COMO
MUDAM AS COISAS...
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Adriano já marcava vinte e quatro
anos e durante toda sua vida, comia e vestia do trabalho alugado.
Suava feito burro de carga e não
saia daquele estado de vida lastimável, até que certo dia estava na roça
colhendo milho do patrão quando debulhou uma espiga, dessas bem grandes e
cheias e foi aí que lhe saltou da cachola aquela idéia estranha de ficar rico
ou pelo menos não depender de ninguém. Adriano lembrou-se que aquela espiga de
milho havia se originado de um carocinho de milho apenas. E que às vezes saem
duas boas espigas.
Pois é, se um caroço produz também
outros, porque vivia marcando passo. Era só plantar milho, cuidar direitinho e
começar a juntar dinheiro. Uma bobagem.
Deliberara
trabalhar no eito para assegurar-lhe a bóia e plantar sua roça. Roçou o mato,
arrancou a tocaria miúda, esperou as chuvas e plantou. E faz mais. Em cada cova
de milho juntou dois caroços de fava. Semeou jerimum e melancia. Os outros faziam
e tinham fartura. Na região não faltava chuva. E Adriano não perdia sábados e
domingos. Trabalhar em dias santos não podia ser pecado. Pecado seria falar da
vida alheia, tomar cachaça e fazer distúrbios. Isso sim.
Adriano desaparecera de circulação. Os
companheiros que bebiam às suas custas, não entendiam aquela transformação. E
resolveram procurá-lo e fazê-lo voltar.
- Que nada. Não tenho mais tempo
para essas coisas. Não quero mais dever a ninguém e vou deixar de trabalhar
alugado.
- Quer dizer que irás ficar rico...
- Isso mesmo, se Deus me ajudar. Não
quero mais trabalhar só para os outros. Cansei de ser miserável.
Adriano colhera as suas lavouras.
Pagou o arrendamento e o resto do dinheiro guardou-o debaixo de sete chaves.
Mais um ano ou dois e estava fora do aluguel. Ampliou a roça o quando lhe foi
possível. Contou os grãos de uma espiga de milho. Mais de 600 caroços, um por
um. Parecia até brincadeira. Vendia tudo quanto produzia. Precisava era de
dinheiro. Só a partir da terceira safra, deixou o alugado. Já era outra espécie
de gente. Compraria um pedaço de terra, faria uma casinha e se passaria para lá
com a mãe e a irmã já mocinha. Um ano depois pisava no que era seu.
Adquiriu um terno de cabras, com um
bodete para cruzar. Era assim que se começava. Quando o bode bodejava no
chiqueiro à noite, sentia o gosto de ser proprietário e não mais quis trabalhar
no eito.
Apareceram as primeiras crias. O
rebanho aumentava e apareceram os primeiros queijos de coalho de leite de
cabra. Parecia até um sonho. No ano seguinte comprou mais uma dúzia de cabras
com crias, escolhidas a dedo. Estavam ricos. Pela manhã o potinho de leite era
dividido. Leite para o cuscuz e leite para o queijo que era vendido no povoado.
- Queijos alvinhos e disputados.
Onde havia notícias de uma boa cabra leiteira, tentava logo comprá-la. Das
melhores cabras conservava as fêmeas e separava o mais nutrido para reprodutor.
Havia de fazer uma raça de cabras leiteiras. Vendia os machos de descartes e
comprava mais novilhas. Plantou uma boa roça de palmas para alimentar o rebanho
no verão. Diversificou as lavouras. Além do milho, fava, feijão, cultivava também
algodão.
O milho era a lavoura principal.
Dava-lhe pouco trabalho e havia sido
sua inspiração. Do milho separava o de qualidade inferior e arraçoava as
cabras. Queria todas gordas. O milho fazia milagres. Mandou construir um carro
de bois. Adquiriu dois garrotes e amansou. O terreiro cheio de galhinhas
dava-lhe ovos e frangos para o mercado. O milho era da lavra. Tornou-se dentro
de pouco tempo o maior e melhor criador de caprinos. Os vizinhos criavam bode à
lei da natureza. O alimento era aquele que existia no campo. Era aquele
descalabro. A fome campeava e dizimava. Tratar de bode era muito luxo. Adriano
já sabia e preparava-se para comprar cabras magras e baratas. Tratava-as em separado. E plantava
mais milho e estendia a cultura de palma.
- Vai se afundar, o Adriano. Dando
milho a cabra e ração de palma!
- Vão ver o estouro.
E Adriano calado, comprava o quanto
podia. Não lhe faltava criação gorda para o mercado. Conservava o mato das
caatingas onde o rebanho aproveitava a rama e as folhas fenadas.
Adriana, a irmã, era seu braço
direito. Durante as festas iam à cidade, luxando. Adriana de anel nos dedos e
volta de ouro nem parecia uma matuta, irmã de Adriano, o trabalhador alugado.
Nem era feia, nem bonita, mas uma simpatia de causar inveja. Risonha,
desperdiçava alegria. A mudança de vida tornou-a comunicativa e feliz.
Não lhe faltava cortejadores. Mas
Adriana parecia não entender e deixava a todos confusos. Era igual com todo
mundo. A mãe prestava-lhe atenção. Sabe como são as mães; pensam sempre na
felicidade dos filhos. Era muito natural que se preocupasse com Adriana. Achava
que estava na idade de ter um namorado, pensar em casamento. E de leve,
fazendo voltas na conversação, tocou no assunto.
- Aqueles moços pareciam
interessados em ti, menina.
- Talvez, não. No entanto nenhum me
despertou qualquer interesse. Gostei de todos apenas como amizades. Foi bom
conhece-los, só isso. Meu coração estava longe de pensar no namoro. Meus
namorados estão lá na roça. O campo, as cabras, as árvores, os passarinhos,
mamãe e o mano. Sinto-me tão feliz assim que nem quero pensar noutra coisa. Não
é que me esforce em me contrariar para ser como sou. É uma coisa natural,
espontânea. Depois, casamento é uma balança. Pende para um lado ou para outro,
dependendo da sorte. Poderá ser que mais adiante sinta algum desejo. Nunca se
deve bulir com a felicidade que sente. Imagine só casar, ter um marido
exigente, ciumento ou desses que fazem da mulher um traste qualquer. Veja
Dilene, coitada. O marido é um extravagante, um trapo. Parece que ela nem
existe, a não ser para cuidar da casa e dos filhos. Todos os anos com aquele
barrigão, aleitando os filhos, atirada para lá como se fosse um caco sem
serventia. E nem pode largá-lo porque não tem para onde ir, nem como viver.
Não, não quero me ariscar. É melhor solteira, independente, livre com o coração
aberto, no seu lado. Sei que a senhora não quer se ver livre de mim.
- Deus que me livre de pensar nisso.
Também tenho medo. Olha aí. Teu pai foi uma ótima criatura. Pobre, mas era
honesto e bom. Pois bem, Deus o levou e fiquei só com vocês dois. Para criá-los
só tinha mesmo o amor de mãe. O que temos hoje foi teu irmão que adquiriu. Se
não fosse ele o que seria de nós. E ainda hoje é um solteirão. E já tem dito
muitas vezes que também não deseja se casar. Vai ser a casa dos solteirões.
- Ora, mãe. Se a gente se casa, a
senhora não vai querer morar em casa de filho, nora ou genro. Então ficaria
melhor como está. Quase sempre se fala das sogras, com ou sem razão, embora
existam muitas e muitas sogras que são umas santas. Além disso, as pessoas mais
idosas não se acomodam mais com as peraltices das crianças. Gostam de
tranqüilidade, de um ambiente calmo. A meninada não respeita os desejos de
ninguém. Não sabe o que é obediência. Quanto mais se reclama, mais se endiabra
E sabe de uma coisa, eu também não teria paciência, logo, o melhor mesmo é
ficar solteirona. Não será brincadeira aguentar meninos levados, um marido
chato, mandão, gritador e mulherengo. A mulher tem que ser uma santa, mas eles
podem cair no mundo andar com as descaradas, chegar a casa fedendo a bodum e
não ter nada. Comigo, não seria assim. Logo na primeira vez o botaria para fora
aos pontapés.
A Dilene é uma tola. O safado do
marido vive metido com mulheres e ela faz que nem vê. Botava-lhe logo uma dose
de formicida. Amanheceria de olho vidrado. Só porque a pobre é uma desvalida,
faz o que quer. “Comigo, não, seu Napoleão”. Já tive vontade de dizer isso a
ela. Aguentar tudo aquilo a troco de comida e de uma cama para dormir. Essa
não!... Preferia pedir esmola, pelas casas, dar os filhos, mas a inocente
suporta tudo com uma paciência de Jób.
Sabe mãe, vou alertá-la. Quando não
tiver o que comer, a gente dá. Aquilo é uma pomba lesa...
- Deixa pra lá Adriana.
- Não mãe, a gente deve proteger os
inocentes. A senhora já viu como anda a coitada? Está amarelinha de sofrer com
aqueles dois filhos. Nós mesmos poderíamos criá-los. O bicho é um canalha. Vá
lá que não bote fornecida na comida, mas, que o largue. Mas, vai ver o que vou
dizer.
- O que, menina doida?
- Pra começar vou mandar o Rosendo
dar-lhe uma surra, lá mesmo na casa das quengas. O Rosendo é bom nessas coisas.
Levanta uma briga e desanda-lhe o pau. Pode ser até um santo remédio. O cabra
Rosendo sabe fazer essas coisas. Nem digo nada a Dilene. Ela poderia não
gostar. Dizem que têm mulheres que gostam de sofrer e até de apanhar. Como tenho
dúvidas se ela é dessa, vou tentar salva-la.
- Deixa pra lá, Adriana. Depois se
eles descobrem o teu irmão tem que entrar na dança.
- Quem? Rosendo. Aquele é treinado e
curado. Alem disso é amigo da polícia. Nunca teve nada. O que faz é bem feito.
- Sei que isso é brincadeira tua.
- É, mãe. Ia lá fazer uma coisa
dessas. Mas, que dá vontade, bem que dá, não acha?
Passaram-se os dias e a mamãe de
Adriana nem se lembrava mais de nada, quando correu a notícia.
- Uma briga dos diabos, lá no
“frega”. O Adonias levou uma surra de quebrar ossos. Foi levado pra casa nos
braços. Dizem que queria tomar a mulata que Rosendo tinha um xodó. Ficou moído.
Mijou-se todo. Foi uma coisa feia. E não teve quem pudesse apartar, nem valer o
coitado.
- Vem cá, Adriana. Tu havias
prometido... Que coisa, minha filha. E agora, se descobrirem?
- Fui eu não, mãe. Aconteceu por
acaso. Juro. Mas foi bem merecido. Vamos visitá-lo, pois a coitada da Dilene
deve estar sem saber o que fazer, vendo o seu maridinho gemendo e chorando.
- E tem cara para isso, Adriana?
- Mãe, já jurei que não fiz nada!
- Pensa que me engana...
- Tou enganando não. Quero é ver a
cara do bicho e se a coisa foi como estão dizendo.
- Bom dia, Dilene. Como vão os
meninos? Vimos ver se precisas de alguma coisa.
E ouviram gemidos.
- Alguém doente, Dilene? E nem nos
disse mulher. Sabes que os vizinhos são para se ajudarem. Não tenhas
acanhamento.
- É. Foi o Adonias, pegou uma
gripe... Geme por qualquer coisa, coitado.
- E a gente pode vê-lo?
- Pode. Está lá todo abafado,
tossindo e gemendo.
E entraram de camarinha adentro. Uma coisa
feia. Manchas roxas na cara, um olho estuporado, o nariz vermelho e inchado.
- Mas seu Adonias, que gripe danada
de forte é essa? Ave Maria. Dessas nunca tinha visto. Santo Deus das Alturas.
Está tomando algum remédio?
- Por ora não. Só um chazinho que a
Dilene me deu. Também não tenho dinheiro para comprar. São coisas da vida. Se
ganha pouco e a vida está pelos olhos da cara. Ai, ai, ai...
- Calma, seu Adonias. A gripe é
forte, mas passa. É questão de repouso e quem tem em casa uma santa igual à
Dilene, não tem medo de nada.
Adonias baixou a vista, isto é,
tentou fazer. A inchação da cara não deixava.
- É. Dilene é uma santa!
Mas nesse momento, entra-lhe de
camarinha adentro um velho companheiro de farras do Adonias, e foi logo
destampando.
- Como está Adonias? Foi um pau
grosso. É pena que não tivesse como se defender. O satanás do Rosendo estava
como um cão. Fiquei de longe e pensei que o cabra ia te matar na lenha. Também,
devias ter corrido como eu. Também não tinhas que te meter com a mulata daquela
peste. Sabe-se que ele só bota para quebrar. E o cabra não teve uma Ave-Maria
de penitência. Anda aí pela rua esgravatando os dentes. E ainda mais. Diz que
ainda vai te encontrar na “zona”. O bicho é atrevido. A polícia apoia tudo que
ele faz e até acha graça. Passei por lá. Era só que comentavam e debaixo de
risadagem. O Rosendo no meio. Vamos mudar de paróquia. O vigário dali é o
Rosendo... Levanta-te logo que a vida é curta.
- Conte com a gente seu Adonias.
Cure-se logo de sua “gripe”. E cuidado com o tempo, para não apanhar outra
gripe. Um pai de família não pode adoecer.
Foram três semanas de molho, sarando
as pisaduras. Adonias não mudava mais o itinerário. Era de casa para a oficina
e da oficina para casa. Dilene fazia de conta que nem percebia a mudança.
Adonias só saia acompanhado pela mulher e os filhos. O dinheiro começou a
sobrar para uma alimentação mais apetitosa e melhores roupas.
- Vamos sair Dilene?
- Agora não. Tenho muitas ocupações.
- Não sei sair sozinho. O passeio
não tem graça, Dilene. Deixa os afazeres para depois. Há tempo para tudo. E
esse solzinho de manhã é muito saudável.
Adonias largou seus velhos hábitos,
tornou-se caseiro e um companheiro fiel à esposa e dos filhos. Estava
necessitando era de uma correção. E o professor foi o Rosendo. Não sabia ler
nem escrever, mas era mestre em ensino prático.
- Estava vendo aí mamãe, como anda o
Adonias. A mulher já parece outra. Corada, bem arrumada, cheia de vida. É pena
que eu não tenha participado na transformação.
- Pensas, por acaso, que não sei que
foi idéia tua. Estás muito enganada.
- Só se foi transmissão de
pensamento. Foi pura coincidência.
- Queres me fazer de tola. É melhor
mesmo não te casares. Serias capaz de botar formicida no marido...
- De qualquer maneira, foi um santo
remédio. Salvou-se a família da Dilene. Aposto que o Adonias não entra mais em
outra fria...
Anos depois Adriana ainda estava
solteirona. Salustiano vivo, e ainda maciço, botou-se pra ela. Era um figurão.
Embora com poucos haveres, vivia bem. Os filhos já estavam casados.
- É posso casar-me com você, seu
Salustiano, mas tem duas condições: Primeiro tolerar mamãe e tratá-la bem, caso
o mano se case. Segundo, viver somente para mim. Se trastejar vai entrar no
formicida “Tatu”. É um ótimo remédio para “bandoleiros”.
- O que é isso dona Adriana? Quem
não conhece minha conduta.
- Sei lá, as pessoas mudam de uma
hora para outra. É melhor prevenir do que curar. E a cura é braba. Nunca havia
pensado em casamento.
Somente nesses últimos tempos comecei a ter medo de ficar
sozinha. Em todo caso é melhor só do que mal acompanhado.
- Em todo caso, para a sua
segurança, antes de casar, ofereço-lhe uma latinha de formicida “Tatu”...
- Pois sim! Brinque e não dê conta do
recado. Sou mulher forte, sadia e com muitas reservas. E é perigoso acordar o
diabo que está dormindo... Antes do café, do almoço e do jantar, terá que
assinar o ponto. Portanto, prepare a caneta. Se vir que a tinta está acabando é
melhor desistir...
- A caneta é antiga, mas escreve
ainda e bem legível.
- Bem, vai-se ver...
- Se quiser faço logo a minha
assinatura...
- Já me vem com descaramento, não é?
- Foi à senhorita que puxou o
assunto.
- Não se faz nem um risco.
Aguarde-se. Mas não se confie tanto em caneta velha...
- É velha, mas é Parker...
Em. 18.4.85.
*O conto pertence ao livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
(Histórias quase verdadeiras)
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