quinta-feira, 12 de março de 2015

COMO MUDAM AS COISAS

COMO MUDAM AS COISAS...

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Adriano já marcava vinte e quatro anos e durante toda sua vida, comia e vestia do trabalho alugado.
            Suava feito burro de carga e não saia daquele estado de vida lastimável, até que certo dia estava na roça colhendo milho do patrão quando debulhou uma espiga, dessas bem grandes e cheias e foi aí que lhe saltou da cachola aquela idéia estranha de ficar rico ou pelo menos não depender de ninguém. Adriano lembrou-se que aquela espiga de milho havia se originado de um carocinho de milho apenas. E que às vezes saem duas boas espigas.
            Pois é, se um caroço produz também outros, porque vivia marcando passo. Era só plantar milho, cuidar direitinho e começar a juntar dinheiro. Uma bobagem.
Deliberara trabalhar no eito para assegurar-lhe a bóia e plantar sua roça. Roçou o mato, arrancou a tocaria miúda, esperou as chuvas e plantou. E faz mais. Em cada cova de milho juntou dois caroços de fava. Semeou jerimum e melancia. Os outros faziam e tinham fartura. Na região não faltava chuva. E Adriano não perdia sábados e domingos. Trabalhar em dias santos não podia ser pecado. Pecado seria falar da vida alheia, tomar cachaça e fazer distúrbios. Isso sim.
Adriano desaparecera de circulação. Os companheiros que bebiam às suas custas, não entendiam aquela transformação. E resolveram procurá-lo e fazê-lo voltar.
            - Que nada. Não tenho mais tempo para essas coisas. Não quero mais dever a ninguém e vou deixar de trabalhar alugado.
            - Quer dizer que irás ficar rico...
            - Isso mesmo, se Deus me ajudar. Não quero mais trabalhar só para os outros. Cansei de ser miserável.
            Adriano colhera as suas lavouras. Pagou o arrendamento e o resto do dinheiro guardou-o debaixo de sete chaves. Mais um ano ou dois e estava fora do aluguel. Ampliou a roça o quando lhe foi possível. Contou os grãos de uma espiga de milho. Mais de 600 caroços, um por um. Parecia até brincadeira. Vendia tudo quanto produzia. Precisava era de dinheiro. Só a partir da terceira safra, deixou o alugado. Já era outra espécie de gente. Compraria um pedaço de terra, faria uma casinha e se passaria para lá com a mãe e a irmã já mocinha. Um ano depois pisava no que era seu.
            Adquiriu um terno de cabras, com um bodete para cruzar. Era assim que se começava. Quando o bode bodejava no chiqueiro à noite, sentia o gosto de ser proprietário e não mais quis trabalhar no eito.
            Apareceram as primeiras crias. O rebanho aumentava e apareceram os primeiros queijos de coalho de leite de cabra. Parecia até um sonho. No ano seguinte comprou mais uma dúzia de cabras com crias, escolhidas a dedo. Estavam ricos. Pela manhã o potinho de leite era dividido. Leite para o cuscuz e leite para o queijo que era vendido no povoado.
            - Queijos alvinhos e disputados. Onde havia notícias de uma boa cabra leiteira, tentava logo comprá-la. Das melhores cabras conservava as fêmeas e separava o mais nutrido para reprodutor. Havia de fazer uma raça de cabras leiteiras. Vendia os machos de descartes e comprava mais novilhas. Plantou uma boa roça de palmas para alimentar o rebanho no verão. Diversificou as lavouras. Além do milho, fava, feijão, cultivava também algodão.
            O milho era a lavoura principal.
            Dava-lhe pouco trabalho e havia sido sua inspiração. Do milho separava o de qualidade inferior e arraçoava as cabras. Queria todas gordas. O milho fazia milagres. Mandou construir um carro de bois. Adquiriu dois garrotes e amansou. O terreiro cheio de galhinhas dava-lhe ovos e frangos para o mercado. O milho era da lavra. Tornou-se dentro de pouco tempo o maior e melhor criador de caprinos. Os vizinhos criavam bode à lei da natureza. O alimento era aquele que existia no campo. Era aquele descalabro. A fome campeava e dizimava. Tratar de bode era muito luxo. Adriano já sabia e preparava-se para comprar cabras magras e baratas. Tratava-as em separado. E plantava mais milho e estendia a cultura de palma.
            - Vai se afundar, o Adriano. Dando milho a cabra e ração de palma!
            - Vão ver o estouro.
E Adriano calado, comprava o quanto podia. Não lhe faltava criação gorda para o mercado. Conservava o mato das caatingas onde o rebanho aproveitava a rama e as folhas fenadas.
Adriana, a irmã, era seu braço direito. Durante as festas iam à cidade, luxando. Adriana de anel nos dedos e volta de ouro nem parecia uma matuta, irmã de Adriano, o trabalhador alugado. Nem era feia, nem bonita, mas uma simpatia de causar inveja. Risonha, desperdiçava alegria. A mudança de vida tornou-a comunicativa e feliz.
            Não lhe faltava cortejadores. Mas Adriana parecia não entender e deixava a todos confusos. Era igual com todo mundo. A mãe prestava-lhe atenção. Sabe como são as mães; pensam sempre na felicidade dos filhos. Era muito natural que se preocupasse com Adriana. Achava que estava na idade de ter um namorado, pensar em casamento. E de leve, fazendo voltas na conversação, tocou no assunto.
            - Aqueles moços pareciam interessados em ti, menina.
            - Talvez, não. No entanto nenhum me despertou qualquer interesse. Gostei de todos apenas como amizades. Foi bom conhece-los, só isso. Meu coração estava longe de pensar no namoro. Meus namorados estão lá na roça. O campo, as cabras, as árvores, os passarinhos, mamãe e o mano. Sinto-me tão feliz assim que nem quero pensar noutra coisa. Não é que me esforce em me contrariar para ser como sou. É uma coisa natural, espontânea. Depois, casamento é uma balança. Pende para um lado ou para outro, dependendo da sorte. Poderá ser que mais adiante sinta algum desejo. Nunca se deve bulir com a felicidade que sente. Imagine só casar, ter um marido exigente, ciumento ou desses que fazem da mulher um traste qualquer. Veja Dilene, coitada. O marido é um extravagante, um trapo. Parece que ela nem existe, a não ser para cuidar da casa e dos filhos. Todos os anos com aquele barrigão, aleitando os filhos, atirada para lá como se fosse um caco sem serventia. E nem pode largá-lo porque não tem para onde ir, nem como viver. Não, não quero me ariscar. É melhor solteira, independente, livre com o coração aberto, no seu lado. Sei que a senhora não quer se ver livre de mim.
            - Deus que me livre de pensar nisso. Também tenho medo. Olha aí. Teu pai foi uma ótima criatura. Pobre, mas era honesto e bom. Pois bem, Deus o levou e fiquei só com vocês dois. Para criá-los só tinha mesmo o amor de mãe. O que temos hoje foi teu irmão que adquiriu. Se não fosse ele o que seria de nós. E ainda hoje é um solteirão. E já tem dito muitas vezes que também não deseja se casar. Vai ser a casa dos solteirões.
- Ora, mãe. Se a gente se casa, a senhora não vai querer morar em casa de filho, nora ou genro. Então ficaria melhor como está. Quase sempre se fala das sogras, com ou sem razão, embora existam muitas e muitas sogras que são umas santas. Além disso, as pessoas mais idosas não se acomodam mais com as peraltices das crianças. Gostam de tranqüilidade, de um ambiente calmo. A meninada não respeita os desejos de ninguém. Não sabe o que é obediência. Quanto mais se reclama, mais se endiabra E sabe de uma coisa, eu também não teria paciência, logo, o melhor mesmo é ficar solteirona. Não será brincadeira aguentar meninos levados, um marido chato, mandão, gritador e mulherengo. A mulher tem que ser uma santa, mas eles podem cair no mundo andar com as descaradas, chegar a casa fedendo a bodum e não ter nada. Comigo, não seria assim. Logo na primeira vez o botaria para fora aos pontapés.
A Dilene é uma tola. O safado do marido vive metido com mulheres e ela faz que nem vê. Botava-lhe logo uma dose de formicida. Amanheceria de olho vidrado. Só porque a pobre é uma desvalida, faz o que quer. “Comigo, não, seu Napoleão”. Já tive vontade de dizer isso a ela. Aguentar tudo aquilo a troco de comida e de uma cama para dormir. Essa não!... Preferia pedir esmola, pelas casas, dar os filhos, mas a inocente suporta tudo com uma paciência de Jób.
Sabe mãe, vou alertá-la. Quando não tiver o que comer, a gente dá. Aquilo é uma pomba lesa...
- Deixa pra lá Adriana.
- Não mãe, a gente deve proteger os inocentes. A senhora já viu como anda a coitada? Está amarelinha de sofrer com aqueles dois filhos. Nós mesmos poderíamos criá-los. O bicho é um canalha. Vá lá que não bote fornecida na comida, mas, que o largue. Mas, vai ver o que vou dizer.
- O que, menina doida?
- Pra começar vou mandar o Rosendo dar-lhe uma surra, lá mesmo na casa das quengas. O Rosendo é bom nessas coisas. Levanta uma briga e desanda-lhe o pau. Pode ser até um santo remédio. O cabra Rosendo sabe fazer essas coisas. Nem digo nada a Dilene. Ela poderia não gostar. Dizem que têm mulheres que gostam de sofrer e até de apanhar. Como tenho dúvidas se ela é dessa, vou tentar salva-la.
- Deixa pra lá, Adriana. Depois se eles descobrem o teu irmão tem que entrar na dança.
- Quem? Rosendo. Aquele é treinado e curado. Alem disso é amigo da polícia. Nunca teve nada. O que faz é bem feito.
- Sei que isso é brincadeira tua.
- É, mãe. Ia lá fazer uma coisa dessas. Mas, que dá vontade, bem que dá, não acha?
Passaram-se os dias e a mamãe de Adriana nem se lembrava mais de nada, quando correu a notícia.
- Uma briga dos diabos, lá no “frega”. O Adonias levou uma surra de quebrar ossos. Foi levado pra casa nos braços. Dizem que queria tomar a mulata que Rosendo tinha um xodó. Ficou moído. Mijou-se todo. Foi uma coisa feia. E não teve quem pudesse apartar, nem valer o coitado.
- Vem cá, Adriana. Tu havias prometido... Que coisa, minha filha. E agora, se descobrirem?
- Fui eu não, mãe. Aconteceu por acaso. Juro. Mas foi bem merecido. Vamos visitá-lo, pois a coitada da Dilene deve estar sem saber o que fazer, vendo o seu maridinho gemendo e chorando.
- E tem cara para isso, Adriana?
- Mãe, já jurei que não fiz nada!
- Pensa que me engana...
- Tou enganando não. Quero é ver a cara do bicho e se a coisa foi como estão dizendo.
- Bom dia, Dilene. Como vão os meninos? Vimos ver se precisas de alguma coisa.
E ouviram gemidos.
- Alguém doente, Dilene? E nem nos disse mulher. Sabes que os vizinhos são para se ajudarem. Não tenhas acanhamento.
- É. Foi o Adonias, pegou uma gripe... Geme por qualquer coisa, coitado.
- E a gente pode vê-lo?
- Pode. Está lá todo abafado, tossindo e gemendo.
 E entraram de camarinha adentro. Uma coisa feia. Manchas roxas na cara, um olho estuporado, o nariz vermelho e inchado.
- Mas seu Adonias, que gripe danada de forte é essa? Ave Maria. Dessas nunca tinha visto. Santo Deus das Alturas. Está tomando algum remédio?
- Por ora não. Só um chazinho que a Dilene me deu. Também não tenho dinheiro para comprar. São coisas da vida. Se ganha pouco e a vida está pelos olhos da cara. Ai, ai, ai...
- Calma, seu Adonias. A gripe é forte, mas passa. É questão de repouso e quem tem em casa uma santa igual à Dilene, não tem medo de nada.
Adonias baixou a vista, isto é, tentou fazer. A inchação da cara não deixava.
- É. Dilene é uma santa!
Mas nesse momento, entra-lhe de camarinha adentro um velho companheiro de farras do Adonias, e foi logo destampando.
- Como está Adonias? Foi um pau grosso. É pena que não tivesse como se defender. O satanás do Rosendo estava como um cão. Fiquei de longe e pensei que o cabra ia te matar na lenha. Também, devias ter corrido como eu. Também não tinhas que te meter com a mulata daquela peste. Sabe-se que ele só bota para quebrar. E o cabra não teve uma Ave-Maria de penitência. Anda aí pela rua esgravatando os dentes. E ainda mais. Diz que ainda vai te encontrar na “zona”. O bicho é atrevido. A polícia apoia tudo que ele faz e até acha graça. Passei por lá. Era só que comentavam e debaixo de risadagem. O Rosendo no meio. Vamos mudar de paróquia. O vigário dali é o Rosendo... Levanta-te logo que a vida é curta.
- Conte com a gente seu Adonias. Cure-se logo de sua “gripe”. E cuidado com o tempo, para não apanhar outra gripe. Um pai de família não pode adoecer.
Foram três semanas de molho, sarando as pisaduras. Adonias não mudava mais o itinerário. Era de casa para a oficina e da oficina para casa. Dilene fazia de conta que nem percebia a mudança. Adonias só saia acompanhado pela mulher e os filhos. O dinheiro começou a sobrar para uma alimentação mais apetitosa e melhores roupas.
- Vamos sair Dilene?
- Agora não. Tenho muitas ocupações.
- Não sei sair sozinho. O passeio não tem graça, Dilene. Deixa os afazeres para depois. Há tempo para tudo. E esse solzinho de manhã é muito saudável.
Adonias largou seus velhos hábitos, tornou-se caseiro e um companheiro fiel à esposa e dos filhos. Estava necessitando era de uma correção. E o professor foi o Rosendo. Não sabia ler nem escrever, mas era mestre em ensino prático.
- Estava vendo aí mamãe, como anda o Adonias. A mulher já parece outra. Corada, bem arrumada, cheia de vida. É pena que eu não tenha participado na transformação.
- Pensas, por acaso, que não sei que foi idéia tua. Estás muito enganada.
- Só se foi transmissão de pensamento. Foi pura coincidência.
- Queres me fazer de tola. É melhor mesmo não te casares. Serias capaz de botar formicida no marido...
- De qualquer maneira, foi um santo remédio. Salvou-se a família da Dilene. Aposto que o Adonias não entra mais em outra fria...
Anos depois Adriana ainda estava solteirona. Salustiano vivo, e ainda maciço, botou-se pra ela. Era um figurão. Embora com poucos haveres, vivia bem. Os filhos já estavam casados.
- É posso casar-me com você, seu Salustiano, mas tem duas condições: Primeiro tolerar mamãe e tratá-la bem, caso o mano se case. Segundo, viver somente para mim. Se trastejar vai entrar no formicida “Tatu”. É um ótimo remédio para “bandoleiros”.
- O que é isso dona Adriana? Quem não conhece minha conduta.
- Sei lá, as pessoas mudam de uma hora para outra. É melhor prevenir do que curar. E a cura é braba. Nunca havia pensado em casamento. Somente nesses últimos tempos comecei a ter medo de ficar sozinha. Em todo caso é melhor só do que mal acompanhado.
- Em todo caso, para a sua segurança, antes de casar, ofereço-lhe uma latinha de formicida “Tatu”...
- Pois sim! Brinque e não dê conta do recado. Sou mulher forte, sadia e com muitas reservas. E é perigoso acordar o diabo que está dormindo... Antes do café, do almoço e do jantar, terá que assinar o ponto. Portanto, prepare a caneta. Se vir que a tinta está acabando é melhor desistir...
- A caneta é antiga, mas escreve ainda e bem legível.
- Bem, vai-se ver...
- Se quiser faço logo a minha assinatura...
- Já me vem com descaramento, não é?
- Foi à senhorita que puxou o assunto.
- Não se faz nem um risco. Aguarde-se. Mas não se confie tanto em caneta velha...
- É velha, mas é Parker...


Em. 18.4.85.
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
(Histórias quase verdadeiras)


                                                                                        
                                                                                             


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