A RUA QUE NÃO ACONTECEU
Robério Maracajá (in memoriam)
Aquela
manhã não era do meu tempo, muito mais antiga. Uma manhã velha fazendo-me
reconhecer a marca das idades, como se me revelasse páginas amarelecidas pelo
tempo. A rua, a calçada, o casario, os passageiros, tudo ancestral. E a
inquietação minha por sentir-me novo, recente, uma violência dentro daquelas
imagens remissivas.
O menino vinha ao meu encontro, uma paródia de meninos anteriores, olhos mortos
de pálpebras imóveis, passos cansados de séculos, uma imagem recém – saída de
um calendário esquecido. Um vulto sem emoções como uma estampa desbotada. Uma
agressão ao meu tempo de barco sobre ondas azuis e iluminadas. A dor de um
encontro absurdo, indesejável.
O casario abria as janelas, olhos de múmias, bocas desdentadas de palavras,
hálito de recantos escondidos no silêncio das paredes assombradas de vazios. E
eu me via naqueles interiores e assustavam-me os meus habitantes, então
reencarnando todos os meus eus. Um pavor maior, vendo-me em tantas posses, meus
olhos de infinitas dimensões, as mãos de centenas de dedos, todas as minhas
almas que não assumi.
O menino e o casario completavam-se à sombra das árvores que nem existiam mais,
ramos de aves sem pouso, o corpo dos troncos maltrapilhos, raízes contorcidas
no leito de orgasmos incompletos. Os jardins anêmicos sem as rosas de dezembro,
asas de borboletas esfarrapadas, zumbis de cores secas, cigarras de cantorias
estiadas, uma vertigem.
O menino era a alma das árvores, dos pássaros e do casario e me roubava do meu
tempo, violentando a minha idade, agora um aborto desmembrado, dispersado por
caminhos perplexos. Afundava o meu barco de águas azuis e iluminadas, era a
minha morte em profundezas agoniadas. A agonia dos meus habitantes e dos meus
despovoados. A angústia das minhas casas desdentadas e de bocas sem palavras,
das árvores sem aves, dos meus olhos de múmia, de um hálito de silêncio.
Um violino, um piano, um violão vinham das noites desaparecidas, de uma sala
nenhuma, de uma sacada qualquer, onde uma moça qualquer premia os seios e o
coração, uma serenata cortada ao meio, numa meia noite. E as fantasias /
fantasmas, no gume da rua nua, apedrejavam telhados desalmados.
Aquela manhã, dia / noite, que não era do meu tempo, intrometeu-se em mim como
uma noite desperdiçada. Carregando todos os meus escondidos e indesejados. Pela
primeira vez, recusei uma manhã, desacordando-me. Um amanhecer amarelo, fosco,
esfumaçado, idoso. Um acorde de restos embaralhados, confusos, sem fronteiras,
na alma e no tempo.
Aquela manhã que nunca existiu e, se existiu, foi tanto que não havia mais nada
além dos olhos mortos do menino espiando de dentro de um velho calendário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário