quarta-feira, 8 de julho de 2015

O SACRISTÃO DO PADRE JONAS

O SACRISTÃO DE PADRE JONAS *
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Serrote, cidadezinha trepada no altiplano da Borborema, tinha uma vida tranquila e saudável. Terra de fazendeiros e pequeno comércio; crescia lentamente como se não tivesse presa em coisa nenhuma. No conjunto parecia uma só família.
Agitava-se um pouco somente no dia das eleições e durante as festas da Padroeira, Nossa Senhora dos Milagres. Uma coisa, entretanto, despertava a atenção. Terra de mulheres bonitas. As moças, por isso, casavam cedo e raramente ficava alguma no caritó, quase sempre aquelas que se dedicavam a zeladoria da igreja e ouviam com maior insistência as pregações do padre Jonas, celibatário forçado pelas proibições da Igreja, coisa que ele maldizia, mas não podia dar jeito. Pensava muitas vezes em desabotoar a batina e passar a viver como viviam os outros homens que não haviam caído na bobagem de vestir aquela saia preta que o separava das caricias e dos requebros de uma mulher bonita. Quando, então, celebrava um casamento, aspergindo água benta sobre dois jovens que mais tarde, depois da festa, ficariam entregues um ao outro, perdia até o sentido das palavras, do latim que autorizava a entrega.
- “Estão casados e vão viver felizes”.
 Aquilo era uma marretada no seu destino, em sua vida eclesiástica. Por que o meteram no Seminário, ainda uma criança, desconhecendo as coisas boas da vida. Tinha que respeitar a castidade, viver só, dormir só e ler diariamente aquele Breviário enjoado. Considera uma burrada pretenderem separar a alma do corpo. Os dois desejam as coisas juntos. Um atiçava o outro. Quando Deus colocou Adão sozinho no Paraíso, logo percebeu que estava errado e deu-lhe uma companheira, insinuando ainda que não tocasse na maçã. E como não disse se era doce ou amarga; Adão resolveu prová-la.
Padre Jonas já estava cansado do Breviário. E qualquer coisa misteriosa fervilhava dentro dele. Numa cidade, de tanta mulher bonita, só ele não tinha direito de beber água na fonte cristalina do amor. Tinha que viver só, remoendo aquele latinório cansativo e enjoado. Só olhavam para ele como uma coisa intocável, santa, com um respeito que lhe causava repugnância. Era um homem igual aos outros, forte, sadio, sacudido pelos mesmos desejos. Havia de tomar uma decisão, contra esses absurdos da Igreja Católica Apostólica Romana. As suas paixões ocultas, paixões que somente ele sabia; paixões reprimidas que lhe chicoteavam sem piedade. Tinha ânsias de gritar para que a sociedade e o mundo o ouvissem que ele também necessitava de amor, de contato, de pecar como os outros, abraçado com alguém que lhe fizesse carinhos. Sentir o calor de um corpo, de mulher, a doçura de um olhar terno, receber, num sorriso, um convite para o amor. Que diabo de vida era aquela sua, proibido de todas as coisas boas da vida. E vez por outra se surpreendia desabotoando a batina para jogá-la fora, voltar a ser homem, ter direito de amar como as pessoas, os animais, desde os minúsculos insetos.
Todos se amavam honestamente, cumpriam o maior mandamento sagrado. “Crescei e multiplicai-vos”. Somente os padres são proibidos, por convenção religiosa, quando deveriam ser os primeiros a dar o bom exemplo do amor e de uma família organizada.
Padre Jonas, instintivamente, ia desabotoando a batina. – ou diabo, o que estou eu fazendo... Passou uma noite horrível, de insônias e desejos agudos reprimidos. Não, não era mais possível. E já no domingo seguinte a igreja amanhecera fechada.
Os misseiros aglomeravam-se desapontados à porta da Igreja.
- Vai, gente, vai saber o que houve com o padre Jonas. A casa paroquial também estava fechada.
- Coitado do padre Jonas. Deve ter morrido sozinho, sem vela e sem orações. Chama à delegada.
Arrebentaram a porta. Nem sinal do padre Jonas. Apareceu o sacristão:
 – Gente, minha filha fugiu. E agora estou vendo. Fugiu, fugiu com o padre Jonas. Foram embora os dois, na certa.
E a notícia criou asas na cidade:
- Padre Jonas, carregou a Dilene e sumiu. É nisto que dá padre não poder se casar. Agüentou enquanto pôde, Também, com a Dilene, um pedaço de mulher daquele. Nova, com aquele corpo, aquele rosto, aqueles olhos, aquele jeitinho de andar, não tinha padre que resistisse...
- E agora? A estas horas já beliscou a maça. Fome velha...
- E o noivo da Dilene! Vai se danar. Quando aparecer aqui. Coitado, trabalhando na roça e arrumando-se para casar.
- É. O padre Jonas foi mais esperto. Também a culpa foi da bichota.
- Ora, o padre Jonas cheio de dinheiro, bonitão como é, confessando a Dilene, facilmente conquistou-a. Ela pobre, filha do sacristão que vive do badalo do sino e de espanar poeira de santo, coitado, povoou a cabecinha de santos e bateu as asas.
O sacristão trancou-se em casa. Preferia que ninguém o visse. A filha havia fugido com o vigário. Coisa horrível. Certamente já existia alguma coisa feia entre os dois. Era melhor morrer do que sair com um padre. Não tinha mais jeito. O embrulho já estava feito e agora era esperar o resultado da doidice da menina.
- É, nunca poderia imaginar que padre Jonas – o santo – fizesse tal coisa. Enganar uma tolinha e passar os garfos nela. Um safadório era o que ele era.
Chegou um padre novo para a freguesia do Serrote. Não quis nada do padre Jonas. Dispensou o sacristão e comprou paramentos novos. Coitado do sacristão! Não tivera culpa em nada, carregaram-lhe a filha e ainda perdia o lugar. Iria viver de que. Era sua mamãe quem lavava a roupa do padre Jonas. A vida apertou-se ainda mais. Tinha que tomar uma decisão.
Deodato era inteligente e de uma memória fantástica. Sabia tudo decorado. Missa, batizado e os sermões que o padre Jonas fazia. Resolveu-se, então.
- Pronto, mamãe. Não iremos morrer de fome. A senhora tem aí guardados os paramentos e batinas velhas de padre Jonas. Vou sair por aí pregando, casando e batizando.
- Estás endoidecendo, meu filho. Um sacrilégio!...
- Sacrilégio é a gente passar fome por causa de um padreca, como esse. Estou mesmo decidido. Dê-me o que tiver do padre Jonas, por aí. Não irá lhe faltar nada. De onde estiver, mandarei dinheiro.
E Deodato caiu fora. Encontrou um lugarejo sem padre, lá nos confins do sertão. Chegou entonado na batina velha do padre Jonas. Improvisou as coisas e deu início a sua programação. Arrumou a capelinha, organizou festividades, fazia casamentos e batizados e simulava as missas, mandou o latinório que havia decorado. Não se falava noutra coisa. Era padre Coco pra cá, padre Coco pra lá e o dinheiro correndo, além dos presentes que recebia. Fazia bonitas pregações que atraiam gente de longe. Já havia um verdadeiro fanatismo pelo padre Coco.
A notícia começou a correr longe. Chegou aos ouvidos do pároco de uma freguesia distante. Quem ia e quem vinha, não falava noutra coisa. Padre Coco fazia milagres. Era necessário levar ao conhecimento do Senhor Bispo. E padre Ambrósio botou-se para lá.
O bispo consultou suas anotações e não havia nada sobre o tal do padre Coco. Só se veio de outra prelazia. Precisava mandar apurar. Poderia ser um mistificador.
E chamou o monsenhor Messias.
- Vai lá homem de Deus e passa isso tudo a limpo.
Monsenhor Messias tocou-se para lá.
Mas nesse momento alguém soube da fiscalização e mandou urgentemente avisar ao padre Coco.
- Deixe vir...
Monsenhor Messias foi recebido debaixo de passeata religiosa. Hospedado, a propósito em casa do padre Coco. Houve quase uma romaria. Era impressionante o prestígio do padre Coco. Estava preparada uma pregação para a noite em homenagem a monsenhor Messias.
Padre Coco já havia reunido bastante dinheiro. Tomara 20 contos e prepara uma caixinha especial.
À hora do sermão, começou a disputa.
- Fale primeiro o senhor padre Coco.
- Não, o senhor que vem de fora.
Afinal, padre Coco falou. Era o que ele queria. Repetiu um dos sermões de padre Jonas. E para arrematar, virou-se para o monsenhor Messias, e em voz pausada, acentuando bem as palavras anunciou.
- Eis aqui meus irmãos, todo o dinheiro arrecadado nas festividades, são vinte contos de réis que passarei às mãos do monsenhor Messias em beneficio das obras sociais da Igreja. E fez a entrega da caixinha recheada.
Monsenhor Messias fez sua pregação. Era exímio em transmitir a palavra do Senhor. E para concluir exaltou o trabalho do padre Coco e disse a que tinha vindo.
- Denunciaram o padre Coco. Diziam que padre Coco não era padre. Mas, meus irmãos, padre Coco é padre até no inferno!
Encerrou a pregação acariciando a caixinha com os vinte contos de réis que iriam agradar o bispo.
- O bispo chama o Monsenhor e diz: - Olha Messias, esse padre Coco será promovido a cônego. Cuide dos papeis. Essa gente gosta de caluniar os outros... Que pecado feio!...
- Padre coco, um modelo de fé. Já está promovido...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


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