quinta-feira, 19 de março de 2015

DEODONIO

DEODÔNIO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Quando Deodônio saiu da roça para freqüentar escola na cidade, já havia completado seus doze anos e tudo quanto sabia era o pouco que a mãe lhe havia ensinado em casa, nas horas vagas. Entretanto, sobre a vida do campo, menino de sua idade não teria lição a lhe dar. O que o preocupava era o internato, o afastamento de casa, o pai e a mãe longes dele. Entretanto, fora ele mesmo que pedira para ir estudar, para ser como era o filho do fazendeiro vizinho que já sabia ler qualquer livro ou revista que pegava. Era uma pena que não fosse para o mesmo colégio. Internou-se e lá ficou no meio de desconhecidos que lhe faziam perguntas e mais perguntas. Como se chamava, donde tinha vindo se era rico ou pobre, se tinha pai e mãe.
            Deodônio, mais rápido do que esperava ambientou-se. A coisa não era lá tão feia como pensara. Foi mandado para a divisão dos médios, meninada do seu tipo pela idade e pelo tamanho.
            Colégio de padre, com uma disciplina um tanto rigorosa, Deodônio só entranhava uma coisa que era rezar em todos os atos mais importantes. Deitar, levantar, refeições, missas. Não era habituado a rezar ajoelhado e só o fato de ter que se ajoelhar na taboa dura dos bancos demoradamente, fazia-o perder a graça. Os joelhos doíam como se estivessem em chagas. E o resultado é que não dava a mínima atenção às orações. Falou com o padre que não podia mais de ajoelhar.
            - Isso é somente agora, enquanto não crias calos. Depois de uns dois meses, não sentirás mais nada. Um rapagão forte como era ele, uma dorzinha nos joelhos não valia nada, e, além disso, era uma ótima penitência.
            - Não posso e não posso mesmo. Só se levar uma almofada.
            - É luxo. Deixa de conversa fiada.
            - Vou ficar sentado ou em pé. Só faço o que posso.
            - Tomarás um castigo. Oras ajoelhado em cima de caroço de milho.
            Chegou à hora da missa. Deodônio estava preparado para o que desse e viesse. Iria mostrar que não era filho de padre, nem de sacana nenhum.
            - Ajoelhe-se, moço! Não está vendo todos ajoelhados?
            - Estou sim senhor. Mas não posso. Vou ficar sentado.
            - Depois conversaremos.
            - É. Mais não me ajoelho. Não mandei fazerem bancos duros deste jeito.
            O padre fez um gesto com a mão para que se calasse e esperasse.
            Deodônio, nem viu mais para onde foi à missa. O padreca estava enganado com ele. Não era nenhum boboca, criado com mingau d’água e farinha azeda. Bem que havia pedido e explicado. Agora que se danasse com suas rezas e padre nosso, a ave Maria, e o credo e o ato de contrição. E nunca havia precisado deles pra nada. Nem naquele momento estava lhe valendo de nada. Havia chegado ali para aprender coisas úteis. Ler, cantar, escrever.
            Se quisesse rezar mais teria ido para o seminário, para onde vão os preguiçosos, os que não querem nada com trabalho.
            Depois da missa.
            - Vai me chamar o Deodônio, aquele sertanejinho malcriado Quero ensinar-lhe o caminho do bom viver. Está pensando que isto aqui é a casa de mãe Chica.
            - Pra que me querem. É melhor para ele, nem eu ir lá. Não vai resolver bulhufas. Só me ajoelho quando puder e bem entender. Não pedi a ninguém para rezar, mesmo por que até hoje as únicas pessoas que vivem de rezar são os padres. Diga a ele que pode tirar o cavalinho da chuva. Deodônio não vai lá não. Aliás, se ele é que tem negócio comigo, que venha. O caminho é o mesmo e do mesmo comprimento.
            O padre deu um esturro de se ouvir légua e meia.
            - Volte lá e me traga aquele atrevido pela orelha, ou pelas duas, dependurado como um morcego!...
            - Olha, o padre mandou te buscar. Vamos logo.
            - Vou porque quero. Ninguém me obriga, ora esta! Era melhor não ir.
            - Então, seu peralta. Desobediente, indisciplinado e atrevido, donde saiu você?
            Da casa de meu pai que sabe criar os filhos. Foi daí que saí. E fiquei logo sabendo que mandaram aqui para estudar e não para rezar. De reza já estou entupido e os joelhos podres. Não posso nem mais dobrar as pernas... E afinal o que vosmecê que de mim.
            - Ajustar contas.
            Não devo a corno nenhum. Nem eu, nem meu pai.
            - Vou te expulsar cabrito malcriado!
            Já vai tarde. Agora, tem uma coisa. Meu pai vai se danar, quando souber que me expulsam por que não agüento rezar de joelhos feridos. E nem tem pra que tanta reza. Lá na minha terra todo mundo vive bem sem essa rezaria toda. Reza não enche barriga e nem bota ninguém no céu. Tudo isto é conversa fiada, lorota de quem vive sem querer fazer força. Bem, resolva logo e avise a meu pai para vir me buscar. Enquanto isso vou assistindo missa sentado...
            - Mas, que bichotinho chato.
            - Aí! E vosmecê sabe o que é “chato”, um piolhinho que dá nas virilhas das pessoas. Pensava que padre não conhecia.
            - Vou mandar chamar o diretor do colégio, monsenhor Epifânio pra te tirar o sarro.
            - Pode me tirar outra coisa. Sarro quem tem é cachimbo e nem fumar, fumo...
            - Eu vou te pegar pelo gogo e dar-te uma lição.
            - Quem tem gogo é ema, seu tapado.
            Afinal o diretor chegou de cabeça para o ar, com a altivez de superior.
            - O que é que há padre.
            - Nada. É este peralta desobediente e respondão. Parece um bicho do mato. Quer ouvir missa sentado o tempo todo e já me disse coisas cabeludas.
            Esta vendo aí seu diretor, como é o palavreado dele. Coisa cabeluda. Acho que o senhor sabe o que é. E ainda que bancar o durão.
            - E porque não te ajoelhas como os outros, hem?
            - Olhe aí o senhor também, com esta história de “como os outros” Vote!...
            - Você é muito maledicente, seu capadócio.
            - Lá vem outra. Capadócio.
            - Bem, responde logo. Por que não te ajoelhas?
            - Vou mostrar.
            E Deodônio, arregaçou as calças e mostrou os joelhos em petição de miséria. Vermelhos, inflamados.
            - Como é, padre, o senhor viu isto?
            - Ainda não.
            - Pois então vou resolver a questão. O Deodônio só irá à missa quando estiver curado dos joelhos.
            - Não senhor, sou católico, apostólico, romano e não quero perder missa. Foi o que mais me recomendou minha mãe. E que mal faz em ficar sentado, fazendo minhas orações?
- Esta vendo aí, padre, pode exigir do mesmo um sacrifício deste. Deixe o Deodônio, sentado, de pé, como ele quiser.
- E os desaforos que ele já me disse, como vão ficar. Sem um bom castigo?
            - Ora, senhor diretor, padre é para perdoar. E, além disso, não toquei na mãe dele, não disse nome feio e nem ofendi a religião. Disse só umas bobagens com ele porque me aperreou.
            - Está certo senhor diretor. Farei o que o senhor determinar.
Padre Nilo, saía desapontado, mas não havia outra saída. Chegou à hora da missa e Deodônio lá estava em seu lugarzinho. Padre Nilo celebrava, mas não se esquecia de passar o rabo do olho em Deodônio, sentado e bem sentado. Deodônio também de olho cravado no altar e nele. Toda vez que o padre lhe botava os olhos, Deodônio fazia um gesto de macaquice. O padre mordia os beiços em tom de ameaça. No momento mais solene da missa, padre Nilo deu-lhe uma espiada e Deodônio fez-lhe uma careta. O cálice caiu da mão do padre, o vinho ainda não sacro derramou-se e foi aquela celeuma. O diretor estava assistindo a missa e não via Deodônio de frente. Foi socorrer o padre. Deveria estar com algum mal súbito.
            - Nada não, disse baixinho, foi o Deodônio, aquele pequeno demônio. Fez-me uma careta quando olhei para ele. Além do desrespeito o atrevimento.
            O diretor riu.
            - O senhor está achando graça?
            E olhou também para Deodônio. Lá estava ele de cabeça baixa, rezando o seu terço. Nem dava atenção à outra coisa.
- O menino até parece um santo. Comportamento exemplar...
- Fique escondido e verá o que ele me faz, quando ponho a vista nele.
O diretor fez que se ia e ficou na moita, de observação. Dentro de dez minutos, Deodônio fez dez gestos engraçados para o padre Nilo. Terminada a missa, o diretor veio ao padre Nilo.
Então, senhor diretor, viu o comportamento do danado...
- Vi sim. E não ri mais porque estava num ato tão solene. O bicho é engraçado mesmo. Nem sei como pode fazer tantos trejeitos com aquela cara de santo. O menino é mesmo uma graça. Só pode ser muito inteligente e espirituoso é até demais.
- Pois veja que quase me perco na missa. Todas às vezes que olhava para ele, fazia um trejeito safado. Tive vontade de sair do altar e esganá-lo.
- Ora padre Nilo, entenda. O menino é uma distração. Se eu fosse o senhor dava-lhe um premio. Acabe com esse enfezamento e abrace o bicho com carinho. Deixará, assim, de lhe contrariar. Do contrário vai morrer de uma trombose.
- O senhor achar?
- Faça o que lhe aconselho e verá. Terá um amigo. Aproveite a verve do bicho e faça rir a turma. Quer ver:
- Vem cá. Deodônio!
- Por que gostas tanto do padre Nilo que não o deixa um minuto?
- O senhor já olhou direito para a cara dele. Esse nariz torto, esse testão liso, a boca miúda, o pescoço comprido e a ponta de nariz vermelho. Não é mesmo engraçado e ridículo? Mesmo assim, com inveja de minha boa aparência, fica me perseguindo. Mas eu vou dar um jeito nele.
Monsenhor Aprígio riu gostosamente e na verdade o frontispício do padre Nilo era ridículo.
- Olha Deodônio, vamos ser bons amigos. Mas me respeita como padre e teu professor.
- Sempre respeitei. Mas não posso deixar de rir quando olho para o senhor, enfiado nessa saia preta, com esse narigão de papa vento e esses pés de meia légua. Se eu fosse o senhor usaria uma máscara e virava os pés pra traz. É escritinho uma figura que tem num livro de papai que ele comprou aqui em João pessoa.
- E que livro e esse, perguntou o Monsenhor.
- Um livro de anedotas... E o senhor já o viu nu em pelo? Nem queira ver. Deve ser uma marmota. Eu já vi sem camisa. Tem o estomago pra dentro e é cheio de pelancas. Tive pena. A sorte dele é ter vindo para o Seminário.
- Sorte, por que, Deodônio?
- Não casaria nunca e se casasse a mulher largaria logo. O homem é uma coisa, seu diretor...
- Está vendo aí, Monsenhor. Quem possa aturar um traste deste. Também o pai vai dar livro de anedotas para um destemperado deste. Se fosse meu filho...
- Deus que me livre. Ia morrer de desgosto. Nosso Senhor sabe muito bem o que faz.
- Monsenhor, dê licença. Não posso mais aturar este bichote. Imagino como é esta “pedra” em casa. Foi por isto que mandaram pra cá. Pra se verem livres...
- Puro engano. Eu acho que mandaram para conhecer bicho que ainda não tinha visto. Donde ele é senhor diretor?
- Ah! É de Alagoa Grande.
- Já passei lá com papai e ele me disse:
- Filho, quando você vir alguma pessoa afeiçoada (nem digo bonita) não pergunte a ninguém. Já sabe que não é filho daqui. Desculpe padre Nilo. O senhor não tem culpa. Está tudo explicado. É de alagoa Grande. Por favor, não vá ser vigário de lá. Fique por aqui mesmo, para ver se sua terra vai perdendo a fama de ser a terra da feiúra. Dizem que foi desde o começo. Juntaram-se a família Zé Naidé e a família Nóbrega e deu nesse angu de caroço. Lá é proibido casarem dois de lá mesmo. Foi o jeito que acharam para melhorar a raça do padre Nilo. Foi pai que contou. Pai sabe de muita coisa. Queriam que ele fosse juiz de lá, mas ele espantou-se. Preferiu perder uma promoção. O senhor já foi a Alagoa Grande. Vá não. Quando quiser ter uma idéia, olhe aqui para o padre Nilo...
Padre Nilo saiu pisando em brasas.
- Volte aqui padre Nilo. É brincadeira do Deodônio. Padre Nilo, sentiu certo alívio.
- É não, seu Diretor. Eu vi. Reze por aquela gente. E pelo padre também. Ver é uma coisa, contar é outra. Um dia de festa lá, é uma exposição de marmotas. Padre Nilo está perdoado. Ele tem razão de ser complexado e sádico. Uma feiúra daquela dá desgosto mesmo e sede de vingança. Vá ser feio assim em Alagoa Grande...
O diretor chamou padre Nilo ao seu gabinete. Precisava orientá-lo, fazer com que ele se confessasse com a sua própria caricatura. Deus que havia lhe dado à sorte de haver nascido em Alagoa Grande, o encaminhou para o Seminário, como uma espécie de fuga e nada tinha mais a fazer do que aceitar os desígnios de Deus. Além disso, feiúra não era uma condenação.
- É o que o senhor pensa. Não pode haver maior. Nunca tive vocação sacerdotal. Foi esta minha feiúra física que me desiludiu das coisas belas do mundo e forçou-me a esconder-me dentro desta batina que tem sido o meu próprio inferno. Pelo menos é uma desculpa que dou à sociedade.
- O senhor me perdoa se eu disser uma coisa?
- Desde que não seja uma de tuas molecagens. Vê bem!
- Não senhor. É coisa muito seria e certíssima. Se não for, me castigue.
- Fala Deodônio.
E foi ao ouvido do diretor.
- É o seguinte: A feiúra do padre Nilo espanta as mulheres. Não há uma que olhe pra ele, a não ser de mangação. Ensine a ele o pulo do gato. O senhor que é professor velho nestas coisas...
O monsenhor riu!
- Deixe comigo. É mesmo um desventurado. E toma o meu conselho, Deodônio. Vai para o seminário. Tem bom faro, menino. Quem te ensinou tanta coisa?
- Papai. Mas não vá dizer nada a mamãe!... Puxei a ele. Mamãe, coitada é uma santa. Enquanto ela vive a rezar, fechada no quarto dos santos, pedindo por nós, ele cai na buraqueira. A Miriam, a Madalena, a Zila, a Dida e até a preta Belira, uma lapa de negra que dá agonia.
- E qual é mesmo tua cidade?
- É a cidade Pau Ferro.
- Posso ir passar as férias lá?
- Pode, pode. Contando que não bula na roça de papai. A não ser que ele esteja mudado. Aliás, acho que os dois farão uma boa junta, pegarão bem o carro...
- E o vigário de lá?
- Ora, envelheceu antes do tempo. Está um caco, mas não foi de dizer missa não senhor, deu demais na fruta e amunhecou.
- E tem muita fruta lá?
- Tem, mas não é manga, nem abacate, nem caju, nem jaca. É maça, a frutinha que Adão beliscou... Vai, vai lá...
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário