúme tem faro como cachorro de caça. Não deixes de ser a mesma Jaci que ele conhece. Nada de suspiros e muitos menos de olhadelas furtiva para o meu lado. Faças de conta que não estás me vendo. No mais a culpa será somente tua. E também nada de enjôo, caso se confirme o que se espera.
            No dia seguinte, Chico entrou em casa. Jaci tomou um susto, como se ele a tivesse encontrado nua. Traição tem dessas safadezas. Supõe-se que as pessoas traídas estão percebendo tudo.
            Andre tinha a impressão que Chico já estava sabendo de tudo e já estava de faca de ponta na mão, afiada dos dois lados. E bem que merecia uma represália. Chico, seu bom amigo, prestativo, benfeitor, confiante a ponto de deixá-lo sozinho com a esposa, não merecia ser traído. Era bom mesmo que lhe rasgasse as tripas com duas ou três boas facadas. O que fizera deveria ser mesmo arte do demônio. Ou seria que o mundo é que estava errado, proibindo a satisfação de desejos naturais? De qualquer forma poderia e tinha a obrigação de evitar tão suja traição. Pois não era. Mulheres livres estão sobrando por aí afora. Por que aquela doidinha não procurara outro. E agora caia em si.
            - Tudo que acontece é permitido por deus e se foi ele quem guiou Jaci a procurá-lo não tinha, pois de que se penitenciar. De qualquer forma, só merecia mesmo era uma bela facada nas tripas... Há! Mulherinha espritada... Agora era esperar por Chico durante aqueles três meses seguintes. A barriguinha da espertinha dona Jaci iria começar a crescer e denunciá-la da safadeza. E não era brincadeira aquela faca de 12 polegadas que Chico sempre trazia na cinta. Puxa diabo. E tremia diante do hábito do idiota andar afiado o diabo daquela peixeirinha já amola do pé à ponta...  Andre vivia de olho na barriga da dona Jaci. E tinha a impressão de que todo dia crescia umas polegadas. O estouro seria para qualquer semana. E as facadas também.
            E foi indo, indo, até que Chico começou a notar e desconfiar que estava acontecendo alguma anormalidade. Teve pena da Jacizinha. Deveria ser a tal da “barriga d’água”. Teria que levá-la com urgência ao doutor.
            Vendeu um garrote, sem comentário e preparou-se para ir à cidade consultar o Dr. Josafá, lembrado por um amigo.
            Andre desconfiou do movimento do Chico e foi se preparando também. Não era nem doido para esperar pela lâmina de doze polegadas, afiada como andava. O caminho mais curto era cair na lenha, fugir de uma vez. Desaparecer, encantar-se. Não atinava para que diabo comprava-se uma faca de doze polegadas e ainda se andava afiando daquele jeito. Só podia ser mesmo, gente mal intencionada. Puta que o pariu...
            Chico levou Jaci ao médico. Precisava salvar a bichinha de qualquer maneira.
            O doutor examinou, virou para um lado e para outro, confessou a santinha, ouviu a história toda completinha e receitou: ou contaria tudo ao Chico, ou caísse fora com o autor da brincadeira. Não iria dizer nada e passaria uma medicação à toa para hidropisia.
            Já estavam em casa com a medicação inútil quando Jaci tomou uma decisão. O Andre um refinado covarde havia desertado e aquela atitude causou-lhe ódio e nojo. Homem que não tem peito para proteger uma mulher que se dera como ela o fez, não merecia nada mais do que repulsa e ódio. Então iria ver como se trata um covarde. O prazer que tivera no momento de sua doidice mudava-se em ódio e vergonha. Cabra safado. Era isso que valia o amor desesperado de uma mulher. Pois iria ver. Iria sugerir a Chico que lhe enfiasse as doze polegadas bem no pé das virilhas. Havia sido violentada e ameaçada de morte se fizesse qualquer revelação...
            - Ah! Está pensando que vou engolir essa tua conversa. Não, minha santinha de pau oco. Sabes onde mora tua família, não sabes benzinho. Pois bem, cai fora agora mesmo. Cria asas se poderes. Não mais quero ver o teu vulto ou sentir o teu cheiro de mulher à toa. E nem me digas até logo. Some, some. O que me aconteceu, poderia dar motivo a uma separação e não a uma patifaria. E se ainda achares pouco vai envergonhar tua família de gente tão boa e que deve ser poupada. Vai e some para onde ela nem tenha noticias tuas. Não vales nada. E eu fui um infeliz.
            Jaci foi direta para casa dos pais. Contou tudo e pediu perdão. Perdoada arrumou-se em casa, tomou a direção dos trabalhos caseiros.
            Era uma boa filha. Sempre fora. Chico na intimidade sabia que a culpa de tudo havia sido a perda do que não poderia perder. Um acidente, um trauma eram os responsáveis. Coitadinha da Jaci. E perguntava de si para si. Como impedir as loucuras de uma paixão. O silencio das noites insones e a solidão, sempre foram bons conselheiros. Agora, sozinho, sabia muito bem o quanto se deve pensar antes de uma atitude. Ah! Como Jaci era tão boazinha! Adormeceu e sonhou com ela sorrindo para ele...
            No dia seguinte Chico acordou com o sol nascendo. Angustiado com o silencio da casa, Chico passou a considerar sua invalidez matrimonial. Era irreversível o trauma. Sentiu-se desamparado e responsável pelo que lhe acontecera. Pobre menina! Dias seguidos no meio daquela tormenta, ocorreu-lhe uma idéia. Tomar o caminho de um convento. Desfez-se de tudo que possuía, despediu-se da família e transpôs o portão do Convento Santo Antonio de Pádua.
            Oito anos lá dentro, esquecido do mundo social e econômico, celebrava a Santa Missa na igreja dos Perdões, quando viu alguém que reconhecera. Era nem mais nem menos do que Jaci. O mesmo rosto tranquilo, os olhos os mesmos irradiando sonhos e vida. Não conseguira fugir, escondeu-se. Procurou-a.
            - É você Jaci?
            - Sim, eu mesma, sem pai, sem mãe, sozinha na mesma casa antiga onde nasci.
            - E o filho ou filha?
            - Filho. Um rapazinho viçoso e alegre.
            - E o pai?
            - Morreu num desastre. Fez bem deveria ter ido antes. E você, Chico?
            - Come vê. Um religioso, coisa sem significação e sem qualquer sentido. Um grande erro de minha vida.
            - Pois estou só. Vai fazer-me companhia, vamos rezar juntos...
-Não, Jaci. Recuperei-me. Um milagre. Não quero mais causar-te desapontamento.
            - Tolice, larga esse saiote marrom e vamos viver o que não pudemos antes. Não pude ser honesta contigo porque os desejos explodiram. Mas, no momento só pensava em você. Desmaie sonhando contigo.
            - Na próxima semana estarei contigo.
            - Estarei a te esperar como se fosse uma virgem...
           
*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


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