terça-feira, 14 de março de 2023

A RUA QUE NÃO ACONTECEU - ROBÉRIO MARACAJÁ HENRIQUES


 

A RUA QUE NÃO ACONTECEU

 

Robério Maracajá (in memoriam)

 

Aquela manhã não era do meu tempo, muito mais antiga. Uma manhã velha fazendo-me reconhecer a marca das idades, como se me revelasse páginas amarelecidas pelo tempo. A rua, a calçada, o casario, os passageiros, tudo ancestral. E a inquietação minha por sentir-me novo, recente, uma violência dentro daquelas imagens remissivas.

O menino vinha ao meu encontro, uma paródia de meninos anteriores, olhos mortos de pálpebras imóveis, passos cansados de séculos, uma imagem recém – saída de um calendário esquecido. Um vulto sem emoções como uma estampa desbotada. Uma agressão ao meu tempo de barco sobre ondas azuis e iluminadas. A dor de um encontro absurdo, indesejável.

O casario abria as janelas, olhos de múmias, bocas desdentadas de palavras, hálito de recantos escondidos no silêncio das paredes assombradas de vazios. E eu me via naqueles interiores e assustavam-me os meus habitantes, então reencarnando todos os meus eus. Um pavor maior, vendo-me em tantas posses, meus olhos de infinitas dimensões, as mãos de centenas de dedos, todas as minhas almas que não assumi.

O menino e o casario completavam-se à sombra das árvores que nem existiam mais, ramos de aves sem pouso, o corpo dos troncos maltrapilhos, raízes contorcidas no leito de orgasmos incompletos. Os jardins anêmicos sem as rosas de dezembro, asas de borboletas esfarrapadas, zumbis de cores secas, cigarras de cantorias estiadas, uma vertigem.

O menino era a alma das árvores, dos pássaros e do casario e me roubava do meu tempo, violentando a minha idade, agora um aborto desmembrado, dispersado por caminhos perplexos. Afundava o meu barco de águas azuis e iluminadas, era a minha morte em profundezas agoniadas. A agonia dos meus habitantes e dos meus despovoados. A angústia das minhas casas desdentadas e de bocas sem palavras, das árvores sem aves, dos meus olhos de múmia, de um hálito de silêncio.

Um violino, um piano, um violão vinham das noites desaparecidas, de uma sala nenhuma, de uma sacada qualquer, onde uma moça qualquer premia os seios e o coração, uma serenata cortada ao meio, numa meia noite. E as fantasias / fantasmas, no gume da rua nua, apedrejavam telhados desalmados.

Aquela manhã, dia / noite, que não era do meu tempo, intrometeu-se em mim como uma noite desperdiçada. Carregando todos os meus escondidos e indesejados. Pela primeira vez, recusei uma manhã, desacordando-me. Um amanhecer amarelo, fosco, esfumaçado, idoso. Um acorde de restos embaralhados, confusos, sem fronteiras, na alma e no tempo.

Aquela manhã que nunca existiu e, se existiu, foi tanto que não havia mais nada além dos olhos mortos do menino espiando de dentro de um velho calendário.

JÚLIA CONTO DE JOÃO HENRIQUES DA SILV A

 

JÚLIA

 

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)

 

Júlia, a Negra Júlia, não havia nascido para brincadeira. Virara mulher antes do tempo e não queria negócio com gente pobre. Gente pobre que prestasse só existia mesmo ela; e mesmo admirava o contraste das classes sociais. Só se vestia de branco ou roupas claras combinando com os dentes iguais, completos e alvos como coco. Não dispensava uma flor nos cabelos e nem uma cinta colorida, de longe já se sabia.

- Lá vem a Negra Júlia. E que Deus a livrasse dos filhos. Poderia nascer um bastardo que lhe daria sério desgosto.

Também não falava em casamento que era negócio pra gente rica. pobre casado só servia para aumentar a miséria.

Negra Júlia empregava-se numa casa e noutra, mas logo dava nas vistas das patroas que a mandava passear.

 E ao sair sempre dizia: - A senhora deveria mandar era o seu marido. É patroa. O que ele me pede eu faço. E não é nada de mais, aliás. Não lhe arranco pedaço.

Era melhor ficar calada, antes que à Júlia se saísse com outras mais vexatórias. Em segundo lá vinham às briguinhas.

- Não tem vergonha, Chico, de andar pedindo as coisas a Negra Júlia. Por que não te das o respeito?

- Conversa daquela doida. Acha-me com a coragem de me misturar com uma pobretona daquela? Só mesmo tua cabecinha tonta pode sair semelhante pensamento.

- Pensamento, o que. Foi ela mesma quem me passou nas ventas. Acha que eras tu que eu deveria mandar embora.

- Mulher atrevida e diabólica. Como tem coragem de inventar uma fuxicada dessa.

- De qualquer forma, pedi a confiança em ti. Bem que eu podia ver, pelo bamboleio, que aquela safada era perigosa.

- Já te disse que não tolero gente com aquelas maneiras, basta vê-los para ter arrepios.

- Duvido! Com uma mulher daquela qualquer um se perde. A bichota dá voltas no corpo igual a uma cobra de cipó. Só por ser muito vulgar. Duvido que enjeite. De qualquer maneira, uma pessoa daquela não me põe mais os pés aqui.

- Bobagem tua. É melhor em casa reservadamente, do que lá fora às vistas do mundo.

- Não gosto de gaiatice!

A Negra Júlia era violenta nos seus amores. Criara fama. Não se oferecia diretamente a ninguém. Bastava, contudo, sua presença para assanhar qualquer um. Eram as suas formas, o seu jeitão de mulher vadia e atrevida. Nenhuma casa de família a queria mais. Achavam até que o delegado deveria proibir de andar pelas ruas naquele desespero de mulher insaciável. Mas, quanto mais se falava, mas ela se exibia, balançando as curvas do corpo, presas no vestido colado. Havia desassossego na cidadezinha. Se ao menos a danada ficasse buchuda, daria um descanso às donas de casa. Mas nem isso. A velha Totonha preparava-lhe garrafadas que impediam de pegar menino. E o pior era aquela sua ojeriza pelos pobres, pois poderia ir se chafurdar com a sua classe. Mas não. Só insultava gente de dinheiro, sadia e corada. Detestava magrecelas. Não tinham sangue nem para eles, quanto mais para derretê-la. Já não trabalhava mais e não lhe faltavam vestidos novos, perfumes e outros adereços femininos. Era evidente que estavam gastando muito com ela e só podia ser os maridos sem vergonha. Os apelos feitos às autoridades eclesiásticas falharam. Não era crime andar pelas ruas decentemente. O melhor era esquecerem a Negra Júlia. O esquecimento é um santo remédio. Além disso, sem emprego. A Negra Júlia teria que arranjar um meio de sobrevivência.

- É pobre, mas também é gente. Tranquem bem os seus maridos. Eu, por exemplo, não a procuro. E Júlia é mulher sem outro trabalho. Tem quer ir mesmo vivendo dos seus encantos. As donas de casa não a querem, mas os maridos querem.

- Mas seu Juiz, precisa-se de uma solução definitiva. A Negra Júlia toma conta de tudo. A gente mesmo se fosse homem estaria sendo tentada. A danada tem azougue é pior dos que visgo de jaca. Pisou caiu!

- Vão ao delegado. Falem com ele. Talvez ele possa conversar com a Júlia, dar-lhe uns conselhos e amenizar a situação.

- Vamos lá, minha gente.

- Seu tenente, viemos aqui pedir providencias contra a Negra Júlia. Anda aí pelas ruas botando feitiço em nossos maridos. Não se tem mais sossego.

- A Negra Júlia! O que foi que ela fez? Cometeu algum crime?

- Pior. Está intranquilizando as famílias. Assanhando nossos maridos que não ligam mais para a gente.

- Mais isso é um descalabro senhoras: ricas, educadas, de posição social elevada, com medo ou ciúme da Negra Júlia? Nem é possível acreditar, este é assunto para tratar como Dr. Juiz.

De lá já viemos.

Então deixam a Negra Júlia em paz. Ela também precisa viver e se divertir.

 

 

 

 

 

segunda-feira, 6 de março de 2023

 

IDALINA

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

            Idalina era a menina mais triste da pensão de dona Marialva. Olhava para as pessoas como se estivesse com vontade de chorar. Quando lhe perguntavam o motivo, respondia invariavelmente:

- Nada, nada não!

Nunca se vira uma beleza tão triste. E por isto mesmo era Idalina a atração daquela casa de mulheres. Todos que a viam desejavam saber por que uma menina tão nova ainda e bonita como era, podia ser tão triste. Uma tristeza comovente. A tristeza passeava nos olhos de Idalina como um cisne sozinho num lago, solitário. E os frequentadores da pensão, juraram descobrir a causa. Saia com um, saia com outro e todos procuravam entrar-lhe de alma adentro para descobrir o segredo.

            - Nada não, gente. É porque sou assim mesmo. Nasci assim, com este ar de tristeza.

            Para uma mariposa, aquela tristeza, infinda era inexplicável. E nem se podia compreender como se atrevera uma pessoa tão triste, vir para o ambiente das mulheres alegres. Um verdadeiro contra senso. Mas a verdade é que Idalina estava ali e era tão disputada. E também nunca se tinha visto tanta beleza nuns olhos tão tristes. E nem jamais a tristeza dera tanta sorte a uma criatura de vida livre. Idalina passou a ser conhecida pela menina dos olhos tristes. Todas as outras mulheres foram se enchendo de ciúmes por Idalina. Porque aquela preferência, que chegava ao ponto de esperarem que ela saísse de seu apartamento pra voltar a ele logo em seguida ainda cheirando a outro? Que filtro possuía Idalina, que jeito ela dava no corpo para ser assim tão requisitada, bonita ela era, nova também, mas outras possuíam os mesmos encantos. Havia de desvendar o milagre de tanta sorte na prostituição.

            Pois não era, Idalina se enchia de dinheiro, depositando as sobras na Caixa Econômica, quando muitas havia, que mal conseguiam para as despesas obrigatórias. E, além disso, não passava de uma menina triste, recolhida dentro de si mesma, como se não houvesse e nem quisesse amar. Enquanto as demais se enfeitavam, perfumavam, e procurava exibir a máxima sensualidade, Idalina permanecia no seu cantinho com a timidez de uma virgem. Outras mulheres procuravam imitar os seus hábitos, mas sem resultado. É que nenhuma possuía aqueles olhos lindos e tristes que lhe davam uma expressão irresistível. Quem, por acaso já vira olhos mais belos e atraentes num rosto de mulher. E as companheiras chegavam a ter a impressão que Idalina deveria ser um demônio na cama. Só podia ser para enfeitiçar a todos. A inveja crescia e não adiantava procurar recanta-la.

            A procura era a mesma. Sempre aquele – Vamos Idalina. E ela levantava-se com um sorriso feiticeiro e vitorioso.

            No ato comportava-se como se fosse sempre a primeira vez. E como não descobriam o mistério daquela procura ansiosa, as companheiras resolveram aproximar-se de Idalina na intenção de alguma revelação daquele intrincado mistério nos seus amores.

            - Não meninas, não tenho nada demais e nem faço nada de especial. Eu é que não sei por que sou tão assediada. Mas essa fase passa. Perguntem aos que me procuram. Vocês sabem que sou uma criatura triste, sem graça na vida. Aquele risozinho que desprendo quando vou com alguém, é uma pura formalidade. Também seria impossível receber os amigos com secura total. Eles me pagam bem e tenho que me comportar como uma verdadeira amante. Se sou boa no quarto, só eles sabem. Cada uma usa os artifícios que podem e sabem. Um relacionamento, embora sem nenhum prazer, tem que ser agradável aos companheiros. Disso vocês sabem muito mais do que eu, uma quase estreante na arte de enganar os homens. Chego às vezes até a chorar, fingindo um prazer imenso e diabólico. Estou lhes confessando essas bobagens porque estarei pouco tempo mais nesta profissão miserável e suja. Já possuo economias para dedicar-me a outras coisas menos sórdidas. Por que tenho tido também sorte, não sei. E quero deixar de ser mulher de todo mundo antes que a sorte me abandone.

            - E com tanta sorte, porque tens esse aspecto permanente de tristeza. Sempre fostes assim, ou isto é coisa calculada. Não há dúvida de que esses teus olhos tristes são encantadores, aliás, uma coisa estranha.

            - E o que pretendes fazer. Largar tanta sorte por uma aventura qualquer.

            - Nada disto. Não era triste assim. A tristeza veio depois. Esperem mais um pouco e contarei tudo. Quando eu estiver com as malas prontas e o dinheiro economizado na bolsa. Quando tiver a felicidade de pisar pela última vez os batentes de uma pensão de mulheres e não ter que ir para a cama com um desconhecido, fingir amor. Estou chegando ao fim do meu plano. Ninguém é triste porque quer. A tristeza entra nos olhos da gente como um ladrão, força a porta de um apartamento. Entra, leva tudo e deixa a casa vazia. Pois é. Entraram em minha vida e me esvaziaram. Só sobrou apenas esta mulher triste que conhecem. Pensei em suicídio até, mas a morte nada resolve. Morrer é covardia, medo de enfrentar a vida, mergulhar no nada. Ser enterrado numa cova fria e ali apodrecer como um fruto já bichado. Seria uma forma de fuga, mas uma fuga inútil e estúpida. Preferi enfrentar o mundo como ele é. E tive que tomar esta direção, talvez o pior, ou quem sabe, o que o destino ingrato me reservava para me pôr à prova. Descer até o último degrau da degradação humana, vender minhas emoções, o meu corpo, como se vende uma mercadoria deteriorada e esperando quem o queira a qualquer preço, sem ajuste, esperando pela generosidade do comprador. E o pior é que é uma mercadoria que muitas vezes se entrega com repugnância, com nojo do comprador, mas procurando agradá-lo sempre. Ainda hoje guardo o desgosto de relacionamento com um criador de bodes. Tive a impressão de que estava enrolada em um couro de pai de chiqueiro ou me impregnando com aquele cheiro do satanás a que tenho pavor. Fique de tal forma impressionada que de lá para cá nunca mais comi queijo de coalho que as vezes tem o cheiro do bicho. Atirei fora minhas sandálias de arreatas de couro. Quando me vi com aquele bicho em cima de mim, forçando e grunhindo, quase tive uma vertigem. E até hoje não houve banho, nem água quente que retirasse o cheiro caproíco do animal mal lavado. E quando penso que dentro de mim estava um pedaço daquele cheiro que o diabo botou no bicho, é que avalio quanto é desgraçada a prostituição. O dinheiro que me deu, dei ao primeiro pedinte que apareceu. A mesma nota de cinco mil reis.

            Como mulher de pensão, tenho sido feliz na infelicidade da profissão. Posso imaginar a amargura de algumas mulheres que além de tudo, ainda não tem sorte pelo menos para ter o suficiente às suas necessidades primárias. Criaturas que vão envelhecendo sem um níquel amealhado e na perspectiva de se apresentarem como mendigas ou simples peniqueiras em uma pensão qualquer de mulheres. Chega-se, assim, a estrema degradação social. Ser puta e nem mais isto poder ser, por que ninguém as quer mais.

             Estou preste a abandonar esta profissão infame. Irei voltar para minha família, da qual me afastei para não a envergonhar. E não culpo ninguém por este acidente na minha vida.  Casei-me contra a vontade de todos. Casei fugida. Nasceu uma menina a mais linda criatura que já vi. Meu marido tornou-se estúpido e violento. Fugi dele. Agora sei que ele morreu de um colapso cardíaco. Procurava-me para vingar-se. Havia de liquidar comigo. E o fantasma da morte, me apavorava. Escondida aqui, mesmo assim tinha medo. E até antes de morrer, jurava acabar com minha vida.

            Era odiento e irresponsável. Minha filha eu a deixei com minha mãe, onde ainda está. Se tivesse ouvido os conselhos de minha família, os seus apelos, suas advertências, não seria a Idalina que sou, esta moça triste que vocês conhecem, vivendo da prostituição, coisa que nem chega a ser uma profissão e se fosse seria a mais desclassificada de todas. Tenho hoje, no meu corpo marca abjeta de todos esses homens que me levaram a saciar os seus desejos. Marcas que não se desfarão nunca. Jamais senti prazer com nenhum deles. O bem querer que fingia cada vez que me procuravam, era uma nova ferida que não cicatrizava. Era apenas uma espécie de deposito onde se despeja liquido sujo dos prazeres dos outros.

            Eu seria a Berenice dos anjos, aquela moça criada com mimo, de alma limpa e coração puro. Minha família, no meu entender, não sabia o que era o amor. E eu amava, inocentemente, um animal indomável e coiceiro. A estupidez chegava às raias da monstruosidade. Cada gesto era uma patada, cada palavra um coice. Fugi numa de suas ausências. Deixei as escondidas minha filhinha e uma carta à porta da casa de meus pais. E deixei uma amiga para me informar dos acontecimentos.

Vou despedir-me. Sejam felizes.

            Partiu de verdade. Ganhou o oco do mundo, para um lugar mais perto dos seus, até tomar chegada de novo.

            A turma da pensão, logo depois recebeu uma carta da colega que agora era uma borboleta livre.

            - Meu ex-marido morreu. Mesmo assim, talvez ainda me ande procurando para uma vingança. Mas estou aliviada e sem medo. Aquela minha tristeza era saudade de minha filha e medo de ser surpreendida a qualquer momento. Tudo poderia acontecer. Agora estou livre e não essa mulher de vida livre que vocês conheceram, mas, livre para abraçar e beijar minha filha, meus pais e manos. Nunca terão de saber que me prostitui. Antes de encontrá-los, vou me confessar para expurgar-me. Em casa serei uma ex-empregada doméstica. Mentir para não dar mais desgosto à família. Se souberem que levava esta vida miserável, nem me receberiam. E há quanto tempo não tem notícias minhas. Eu tenho deles. E pelo que sei, nem têm coragem de perguntar por mim.

            E quando, por acaso falam, apenas uns olham para os outros em silêncio. Sinal de desapontamento e tristeza. Mas vou chegar lá com esses meus olhos tristes, e que tanto sofreram. Não irei fazer surpresa. Já escrevi para casa. Meu ex-marido não me faz mais medo, pois não tenho medo de alma do outro mundo. Paguei caro minha desobediência. Quem não ouve pai e mãe, sempre se dá mal. Eu estava cega, mas não estava mouca.

            Quero um abraço de todas vocês. Perdoem-me e sejam felizes. Deixem esta vida suja quando puder. Creio que não nos veremos mais.

            Adeus,

            Berenice.

 

 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

 

EVOLUÇÃO

Augusto dos Anjos

 

Se devassássemos os labirintos

Dos eternos princípios embrionários,

A cadeia de impulsos e de instintos,

Rudimentos dos seres planetários;

Tudo o que a poeira cósmica elabora

Em sua atividade interminável,

O anseio da vida, a onda sonora,

Que percorrem o espaço imensurável;

Veríamos o evolver dos elementos,

Das origens às súbitas asceses,

Transformando-se em luz, em sentimentos,

No assombroso prodígio das esteses;

No profundo silêncio dos inermes,

Inferiores e rudimentares,

Nos rochedos, nas plantas e nos vermes,

A mesma luz dos corpos estelares!

É que, dos invisíveis microcosmos,

Ao monólito enorme das idades,

Tudo é clarão da evolução do cosmos,

Imensidade nas imensidades!

Nós já fomos os germes doutras eras,

Enjaulados no cárcere das lutas;

Viemos do princípio das moneras,

Buscando as perfeições absolutas.

Extraído do livro Parnaso do Além-túmulo - Francisco Cândido Xavier (psicografia)

 

domingo, 12 de fevereiro de 2023

VIDA DE ZÉ LOURENÇO

 

77 anos da morte de Zé Lourenço.

 

 

 

 


 

 

 

A comunidade remanescente dos camponeses do Caldeirão e fazenda União do beato José Lourenço, um beato perseguido, lembra nesse dia, sua passagem para o plano espiritual.

77 anos de falecimento do beato José Lourenço

Profa.Ms

Maria Loureto

Pesquisadora e historiadora.

 

 

 



 

 

RECORTE DE UMA HISTÓRIA DE PERSEGUIÇÃO.

 

Zé Lourenço, o beato, sob às orientações do Padre Cícero, larga a comunidade de beatos e vai cuidar da agricultura, oferecendo trabalho, abrigo e alimento, ensinando a fazer penitência e fazer oração.

 

Baida D' anta, Caldeirão e União.

Comunidades que recebiam os enviados do Padre Cicero Romão.

 

Sob a luz da fé e cresça na Santa Cruz, enfrentou a injustiça sem esquecer Jesus.

 

Tentaram sua vida tirar, por inveja muito tentaram,

Mataram inocentes, mas eles não mataram.

 

Zé Lourenço morreu em seu leito na fazendo união, perto dele estava, seu amigo Mozart Cardozo o médico de Cicero Romão.

 

O exemplo de coragem, força, trabalho e união, confundia a igreja, forças armadas e multidão, só não a Deus, que o levou com mansidão.

 

Escreveu; Maria Loureto de Lima.

Pesquisadora.

 

José Lourenço Gomes da Silva, mais conhecido como beato José Lourenço, (Pilões de Dentro, 22 de janeiro de 1872 — Exu, 12 de fevereiro de 1946) foi o líder da comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, localizada na zona rural do Crato (Ceará).

 

Biografia

José Lourenço Gomes da Silva era paraibano da cidade de Pilões de Dentro, nascido em 1872, filhos de escravos alforriados – Lourenço Gomes da Silva e Teresa Maria da Conceição. Muito jovem foi trabalhar na agricultura, afastado da família, que migrara para Juazeiro do Norte. Aos vinte anos de idade, José Lourenço vai para Juazeiro, onde reencontra sua família e se torna beato.

 

Baixa Dantas

Em Juazeiro, José Lourenço conquista a confiança do vigário local e é encarregado de liderar uma missão, para onde o Padre Cícero enviaria os flagelados da região. José Lourenço então arrendou terras no sítio Baixa Dantas, no município do Crato, para exploração agrícola comunitária. Lá permaneceria de 1894 ou 1895 até 1926, ano em que o sítio é vendido pelo proprietário, coronel João de Brito, sem qualquer indenização ao beato e seus seguidores.[1]

 

A comunidade do sítio desenvolveu-se rapidamente, o que despertou a fúria dos fazendeiros. Possivelmente com o intuito de colocar o beato em descrédito, espalhou-se a notícia de que os membros da comunidade veneravam o boi Mansinho, um mestiço de zebu que pertencera ao Padre Cícero.[2][3] Em 1921, a Igreja Católica, que já estava irritada com os supostos fenômenos sobrenaturais ocorridos em Juazeiro do Norte, pressionou o Padre Cícero para que tomasse uma decisão. Para evitar maiores transtornos, Floro Bartolomeu, um político local, amigo do Padre Cícero, ordenou que sacrificassem o boi e prendessem José Lourenço. O beato foi solto semanas depois, a pedido do padre Cícero. [1]

 

Caldeirão

Ver artigo principal: Caldeirão de Santa Cruz do Deserto

Depois da confusão, José Lourenço Gomes da Silva decidiu transferir a comunidade para o Caldeirão, um local mais afastado. Entretanto as perseguições continuaram e, em 11 de maio de 1937, com a conivência do clero e de latifundiários locais, a comunidade foi invadida e arrasada por forças policiais, apoiadas por aviões da FAB. Cerca de 700 camponeses foram mortos. [4]

 

Caldeirão era uma comunidade autossustentável que dava abrigo a famílias camponesas que fugiam da exploração imposta pelos latifundiários. O caso do massacre do Caldeirão costuma ser comparado à guerra de Canudos (1896-1897), na Bahia, e à guerra do Contestado (1912-1916), na fronteira entre os estados do Paraná e Santa Catarina — episódios com desfechos semelhantes.

 

José Lourenço fugiu para Exu, onde morreu em 1946 de peste bubônica, tendo sido sepultado em Juazeiro do Norte.

 

Ação judicial

Em 2008, a ONG cearense SOS Direitos Humanos ajuizou uma Ação Civil Pública na Justiça Federal do Ceará requerendo que a União Federal e o Estado do Ceará informem a localização da cova comum onde o Exército e a Polícia Militar do Ceará enterraram as vítimas do Sítio Caldeirão, massacradas em 1937.

 

A ação foi extinta, sem julgamento de mérito, pelo juiz da 16.ª Vara Federal de Juazeiro do Norte, a pedido do Ministério Público Federal que em seu parecer declarou:

 

a) o massacre ocorreu há mais de 70 anos e estava prescrito

b) não há como encontrar os restos mortais pelo tempo que o crime ocorreu.

A SOS Direitos Humanos, inconformada com a decisão do juiz, apelou ao TRF da 5.ª região, em Recife, aduzindo que:

 

a) o crime de desaparecimento de pessoas é imprescritível,

b) os restos mortais estão em local árido, a Chapada do Araripe, e portanto podem ser encontrados, a exemplo da família do Czar Romanov, que foi morta em 1918 e encontrada nos anos de 1991 e 2007.

 

 

Em 11 de maio de 1937, centenas de sertanejos, seguidores do beato paraibano José Lourenço foram massacrados pela Polícia e pelo Exército, na fazenda denominada Caldeirão, situada no Crato, Ceará. O episódio ficou conhecido como Massacre do Caldeirão. A terra havia sido doada aos romeiros pelo Padre Cícero no final da década de 1920. Conhecida como Caldeirão dos Jesuítas, passou a ser chamada de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto pelos romeiros. No Caldeirão, cada família tinha sua casa e a produção era dividida entre todos. Na fazenda havia também um cemitério e uma igreja, construídos pelos próprios membros. A comunidade chegou a ter mais de mil habitantes. O modo de vida comunitário e a sociedade igualitária atraíram famílias de todo sertão que abandonaram o trabalho árduo nos latifúndios para ir viver no Caldeirão. A comunidade rural começou a ser acusada de “comunista”. Em 1937, sem a proteção de Padre Cícero, que falecera em 1934, o Caldeirão foi invadido e destruído pelas forças do governo de Getúlio Vargas. O número de mortos é até hoje desconhecido. Estimam-se 400 ou 700 mortos. Seus corpos não foram encontrados pois o Exército e a Polícia Militar do Ceará nunca informaram o local da vala comum onde foram enterrados. Presume-se que a vala coletiva esteja no Caldeirão ou na Mata dos Cavalos, na Serra do Cruzeiro (região do Cariri). José Lourenço conseguiu fugir para Pernambuco onde morreu aos 74 anos e foi enterrado em Juazeiro.

 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

 

O CHORO DO GADO

Parte III

 

Nas chuvadas primeiras de novembro, o gado alimentado no capim agreste da chapada Araripina a seca toda, sente o prenúncio do verde no sertão e procura as ladeiras para descer às pradarias alcatifadas de beldroegas. É a carência orgânica a exigir “despastagem”.

Nos meus descuidados doze anos acompanhava a retirada para as fazendas daquele nosso gado da planura da Araripe. Centenas de rezes enchiam o caminho com sobra derramada pelo mato lateral, sempre acossada pelos vaqueiros da “esteira” para que não se desencaminhassem. Meu pai na guia do rebanho com um vaqueiro para evitar desvios, e eu no coice com outros vaqueiros, me julgando aprendiz deles. Longos e afinados aboios a dar a nota plangente da viagem expressavam o contentamento daqueles que faziam a função, misto de dever e prazer, obrigação e lazer.

De repente, no lambedor do Alto do Mulungu, terreno salgado constantemente lambido pelos animais, um touro mestiço de pescoço grosso, por certo cioso da liderança no rebanho, soltou forte urro multiplicado pelo eco e estacou a esfregar a testa num pé de pau. A manada se comprimiu. As reses escavacando o chão com as patas e torcendo as moitas com os chifres urravam e uma só vez. Berreiro langoroso num crescente sincopado tomou conta do ar. Choravam convulsivamente num choro coletivo. Os olhos úmidos da vacada lacrimejavam.

- O gado chora, meu amo – disse Zé Felix se dirigindo a mim, e, instintivamente retirou o chapéu de couro da cabeça e o colocou no peito, em reverência. Outros vaqueiros o imitaram.

O espetáculo indescritível, jamais vi igual! Retivemos os cavalos que montávamos em respeito ao choro do gado ao cheirar ossada bovina recente, que os urubus haviam limpado.

Aos poucos, tangido de mansinho, o rebanho retornou a caminhada a passo lento, cabeças abaixadas farejando o solo. Os aboios, espaçados, curtos, ecoavam carregados de tristeza.

Eu tinha doze anos de existência! O temo vem se acumulando sobre mim sem toldar a memória daquela bucólica cena que me feriu a sensibilidade. Foi a cena mais tocante e irremediavelmente inesquecível da minha vida rural-pastoril! Quando me ocorrer transitar por ali, passo em silencio rememorando aquele quadro.

Nunca vi humanos chorarem tão intensamente os seus mortos. A natureza tem mistérios.

E haja saudade!

Napoleão Tavares Neves.

 

 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

 



                                    ANTEVISÃO

 Caetano Pero Neto

 

 

Quando a nuvem

acionou seus canhões invisíveis,

ribombando no espaço,

ouvi a mensagem da abundância.

 

Quando o raio

cortou o tecido espesso das trevas

com a lâmina da morte em esplendor,

respirei o ar puro do céu lavado.

 

Quando o vento sacudiu o arvoredo

com seu rebenque aéreo,

enxerguei as flores

que permaneceriam

fiéis aos frutos.

 

Quando o aguaceiro jorrou dos céus,

com as suas cataratas imensas,

inundando os caminhos,

vi a mesa farta,

rodeada de crianças felizes.

 

Quando o sofrimento aparece,

diante de nós,

crivando-nos o ser com farpas intangíveis,

vejo nossas almas

nos píncaros do Planeta,

sob o fulgor sem sombra do zênite,

cada qual carregando em si mesma

o seu próprio Universo,

prontas a desferir

o vôo livre e belo

para o sem-fim da Perfeição.

 

Do livro Poetas Redivivos

Espíritos Diversos

Psicografia: Francisco Cândido Xavier

Pero Neto (Itápolis, 21 de agosto de 1916 - São Paulo, 23 de dezembro de 1937) foi um poeta e advogado brasileiro.

 Filho de Nicolau Pero e Olímpia Ferreira Pero, diplomou-se aos 15 anos de idade e aos 16 anos foi aceito no vestibular para o curso de Direito na Faculdade de Direito de São Paulo. Em seu sepultamento, um dos oradores, em um gesto de reconhecimento pelas suas contribuições como presidente da Associação Acadêmica Álvares de Azevedo e como orador da caravana artística do centro acadêmico XI de Agosto, foi Ulysses Guimarães. Às vésperas de sua morte, deixou um romance incompleto, o qual seria batizado de "Os Boiadeiros", vários discursos, diversos contos e inúmeras poesias. Devido a sua brilhante atuação junto a Faculdade de Direito de São Paulo, o Centro Acadêmico XI de Agosto publicou "Xangô e Outros Poemas", coletânea de poesias deixadas por Pero Neto.

 

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

 

AS PRESEPADAS DE ANTONIO SILVINO

 

Histórias contadas pelo estimado primo Baltazar Maracajá, já desencarnando, escrito do jeito dele. (Ipsis litteris).

 

 

Antônio Silvino certa vez atacou com um bando, uma fazenda ou casa. O dono desta casa era um homem valente e destemido. Reagiu até acabar a munição. Então o homem abriu a janela e jogou o rifle e disse:

- Acabou-se a munição. Vamos lutar de homem para homem de arma branca.

            Silvino rebentou a porta, porém antes disse:

- Fique sossegado porque eu não vou fazer nada contra você. Um homem como você não se mata e ficaram amigos.

 

Antônio Silvino veio morar em Campina Grande na rua padre Ibiapina. Esta rua é uma rua estreita onde fica a sede da UCES – União de equipe social, que foi fundada pela irmã Ângela Beleza. A UCES coordena todas as associações de moradores – SABES de Campana Grande e Bairros.

 

Sabemos que Antônio Silvino gozava bastante saúde. Nãos sabemos a causa mortais dele. Porém sei que as últimas palavras que proferiu foram estas ditas para a pessoa que lhe assistia.

- Maria ponha um pano e cubra meu rosto!

 

Antônio Silvino era respeitador, mas justiceiro. Certa vez uma negra e um negro que vivia em certo lugar, começou a falar dele. Ele soube e foi na casa deles e mandou ela e o marido dar três umbigadas num pé de cardeiro.

Se é verdade ou não. Só escrevo porque me contaram.

 

Outras histórias de Antônio Silvino.

Perto da cidade de Areia tinha uma travessia e o povo contou para ele que aparecia malassombroso.

Era a cara de um galego desse sarará com uma espada na mão. Silvino disse:

- Eu tenho vontade de ver esse sujeito para saber quem é ele.

Quando Silvino voltou outro dia deixou o bando e foi sozinho ao local da aparição desejando ver este ente do além e repentinamente o sujeito apareceu sorriu para Silvino e disse:

- Agora eu vou te pegar.

- Silvino sacou do parabélum e disparou várias vezes contra o fantasma, ele nada temeu, Silvino tira o punhal e diz

- Agora o punhal galego nojento.

Ambos se atracaram em luta pois o mesmo tinha uma espada na mão, mas Silvino lembrou-se de Deus e fez uma oração mentalmente e ele desapareceu.    

Dizem que certa vez a polícia cercou Antônio Silvino.   

Ele possuía uma oração oculta que dizia:

Nas mãos dos meus inimigos eu sou vulto sou vela e desvelo, sou vulto e desvulto.

Repetia esta prece por três vezes.

Note bem: esta oração é uma oração esotérica da Cruz de Caravaca.

Faz o Pelo sinal também três vezes.    

Lenda ou verdade, conta que ele ia caminhando e foi cercado. Ele proferiu esta oração e ficou transformado em um toco. Então um soldado disse:

- Eita gente olha fogo ali naquele tronco, vamos acender os cigarros.

Dizem que Silvino mandou um recado para o comandante.

- Olha vocês estão muito atrevidos, os seus macacos estão ascendendo cigarros no meu cigarro.

 

                                  

 

 

                     Contada por Manuel Baltazar Maracajá - Ipsis litteris

 

 

 

 

 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

 

MEU ENCONTRO COM O CARIRI DA MINHA MÃE

 

Grijalva Maracajá Henriques

(tempos atrás)

 

Quase não lembro dos meus avós. Pequenas recordações ainda guardo até os dias de hoje, década de 2000, quando iniciei este trabalho.

O major era um mito para mim e minha mãe Vinú uma santa que parecia flutuar quando andava; E eu muito pequeno; ainda continuo sendo; mas, não esqueci a alegria que nos dava quando era anunciado que a gente ia passar férias no cariri. Morávamos na capital, João Pessoa. Meu pai, já chegava do trabalho, trazendo novidades. Já havia contratado um tal de carro de passeio ou carro de aluguel como na época se chamava este tipo de transporte. Existiam também uma tal de Sopa, Marinete, Jardineira ou um misto - mistura de caminhão com ônibus - com três cabinas, onde se alojava nos bancos de madeira mais de quinze pessoas, fora, a “passageira especial” do motorista que se aconchegava a sua esquerda. Na carroceria se amontoavam todos os tipos de mangáios, coisas inenarráveis.

Ainda hoje tenho gravado na lembrança as marcas das feras - GMC - BUICK – FORD – MERCURY – STUDEBAKER – CHEVROLET  - PLYMOUTH etc. Os automóveis eram todos pretos, não sei ainda hoje porque, seria luto? De quem? Ou seria ainda pela tal de blecaute, que minha mãe muito tempo depois me contou que na época do meu nascimento, tempo de guerra, até as janelas da maternidade São Vicente de Paula em João Pessoa, eram pintadas de preto e isso durou muito tempo e acho que este preto me acompanha até hoje.

Mamãe “fazia” as bagagens. Papai procurava quem ia tomar conta dos seus centos e tantos passarinhos, e eu, junto com os meus irmãos, os sonhos.

A difícil travessia de João Pessoa à Fazenda São Domingos, fazenda esta que foi sua última morada; parte dela, lhe fora doada pelo Sr. Avelino Henrique e sua mulher Joaquina, para que quando morressem, o Major Raulino tomasse conta de seus filhos; o qual cumpriu até a sua morte. (ouvi contar).

Passando por Campina Grande, para se ver os queridos familiares e inevitavelmente almoçar na casa de tio Heleno ou de Zé Narciso. Gastava-se quase a manhã inteira por causa da trepidação nas estradas, que muita gente chamava de costela de vaca por causa da formação transversal que a erosão causava, ainda hoje não sei por que motivo geológico ou outros ólicos que ainda ocorrem em vários trechos nas péssimas estradas.

Apesar de papai sempre escolher um automóvel dos melhores, a gente sempre enjoava muito. Mesmo usando toda técnica dos dois, o vômito era certo. Minha irmã Ceres era a primeira a dar o sinal de perigo e aí começava o tirinete: queima um fósforo e manda-a colocar na boca - gritava mamãe - e lá da frente muito distante, porque esses carros antigos eram muito compridos e confortáveis, o banco dianteiro, na nossa pequenez inocência parecia muito distante do nosso banco traseiro e papai gritava: respire fundo e coloque-a na janela, era exatamente o que a gente queria. O vômito surgia ligeiro e o desmantelo estava feito. Mais à frente, fazíamos, antes que a gente morresse uma parada num hotel chamado Café do Vento, onde papai nos oferecia um gole de quinado, o qual nos garantia que o enjoo se acabaria, mas a odisseia continuava até Campina.

De lá até a fazenda São domingos, as lembranças me fogem. Só depois fiquei sabendo, por tio Zé Narciso, que a estrada de Campina em diante passava por Soledade, Pendência e Gurjão. A única certeza que tenho, hoje, é que chegava lá montado nos meus sonhos, planejado durante o ano todo.

Esse Major, o qual sua vida vou tentar narrar é meu avô materno; pouco o conheci, poucas vezes lhe pedi a benção.

Era como todo bom caririzeiro, um destemido com as faltas das chuvas, enfrentava as secas, dizia minha mãe: olhando para o céu à procura de indícios nos nimbos ou cúmulos que às vezes apareciam no céu limpo, às vezes o céu se tornava igual ao campo cheio de carneirinhos brancos que a meninada ficava a contar, enquanto se esqueciam da falta de chuvas, que nunca chegavam.

A Fazenda São Domingos, onde primeiro tomei chegada, fica nos arredores de Gurjão, antigamente chamava-se Timbaúba do Gurjão.

Papai nos deixava nas companhias dos meus avós, tia e velhos moradores de saudosa memória. E voltava para a Capital e ao trabalho. Por isso, ficávamos literalmente a pé ou a jumento. Lembro-me bem, sem reclamação e sem vergonha uma aventura daqueles tempos: Uma bela manhã inventamos de ir a Timbaúba montados num jumento. Caetano, braço direito e pau para toda obra do Major foi quem selou o teimoso Ginbau; montamos: Eu no pescoço, Parsival, o mais velho dos três, na sela, comandando e Ceres na garupa se é que jumento a tem. Saímos pensando que estávamos montando algum ser mitológico; Pégaso era o meu, o do Veio talvez fosse o cavalo de Dom Quixote, Rocinante o de Ceres, como sempre reclamando e indecisa, ainda hoje não decidiu a montaria que desejava nos seus sonhos se galopava no cavalo Branco de Napoleão ou o famoso Bucéfalo de Alexandre o grande.  Íamos os quatro satisfeitos e boca aberta na maior alegria do mundo. Não andamos dez minutos e já avistamos a cidade; e entre nós e ela existia um rio seco muito arenoso, que parecia até a praia de Tambaú, era o velho rio timbaúba onde antigamente os desbravadores da Paraíba usavam à guisa de estradas. O animal aproveitando a descida e tentando pegar embalagem para subir a outra margem, disparou; a sela virou e ficamos de cabeça pra baixo, sob o pobre animal que pacientemente não se buliu mais.

Ainda guardo outras lembranças com muito carinho, nas minhas férias em são Domingos: Minha tia Nélia, a única solteira; de manhãzinha colocava um disco de Vicente Celestino, na velha vitrola de corda, onde se ouvia sua potente voz cantando - Acorda patativa e vem cantar. . . – e de repente como num passe de mágica na janela do meu quarto que se abria para o curral aparecia um copo quentinho de leite cru, tirado da vaca preta, escolhida por ela.

De outra feita fui escolhido pelo Major, não sei se por falta do ajudante oficial ou por que quisesse me mostra as coisas maravilhosas do campo. Saímos juntos, ele na frente e eu atrás até o curral que nesta época ficava mais à frente do outro lado da estrada que ia de Timbaúba a fazenda Pendência. A ordem era: controlar a entrada dos bezerros um por um, quando ele acabasse de tirar o leite da primeira vaca e assim sucessivamente, os primeiros bezerros passaram certo, aí, acho que a fome era grande, pois haviam passado à noite trancados em pequeno curral, ou se foi o medo que tive dos bezerros, pois tinha uns que eram maiores do que eu: só sei que de repente todos me atropelaram e passaram de uma só vez, botando tudo a perder, procurando suas respectivas mães e o major me procurando com os arreios nas mãos correndo atrás de mim até ser socorrido por minha querida tia Nélia a mais nova e que morreu solteira.

De vez em quando, ele selava seu cavalo melado me colocava ao pescoço do gigante, mandando segurar nas crinas, depois montava e íamos dá uma volta pela fazenda, - ainda hoje gosto de cavalo e da cor baio. - Passávamos em frete a casa de Chica, Inacinha, e dos outros irmãos, Caetano, Edwiges, Isabel e Joaquina atravessávamos campos e riachos, passávamos por pés de cardeiro, mandacaru, xiquexique, macambira, pereiros, aroeiras, angicos, touceiras de mofumbo, catingueiras raquíticas e tortas, verdes juazeiros, coroas de frades, cheias de sementes vermelhas, palmatórias cheias de espinhos, caminhos cobertos por pedras de todas as cores e formas, que o cavalo ia driblando como podia. Voltava feliz, só pensava como ia contar aos meus coleguinhas, na volta às aulas do jardim de infância, no Liceu Paraibano. Pois, nesta época, dessas minhas primeiras lembranças, morava a Rua Camilo de Holanda em frente ao velho Liceu. Esta casa era de propriedade de meu pai, ao lado existiam dois grandes jambeiros, (ainda hoje adoro jambo) atrás, o quintal era dividido em dois por uma cerca com um portão de madeira. Esta casa ficava em uma esquina ainda hoje existe com pequenas modificações.

Da sua casa, na fazenda São domingos, só me lembro de uma espreguiçadeira de madeira e com pano listrado, uma escarradeira de louça e uma bacia de lavar mãos que formava um conjunto, uns retratos de pessoas nas paredes, que devia ser dos seus pais e avós, uma mesa grande com gavetas e pratos de ágata esparramados, onde comíamos xerém pisado, num velho pilão que ficava fora da cozinha, com leite novinho tirado quase na mesma hora, biscoitos que fazia com muito carinhos em vários formatos, tinha também barricas de madeira que meu avô comprava com bacalhau e que depois eram usadas para conservar carnes de porco untadas com a banha do próprio e que durava por vários meses. Como também a gostosa coalhada, que ele chamava de soro da vida, tudo servido pela minha avó, que carinhosamente, todos a chamavam de mãe Vinú. Num quarto ao lado meio escuro, ficava minha bisavó, mãe do major, já com mais de cem anos, fumando seu cachimbo e chamando nomes com todo mundo, pois já estava caducando – Madrinha Mãezinha – como era conhecida, não chegávamos perto, pois tínhamos medo, vivia sempre reclamando em voz alta. Conta minha prima Norma, que quando em momentos de lucidez ela dizia que antigamente quando se tinha noticia de cangaceiros, seu pai colocava todos os filhos menores em baixo de tigelas para escondê-los. Esta minha querida prima quando pequena era muito “impossível”, tinha a mania de apertar os velhos e decaídos peitos da minha saudosa bisavó, e ela gritava sempre: Diabo! Diabo! Era fato real que sempre que via meu tio Zé Narciso mandava que ele colocasse um cabaré (acho que ele tinha um jeitão pra isso mesmo, pois sempre foi um eterno namorar e bom dançarino). E nas suas lembranças que ninguém sabe de onde vinham também costumava gritar com sua nora, minha avó. Ói o padre, Vinú!

Fui embora. Ainda hoje não parei de ir.

Cresci sem mais contatos com meus parentes caririzeiro, pois fomos morar em outras cidades e em outros estados, e só de vez em quando, nas quatro festas do ano, missa de sétimo dia, enterro ou velório é que nos encontrávamos.