terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

 

O CHORO DO GADO

Parte III

 

Nas chuvadas primeiras de novembro, o gado alimentado no capim agreste da chapada Araripina a seca toda, sente o prenúncio do verde no sertão e procura as ladeiras para descer às pradarias alcatifadas de beldroegas. É a carência orgânica a exigir “despastagem”.

Nos meus descuidados doze anos acompanhava a retirada para as fazendas daquele nosso gado da planura da Araripe. Centenas de rezes enchiam o caminho com sobra derramada pelo mato lateral, sempre acossada pelos vaqueiros da “esteira” para que não se desencaminhassem. Meu pai na guia do rebanho com um vaqueiro para evitar desvios, e eu no coice com outros vaqueiros, me julgando aprendiz deles. Longos e afinados aboios a dar a nota plangente da viagem expressavam o contentamento daqueles que faziam a função, misto de dever e prazer, obrigação e lazer.

De repente, no lambedor do Alto do Mulungu, terreno salgado constantemente lambido pelos animais, um touro mestiço de pescoço grosso, por certo cioso da liderança no rebanho, soltou forte urro multiplicado pelo eco e estacou a esfregar a testa num pé de pau. A manada se comprimiu. As reses escavacando o chão com as patas e torcendo as moitas com os chifres urravam e uma só vez. Berreiro langoroso num crescente sincopado tomou conta do ar. Choravam convulsivamente num choro coletivo. Os olhos úmidos da vacada lacrimejavam.

- O gado chora, meu amo – disse Zé Felix se dirigindo a mim, e, instintivamente retirou o chapéu de couro da cabeça e o colocou no peito, em reverência. Outros vaqueiros o imitaram.

O espetáculo indescritível, jamais vi igual! Retivemos os cavalos que montávamos em respeito ao choro do gado ao cheirar ossada bovina recente, que os urubus haviam limpado.

Aos poucos, tangido de mansinho, o rebanho retornou a caminhada a passo lento, cabeças abaixadas farejando o solo. Os aboios, espaçados, curtos, ecoavam carregados de tristeza.

Eu tinha doze anos de existência! O temo vem se acumulando sobre mim sem toldar a memória daquela bucólica cena que me feriu a sensibilidade. Foi a cena mais tocante e irremediavelmente inesquecível da minha vida rural-pastoril! Quando me ocorrer transitar por ali, passo em silencio rememorando aquele quadro.

Nunca vi humanos chorarem tão intensamente os seus mortos. A natureza tem mistérios.

E haja saudade!

Napoleão Tavares Neves.

 

 

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