terça-feira, 24 de março de 2015

DR. TEMPERATO


DR. TEMPERATO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            O doutor Temperato, solteirão, Juiz de direito aposentado e cheio de compadres, costuma dar os seus passeios e sentar-se nos bancos da praça dos namorados, coberta de grandes árvores com boas sombras. Tinha prazer de analisar as moreninhas que passavam e quando a sorte lhe sorria tentar uma beliscada. Era uma espécie de robe. Não era dado a freqüentar a igreja, mas sempre teve a preocupação de perguntar a si mesmo o que poderia estar certo ou errado naquilo que os padres pregavam. E por fim, terminou numa descrença total quanto a certos e determinados componentes do catecismo católico. Achava até que os padres já deveriam ter promovidos uma revisão de base em muitos conceitos e afirmativas ridículas, e o que mais o impressionava era que dentro do clero havia gente sábia, culta e de grande projeção, que não se sentia humilhado ou envergonhado de ainda andar pregando fantasias e erros dos tempos do obscurantismo. Mas considerava que essa gente deveria ter uma grande razão de ordem privada, para permanecer na constante luta pela manutenção de erros absurdos. O que dava para lamentar era o fato de trazer a massa ignorante e crédula apavorado com o que poderia acontecer depois da morte.
            E cada dia tornava, em suas pregações, mais sombrio e desconhecido. Para o sujeito bater nos portões do purgatório ou no inferno, bastaria um deslize qualquer ou, por exemplo, morrer sem confissão, ter algum pecado dentro da escala da igreja, e, na hora de entregar-se, não haver padre para confessá-lo. Bastará isso. Um pouco de sorte. Achava que isso era até um descaramento. Mas a coisa continua pra beneficio de uns e sobrevivência dos padres, criaturas que não sabem o que dizem nem o que fazem. Meteram até na cabeça das religiosas que o sacrifício é o caminho do céu.
            Dr. Temperato, sozinho, pregava os olhos nas mulheres que iam e vinham à procura pelo menos de um sorriso prometedor. Coisa que não fazia mal a ninguém. Estando sós, tinha certeza que era para ele mesmo. Acompanhado ficava em dúvida e isso poderia prejudicar o avanço.
            Vez por outra alisava a cabeleira, esfregava o rosto para manter-lhe corado, ajeitava o nó da gravata e o vinco das calças. Sabia bem que nessas pequenas coisas estavam alguns segredos da técnica de atrair. Aposentara-se relativamente moço, pois se formara como empregado do Ministério da Justiça. Quando se lembrava, antes de sair, colocava duas gotas de colírio nos olhos, para aguçar a visão. Fumava constantemente, os melhores cigarros. Lembrava-se do seu tempo de estudante, quando levava horas e horas somando e dividindo ordenado e as despesas. Privava-se de muitas coisas boas, mas não iam além do ordenado e do pouco que a família mandava quando podia. O importante era se preparar para o concurso de juiz, sua grande ambição. Agora estava na hora de tirar a diferença. Advogava quando lhe surgia uma boa causa e no mais não tinha ambições. Acendia um cigarro quando inesperadamente lhe aparece um seu compadre, serventuário de justiça e com ar de preocupado.
            - Bom dia Dr. Temperato Saí de casa para desparecer um pouco. Assisti a missa do padre Torquato e ouvi um sermão espantoso. Versou sobre as penas de outra vida. Seu vigário andou do purgatório ao inferno e pouca vez falou do céu. Tem-se que rezar muito, fazer penitência para escapar de duras penas. Pelo que se ouviu, qualquer deslize, um esquecimentozinho, leva as pessoas aos porões do inferno ou as chamas do purgatório.
            A coitada de minha mulher já anda de olhos fundos de rezar. Quando o sino toca, logo nas primeiras badaladas corre para a igreja.
            Sai da mesa antes de terminar o café e o almoço queima nas panelas. Anda apavorada com as pregações do padre Torquato.
            Nervosa, aflita, desorientada. E tenho que acompanha-la. Temos que ir os dois para o céu, custe o que custar. O vigário fala com tanta convicção que não se pode ter dúvida. E não compreendemos como há gente que zomba das coisas da igreja.
            Não sabem o que lhes está reservado. E o pior, Dr. Temperato é a dúvida em que se fica quando morre um parente ou um bom amigo.
            Para onde irá. Terá morrido nas graças de Deus ou em pecado. Isto é terrível para quem fica. Há poucos dias encontrarei Avelina chorando porque uma sua amiga morrera de repente sem se confessar. Sabia que a coitada, depois de enviuvar, tinha relacionamentos clandestinos. E, segundo a igreja não poderia estar em bom lugar. Pensando nas chamas do purgatório. Vive-se neste vale de lágrimas e ainda se tem pela frente tamanha ameaça.
            - Ameaça coisa nenhuma, meu compadre Amabílio. Será possível que no último quadrante do século vinte existe gente que sabe ler, preocupado com semelhantes asneiras. Será que cabe na tua cabeça e na de tua mulher a existência de céu, purgatório e inferno. Assim também é tapume de mais. Coisa inventada pelos padres para amedrontar os bestas.
            Não estás vendo que nenhum Deus iria criar tais meio de suplício. Isso é pura artimanha do clero católico, o criador da “Santa Inquisição”, barbaridade que na realidade funcionou por muito tempo, quando se queimava gente viva, espetava alfinetes por baixo das unhas dos inocentes, usavam o suplício das rodas para estrangular, chamas nos pés e gotas d’água na cabeça até o enlouquecimento. Foram os inventores desses tremendos suplícios que idealizaram e propagaram esses pavorosos suplícios para depois da morte.
            Foram os padres, sim, Amabílio, porque exploram o medo em seu proveito. Quando a pessoa morre, meu compadre termina ali como uma vela que se apaga. A alma da vela é o pavio e esse mesmo desaparece totalmente.
            O que se chama de alma é a própria vida e nada mais nada menos do que a matéria viva. Não tem forma, não tem cor, não tem cheiro e é imponderável. A morte é simplesmente a inércia da matéria, que deixou de vibrar.
            Essa história de alma imortal que sai do corpo de quem morre e vai para algum lugar conforme a vida que levou é uma fantasia. Quando uma pessoa diz que viu alguém que já morreu, foi ele próprio que materializou aquela pessoa em sua imaginação. A pessoa que passa momentos ou dias e dias em estado de coma e se recupera através de soros e medicamentos, reviveceu, não porque a alma voltasse, mas porque a matéria volta a ter vida, restabeleceu-se a circulação que o alimenta e desintoxica. E pode-se até dizer que a vida está no ar que inspira e respira, produzindo energia.
            Quando se paralisa a respiração, morre-se fatalmente. Não sai nada de dentro de quem morre. O mecanismo da vida foi que parou para sempre, como para um carro que acabou o combustível ou lhe faltou à centelha elétrica. Mas seja como for, tenha-se ou não se tenha essa alma de que falam os padres, não deve temer pelo destino.
            Limbo, purgatório e inferno, nunca existiram, foram criados exclusivamente para negócio, como quem instala uma bodega para vender secos e molhados ou uma casa de ferro, ou antes, uma espécie de loteria que dê sem esforço lucro ao banqueiro.
            Somente quem não possui noção científica pode acreditar ainda nessas velharias de igreja, isto é, dos padrecos. Vai te aquietar com tua mulher, Amabílio. Pensar em coisa, séria, pensar em viver. A morte é simplesmente a paralisação da matéria, dessa engrenagem perfeita que forma o nosso corpo. Acaba, Amabílio, com essa ilusão ou com essas mentiras deslavadas que fazem tanta gente sofrer. A coisa é tão bem urgida para enganar os bestas, que nem as criancinhas escaparam.
            Para que todos paguem o batizado que abre as portas do céu, criou o limbo, uma espécie de inferno gelado para as criaturinhas que não recebem sacrifícios de água benta. E sofrem com isto, as mães que não lograram batizar seus filhinhos.
            Uns vão para o céu e outros metidos nas sombras frias do limbo, no desamparo, sem brinquedos, sem uma caminha para deitar. Até aí, meu compadre, chega à impiedade dessa gente. Mas não batizam de graça. E chega ao ponto de afirmar que Cristo nasceu de uma esposa virgem, um absurdo científico. E o pior de tudo ainda, é que transformaram Deus, o meu, o teu Deus, essa força geradora de todas as coisas, num tirano que manda uns as delicias do paraíso e os outros as penas do purgatório e do inferno. Não se vai para lugar nenhum. Morre-se e fica-se aqui mesmo, integralmente. A alma é a própria vida e a vida se extingue com a morte. Por que então, preocupar-se com essa outra vida ilusória e assustadora?
            - Mas é a palavra dos padres, dos bispos, cardeais e do Papa.
            - Ora, meu compadre, pregam e insistem na existência do que não existe, e só por conveniência própria. O que é indispensável é que não atribuem ao nosso Deus, tanta maledicência. Deus nunca chegaria a fazer o que é ruim e nem castigaria ninguém. Tenho muita pena de quem crê em coisas de outra vida. Mas é isso. Há quase dois milênios pregam e incute nas pessoas, desde crianças, esse amontoado de ignorância. Céu, limbo, purgatório e inferno, são tudo aqui mesmo, dependendo da vida de cada um. Uns leva vida de anjo, outros de demônios.
            - Mas Dr. Temperato, e se a gente cair nas garras do capiroto. O senhor tem engenharia pra se safar e eu e minha mulher só temos mesmo os cacos de alma pro diabo assar nas grelhas das profundas. O senhor pode até estar muito certo, mas os padres também podem até estar. Já pensou, a pobre da Josefina, depois de tanta reza e tanta lamuria cair numa fria dessas.
            - Responsabilizo-me. Ponho minhas duas mãos no fogo. Quem foi que já se viu o diabo ou alguma alma. Ninguém. Tudo o que dizem é conversa fiada, história para boi dormir. Olha uma coisa. Quando o sujeito morrer em pecado mortal vai direto para o inferno. Não é isto que os padres pregam? Pois bem, os padres celebram missas para tirá-los de lá. Se de lá não podem mais sair, então, pra que essas missas. Repare se alguém celebra de graça. Uma ova!... E cobram adiantado. Tem padre por aí que não vale uma peitica. Mesmo assim continua ministrando os sacramentos e confessando os beatos. Falam no nome de Deus como se fosse uma mercadoria. Ameaçam o povo com o medo do purgatório. Já te disse. Vai para casa Amabílio, cuida dos teus deveres e larga esse medo da coisa que não existe.
            - Mas, muita gente diz que já viu assombração, almas penadas que vem pedir rezas para se salvarem.
            - É o medo que faz tudo isso, Amabílio. A própria pessoa materializa sua imaginação. Quando se fixa a vista num objeto e depois se olha para o céu, lá está a imagem do objeto. O povo faz sempre isso com estampas de santos.
            - Dr. Temperato, e se o senhor nos meter num buraco sem saída? O diabo, dizem que anda por aí farejando alma de pecador, para se divertir com elas nas caldeiras de Pedro-Botelho. E o pior é que de lá não se sai mais. E leva a gente já espetada num garfão de três dentes. E o capiroto deve estar ouvindo essa conversa, com os dentes de fora já antegozando o achado. As brincadeiras do bicho preto são diabólicas.
            - Deixa por minha conta, Amabílio. Acaba com esses temores e vai cuidar em tua vida. Deves ter medo é dessa cambada aqui da terra. Não faças mal a ninguém, mas defende-te dos enrolões. Isto sim. Não há outra vida. Pura tapeação.
            - Vou tentar convencer a mulher. Tirá-la daquela preocupação terrível.
            E explicou todas as teorias do Dr. Temperato. O homem sabia mesmo das coisas. Muita leitura e muita convicção. Não havia mais qualquer dúvida. Cada um que cuidasse da vida, pois depois da morte nada mais existia.
            - É isto mesmo mulher. Dr. Temperato está com a razão. De hoje em diante vamos deixar de tanta lezeira.
            - Tu e ele, Amabílio. Comigo não contes. Era só mesmo o que me faltava. Quem entende dessas coisas é o padre. Estudou para isso e sabe o que diz. Vai na conversa do Dr. Temperato e aguarda o resultado. Quando estiveres na ponta do espeto não me chames. Chama o Dr. Temperato.
            - Calma mulher. Vai refletir e me dirás depois.
Duas semanas depois a mulherzinha de Amabílio acordou e concordou. Dr. Temperato tem razão...
Acabou-se o medo, Amabílio. Agora me sinto aliviada. Vamos cuidar em nossas vidas. O Dr. Temperato é o Maximo...
           

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário