O CHORO DO
GADO
Parte III
Nas
chuvadas primeiras de novembro, o gado alimentado no capim agreste da chapada
Araripina a seca toda, sente o prenúncio do verde no sertão e procura as
ladeiras para descer às pradarias alcatifadas de beldroegas. É a carência
orgânica a exigir “despastagem”.
Nos
meus descuidados doze anos acompanhava a retirada para as fazendas daquele
nosso gado da planura da Araripe. Centenas de rezes enchiam o caminho com sobra
derramada pelo mato lateral, sempre acossada pelos vaqueiros da “esteira” para
que não se desencaminhassem. Meu pai na guia do rebanho com um vaqueiro para
evitar desvios, e eu no coice com outros vaqueiros, me julgando aprendiz deles.
Longos e afinados aboios a dar a nota plangente da viagem expressavam o
contentamento daqueles que faziam a função, misto de dever e prazer, obrigação
e lazer.
De
repente, no lambedor do Alto do Mulungu, terreno salgado constantemente lambido
pelos animais, um touro mestiço de pescoço grosso, por certo cioso da liderança
no rebanho, soltou forte urro multiplicado pelo eco e estacou a esfregar a
testa num pé de pau. A manada se comprimiu. As reses escavacando o chão com as
patas e torcendo as moitas com os chifres urravam e uma só vez. Berreiro
langoroso num crescente sincopado tomou conta do ar. Choravam convulsivamente
num choro coletivo. Os olhos úmidos da vacada lacrimejavam.
- O
gado chora, meu amo – disse Zé Felix se dirigindo a mim, e, instintivamente
retirou o chapéu de couro da cabeça e o colocou no peito, em reverência. Outros
vaqueiros o imitaram.
O
espetáculo indescritível, jamais vi igual! Retivemos os cavalos que montávamos
em respeito ao choro do gado ao cheirar ossada bovina recente, que os urubus
haviam limpado.
Aos
poucos, tangido de mansinho, o rebanho retornou a caminhada a passo lento,
cabeças abaixadas farejando o solo. Os aboios, espaçados, curtos, ecoavam
carregados de tristeza.
Eu
tinha doze anos de existência! O temo vem se acumulando sobre mim sem toldar a
memória daquela bucólica cena que me feriu a sensibilidade. Foi a cena mais
tocante e irremediavelmente inesquecível da minha vida rural-pastoril! Quando
me ocorrer transitar por ali, passo em silencio rememorando aquele quadro.
Nunca
vi humanos chorarem tão intensamente os seus mortos. A natureza tem mistérios.
E haja
saudade!
Napoleão
Tavares Neves.
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