JÚLIA
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)
Júlia, a Negra Júlia, não havia
nascido para brincadeira. Virara mulher antes do tempo e não queria negócio com
gente pobre. Gente pobre que prestasse só existia mesmo ela; e mesmo admirava o
contraste das classes sociais. Só se vestia de branco ou roupas claras
combinando com os dentes iguais, completos e alvos como coco. Não dispensava
uma flor nos cabelos e nem uma cinta colorida, de longe já se sabia.
- Lá vem a Negra Júlia. E que Deus a
livrasse dos filhos. Poderia nascer um bastardo que lhe daria sério desgosto.
Também não falava em casamento que era
negócio pra gente rica. pobre casado só servia para aumentar a miséria.
Negra Júlia empregava-se numa casa e
noutra, mas logo dava nas vistas das patroas que a mandava passear.
E ao sair sempre dizia: - A senhora deveria
mandar era o seu marido. É patroa. O que ele me pede eu faço. E não é nada de
mais, aliás. Não lhe arranco pedaço.
Era
melhor ficar calada, antes que à Júlia se saísse com outras mais vexatórias. Em
segundo lá vinham às briguinhas.
- Não tem vergonha, Chico, de andar
pedindo as coisas a Negra Júlia. Por que não te das o respeito?
- Conversa daquela doida. Acha-me com
a coragem de me misturar com uma pobretona daquela? Só mesmo tua cabecinha
tonta pode sair semelhante pensamento.
- Pensamento, o que. Foi ela mesma
quem me passou nas ventas. Acha que eras tu que eu deveria mandar embora.
- Mulher atrevida e diabólica. Como
tem coragem de inventar uma fuxicada dessa.
- De qualquer forma, pedi a confiança
em ti. Bem que eu podia ver, pelo bamboleio, que aquela safada era perigosa.
- Já te disse que não tolero gente com
aquelas maneiras, basta vê-los para ter arrepios.
- Duvido! Com uma mulher daquela
qualquer um se perde. A bichota dá voltas no corpo igual a uma cobra de cipó.
Só por ser muito vulgar. Duvido que enjeite. De qualquer maneira, uma pessoa
daquela não me põe mais os pés aqui.
- Bobagem tua. É melhor em casa
reservadamente, do que lá fora às vistas do mundo.
- Não gosto de gaiatice!
A Negra Júlia era violenta nos seus
amores. Criara fama. Não se oferecia diretamente a ninguém. Bastava, contudo,
sua presença para assanhar qualquer um. Eram as suas formas, o seu jeitão de
mulher vadia e atrevida. Nenhuma casa de família a queria mais. Achavam até que
o delegado deveria proibir de andar pelas ruas naquele desespero de mulher
insaciável. Mas, quanto mais se falava, mas ela se exibia, balançando as curvas
do corpo, presas no vestido colado. Havia desassossego na cidadezinha. Se ao
menos a danada ficasse buchuda, daria um descanso às donas de casa. Mas nem
isso. A velha Totonha preparava-lhe garrafadas que impediam de pegar menino. E
o pior era aquela sua ojeriza pelos pobres, pois poderia ir se chafurdar com a
sua classe. Mas não. Só insultava gente de dinheiro, sadia e corada. Detestava magrecelas.
Não tinham sangue nem para eles, quanto mais para derretê-la. Já não trabalhava
mais e não lhe faltavam vestidos novos, perfumes e outros adereços femininos.
Era evidente que estavam gastando muito com ela e só podia ser os maridos sem
vergonha. Os apelos feitos às autoridades eclesiásticas falharam. Não era crime
andar pelas ruas decentemente. O melhor era esquecerem a Negra Júlia. O
esquecimento é um santo remédio. Além disso, sem emprego. A Negra Júlia teria
que arranjar um meio de sobrevivência.
- É pobre, mas também é gente.
Tranquem bem os seus maridos. Eu, por exemplo, não a procuro. E Júlia é mulher
sem outro trabalho. Tem quer ir mesmo vivendo dos seus encantos. As donas de
casa não a querem, mas os maridos querem.
- Mas seu Juiz, precisa-se de uma
solução definitiva. A Negra Júlia toma conta de tudo. A gente mesmo se fosse
homem estaria sendo tentada. A danada tem azougue é pior dos que visgo de jaca.
Pisou caiu!
- Vão ao delegado. Falem com ele.
Talvez ele possa conversar com a Júlia, dar-lhe uns conselhos e amenizar a
situação.
- Vamos lá, minha gente.
- Seu tenente, viemos aqui pedir
providencias contra a Negra Júlia. Anda aí pelas ruas botando feitiço em nossos
maridos. Não se tem mais sossego.
- A Negra Júlia! O que foi que ela
fez? Cometeu algum crime?
- Pior. Está intranquilizando as
famílias. Assanhando nossos maridos que não ligam mais para a gente.
- Mais isso é um descalabro senhoras: ricas,
educadas, de posição social elevada, com medo ou ciúme da Negra Júlia? Nem é
possível acreditar, este é assunto para tratar como Dr. Juiz.
De lá já viemos.
Então deixam a Negra Júlia em paz. Ela
também precisa viver e se divertir.
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