SEU MARCOLINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
É bem certo que o
destino marca as pessoas. Uns nascem com sorte, outros sem a bicha. Seu
Marcolino veio ao mundo sem ela. Sem sorte para o casamento.
Antes de tentar o
noivado ou coisa parecida, quase se arrebenta no trabalho para conseguir os
meios para manter bem uma casa e dar conforto à família. E já andava na casa
dos trinta, quando se julgou apto. E não tinha dúvida de que isto ajudaria a uma
boa escolha.
Vivendo do comércio,
conseguira uma alentada freguesia e os lucros não lhe deixavam mais qualquer
dúvida no tocante aos seus bons propósitos. Meteu, então, os peitos na
empreitada. Até então, nem se preocupara com isso. Sigilosamente visitava
pensões de mulheres e nada mais. Casamento havia de ser dentro de sua
programação. E não tinha pressa, mas tinha medo de envelhecer sozinho na
solidão de uma casa vazia. Seria um fim de vida terrível. Sem o aconchego de
uma boa companheira, sem o carinho dos filhos, tinha certeza que morreria antes
do tempo.
Passou assim, a sair
mais, frequentar festas e reuniões. Vira pra lá, vira pra cá encontrou a mulher
dos seus sonhos, a Lucília, morena clara, de olhos azulados, cabelos pretos e
um corpo flexível desses de dar nó.
Lucília, embora,
procurando retrair-se, estava convicta que aquela era a sua vez. Aparentava
certo desinteresse para aguçar a paixão do Marcolino. Com o tempo veio à
aproximação definitiva. O noivado foi rápido, e o casamento esta pra sair. Casa
preparada, e quase que só faltava mesmo fazer a primeira feira. Estava nas
vésperas, quando Marcolino recebeu um bilhete com letras de mulher dando-lhe um
aviso lacônico:
“Não se case.
Fulana não serve para o senhor. Já era. Terá uma grande decepção.”
Marcelino
assustou-se. Aquilo poderia ser uma brincadeira de mau gosto. Havia muita gente
maledicente. Talvez alguma interessada nele, pois na verdade era um homem
habilitado a casamento. Em todo caso, cismou e fez uma carta acabando o
noivado, alegando que à última hora percebera que não lhe tinha amor
verdadeiro.
Lucília que não
era uma inexperiente; percebeu o verdadeiro motivo e, sabida como era, fez-lhe
também uma carta agradecendo a sinceridade: “Era melhor assim e evitaria, se
insistisse ouvir a verdade”.
Muitos comentaram
em surdina:
- Alguém desarmou
a esparrela. Afinal foi em tempo. Não merecia tamanho logro.
Mesmo assim
ninguém lhe disse nada. – A moça era de boa família não havia necessidade de
magoá-la. Com pouco tempo o episódio estava esquecido.
Marcolino partiu
para outra. Iria ser mais cuidadoso. Consultaria amigos, se necessário. Vai
daqui, vai dali, enamorou-se da Valquíria, moça de mais idade, mas com toda
aparência de honestíssima, sendo inclusive, zeladora da igreja. Religiosa a
toda prova e sempre recolhida. Comungava todos os domingos e Marcolino,
católico como era, dava-lhe todo valor. Queria mesmo ver se lhe daria com nova
advertência. Em todo caso, demoraria mais o casamento, de orelha ao vento.
Um mês depois, já
lhe parecia que não havia mais por que esperar para chegar ao noivado. O
comportamento de Valquíria era cada vez mais aprimorado. Mesmo assim, não
deveria ainda apressar o casamento. Quando mais conversava com Valquíria, mais
se aprofundava a convicção de que daquela feita estava no caminho seguro. Foi
indo assim até que correu o primeiro banho, que lhe parecia o banho da
felicidade. O padre Antônio, quando o encontrava, não deixava de felicitá-lo
pela excelente escolha.
Moça bonitona, bonitona mesmo dos pés à cabeça
e daquelas de seios pequeninos como ele adorava. Chegou até a comprar uma nova
cama de casal para evitar que Valquíria pensasse que estava deitada na cama
destinada à outra.
Ao correr o
segundo banho, quando Marcolino chega a casa, lá está uma carta enfiada por
baixo da porta e que dizia:
“Meu amigo
Marcolino. Da primeira vez ia cometendo um grande erro. Desta vez o atoleiro é
muito maior. Não se iluda. O senhor é um homem sério, um homem de bem e não
merece igual traição. Ouça a que lhe estou dizendo. Aquilo é pior do que um
velho buraco de formigueiro em tempo de chuva. Atola o boi e o vaqueiro de uma
só vez. De santa só tem mesmo a cara. Não lhe digo quem foi o cavouqueiro, mas
o senhor o conhece muito.”
Estava patente
que aquela letra de mulher, a mesma da primeira carta escondia uma segunda
intenção. Não era possível tamanha coincidência. Ou então seria azar de mais. E
não poderia crer que uma criatura tão católica, tão comungadeira, fosse uma
extraviada. Era melhor não dar ouvidos. E por que ter mais dúvida. Era alguém
interessado nele. Estava claro.
Correu o terceiro
banho e Marcolino encontrou desta vez um bilhete em letras grandes:
“Vai se atolar
mesmo? É pena. Não vá pensar que tenho qualquer interesse no senhor. Apenas sou
sua maior amiga. Sei que tem gente lhe atiçando e ele sabe bem porque está
fazendo isto. Dê no pé, Marcolino. Desta feita nem as orelhas vão ficar de
fora. Depois não se lamente, ou diga que não lhe avisaram. Se insiste, compre
logo um balão de oxigênio para não morrer afogado. O poço é profundo. Já
tiraram muita terra dele. E ainda estão tirando, como despedida. Fico rezando
pela sua sorte. Adeus.”
Marcolino botou
as mãos na cabeça. A coisa lhe parecia muito grave. Mas, como se poderia
mistificar tanto. A Valquíria, no dizer do padre e no comportamento, era uma
santa. Deus do céu! Que diabo de desculpa iria arranjar para novo descarte. E
logo uma pessoa do padre. Mas não era brincadeira, um formigueiro que atola o
boi e o vaqueiro. Não havia jeito senão cair fora.
E lavrou uma
carta macia, quase chorosa. Não a merecia. Não a queria tirar dos pés de Deus
para submetê-la a um sacrifício. Possuía um temperamento esquisito, cheio de
altos e baixos. E Deus que o livrasse de fazer-lhe a infelicidade. Estava,
pois, tudo, definitivamente acabado. Que o perdoasse, mas precisava ser sincero
e justo. Não se expõe uma santa às tormentas da vida.
E lá se foi pela
segunda vez, às esperanças de Marcolino. Seria melhor desistir de uma vez por
todas. Vender as duas camas e morrer solteirão. Não era brincadeira: - Corno na
folha duas vezes!...
Estranhava que os
amigos, mesmo os mais aproximados não lhe dissessem nada. E em parte a culpa
era sua. Ignorava tudo que se passava na cidade. Sua preocupação era só e só,
prepara-se para um futuro casamento. E os amigos, estavam certos. Não tinham
nada que se envolver com a vida alheia. O erro havia sido sua indiferença pelo
ambiente em que vivia. E era tal o seu recolhimento que ninguém tinha coragem
de fazer certos comentários e confidencias. Embora tarde, mas tinha que abrir
os ouvidos e os olhos, Nem atinava como diabo tinha podido viver assim até
aquele instante. Fora do mundo, só farejando lucros.
E com as duas
frustações, mais distanciados ficaram os amigos, talvez com, receio de
comentários. Era melhor desistir de uma vez. No entanto, por ora isto não
traria sérias consequências, mas na velhice, ficar só seria terrível. Em todo
caso, faria um intervalo, deixaria esfriar a cabeça e seria mais cauteloso,
principalmente porque o diabo está sempre nas encruzilhadas espreitando os
incautos. Não se esquecia dos elogios de seu vigário. O bicho deveria estar
metido naquela dança. Duvidar, por quê?
Marcolino foi a
uma pensão de mulheres para afogar as mágoas. E lá já sabiam que havia desfeito
o segundo noivado. Fizeram-lhe alguns comentários e Marcolino justificou-se à
sua maneira. Nesse dia passou da cerveja para o uísque, bebida mais forte e
capaz de dissipar suas mágoas. E teve até uma ideia; casar logo com uma
menina-mariposa, evitando assim novo engano. Mas, logo lhe veio à reflexão.
Casar por que, se elas estavam ali à sua espera, sem água benta e variáveis.
Burrada. Culpou o uísque. Saiu pela madrugada e de pouca distancia voltou para
não dormir só. Evitaria as recordações, especialmente a conversa fiada do
reverendo que pretendia amparar a zeladora.
Por mais de um
mês não cuidou do problema – casamento. E foi a parti daí que reiniciou suas
pesquisas. Casualmente encontrou-se com a dona Lia, viúva sem filhos e ainda
nova, nova e bonitona mulher. Ali estava a solução, pelo menos aparente. Então
não poderia mais haver engano. Tudo agora iria depender da Lia, que enviuvara
tão moça. A sorte é que não era rica. Botou-se a ela de faca e garfo. Não foi
difícil. Marcolino noivou logo e marcou o casamento para breve. A casa estava
esperando. Nada melhor do que uma viuvinha sem filho.
Casaram-se e foi aí
que veio a surpresa danada. Marcolino caiu das nuvens. Pois não é que a Lia
estava intacta!
- Como foi isto,
Lia. Quase um ano de casamento e sem saber o que era o casamento.
- Má sorte minha
e sorte tua. O Florêncio não era de nada. Só prestava mesmo para fazer feira e
fazer-me companhia. Tinha pena dele, coitado. Tinha caído de uma escada as
vésperas do casamento e ficou inutilizado. Mas era um amor de homem. Fazia tudo
para me agradar, mas não deixava nem rastro. Creio que morreu de desgosto.
Marcolino não
tinha outro jeito se não acreditar no destino. Mas a surpresa maior viria
depois. Algum tempo depois de casada veio à confissão de Lia: Era ela quem
advertia Marcolino. Não que, naquela fase se interessasse em casamento, mas
unicamente para evitar que alguém passasse pela frustração que havia passado
com o seu casamento. E pior ainda, pois, em vez de ficar apenas privado, como
lhe acontecera, de realizar o seu melhor sonho, Marcolino sofreria a decepção
de ser iludido e, no último caso, com a conivência do padre, numa sujeira sem
nome. Lia conhecia bem a vida das duas nos seus amores secretos.
- Ah! Lia,
sinto-me, agora, com um grande alivio na consciência. Não imaginas como me
angustiava a ideia de que poderia ter sido desleal e injusto. A pessoa que me
avisava poderia ter outras intenções.
- Ora, meu
ex-marido, contava-me tudo com o fim de evitar que mantivesse ligações com
qualquer uma delas. Tua primeira noiva estudava na capital, morando numa pensão
de moças. Foi aí que estudou demais... Aperfeiçoou-se em “fisiologia
anatômica”... E não largou mais... A segunda, a zeladora, segundo as más
línguas, rezou demais... E ainda deve continuar rezando. E muito católica e resta demais o senhor vigário...???
*O conto faz parte do livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
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