sexta-feira, 13 de março de 2015

IRACILDA


IRACILDA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Iracilda casou-se muito nova e muito nova ainda, enviuvou. E com Aprício, morreram as suas ilusões também. Como podia acontecer aquilo. Ficar só com os seus três filhos, umas criaturas que nem ao menos se aperceberam o que era a morte. Talvez pensassem infantilmente que era um acontecimento natural e corriqueiro, coisa sem grande significação. Somente Paulo o mais velho chorara por vê-la, talvez, chorar. De certa forma era melhor para Iracilda, pelo menos não sofreriam tanto quanto ela.
Casada há quatro anos apenas, e com tanto amor, não podia atinar como alguém os separara tão cedo, sem um motivo, sem um aviso, sem piedade. Era, sem dúvida, coisa do destino, monstro impassível que pouco se preocupava com a roupa preta do luto e com aquelas três crianças sem pai e com uma pobre mãe que nem sabia como dar-lhes roupas, agasalhos e alimentos. A Deus não atribuía tamanha crueldade. Lamentava somente que não tivesse evitado. Que se fosse ela e não Aprício que tinha forças para dar-lhes o pão da vida.
O que iria fazer com tão pouco que ficara do enterro. Sem experiência para movimentar a merceariazinha, com as prateleiras quase vazias, não tinha mais nada a fazer senão rezar e pedir coragem. Se pelo menos tivesse família para lhe dar apoio. Mas nem isso. Filha única e órfã tinha a impressão que havia mergulhado na escuridão para não mais sair.
            E nem era bom pensar que se quiseram e se amaram tanto naqueles quatro anos de tanta ternura, de tanto bem querer. Ninguém poderia jamais ter sido tão feliz quanto ela. E de um momento para outro, sentir-se só como se tivesse que pagar as penas do mundo inteiro. Ia e vinha da sala à cozinha como se nem mais soubesse onde estava. E que alguém lhe viesse dizer o que faria com aquelas três crianças, tendo obrigatoriamente que cuidar da mercearia, seu único arrimo.
            Dava para duvidar de muita cosa que lhe ensinaram. Humanamente, era uma situação que não poderia acontecer. E como o mundo, agora lhe parecia tão diferente daquele de seu tempo feliz de esposa, com seu marido ao lado, dando segurança e bem estar. Andou pertinho de perder a crença na religião que o vigário pregava todos os domingos, solenemente. Onde estava a piedade, o amor ao próximo, a solidariedade e a fé. Com que forças e meios iria enfrentar aquela encruzilhada terrível.
            Iracilda passou mais uma noite terrível, mastigando seus pensamentos e suas dúvidas. Pelo amanhecer, olhou para os três filhos, os três anjinhos, sem culpa de terem vindo ao mundo só e só por amor dos dois. E depois, como era que se permitia desaparecer para sempre o seu Aprício, o seu único e legítimo amor. Tão moço, tão cheio de esperanças e de vida, adorando aqueles três filhos para quem fazia tantos planos de felicidade. Por que lhe deram um coração tão frágil que se paralisou tão subitamente. Não, não era possível entender. E se era assim, porque lhes concederam filhos. Deus todo poderoso bem que poderia ter evitado. E onde estavam as suas orações rezadas com tanta fé e tanta seriedade. E naquelas horas amargas não havia ninguém para responder. E só havia um meio, uma opção, que era mudar-se para a velha casa da mercearia, onde cuidasse dos filhos e dos negócios. Fazer sacrifícios ainda maiores e pagar e alimentar uma mocinha para ajudá-la. Não tinha para onde fugir. Alugaria sua casinha para aumentar-lhe os rendimentos. E fez o que o difícil momento ditava.
            Mas era tão pouco o que restava da mercearia, que teve medo ainda maior. E como não havia apelo, foi aos armazéns de grosso comprar sortimento, sem saber se lhe confiariam. A esperança era a conduta que Aprício sempre teve em relação aos seus negócios. E isto lhe valeu e, ademais, elasteceram os prazos de pagamento. Sortida a mercearia, faltava-lhe vender. Mas, como iria calcular os preços. Teve que recorrer ao contador da sapataria do seu Fulgêncio, pedindo para ensinar-lhe a fazer os cálculos. O primeiro mês foi atormentado demais. Despesa de casa, conta a pagar nos prazos certos, impostos e tudo mais de possíveis imprevistos. A Sorte é que a mercearia já estava afreguesada.
            Na verdade Iracilda não gostava da atividade de balcão, mas havia de gostar do que não gostava. Os meninos lhe davam força. E tinha sorte de tê-los sadios e não ter ficado com outro para mais tarde. Em cada objeto que punha as mãos, ali estava Aprício, com se estivesse assistindo o seu sacrifício e dando-lhe maior coragem. A gente de seu bairro procurava ajuda-la. Do que precisavam, davam logo ordem – Vai à mercearia de seu Aprício, como se ele ainda estivesse lá. E desta forma Iracilda se capitalizava. Contava tostão por tostão e as sobras iam para o fundo da gaveta da cômoda. Fazia quando podia as compras mais barato. Os meninos foram crescendo e o mais velho já ajudava no balcão. Pelo menos a mãe não se movimentava tanto para apanhar as mercadorias empacotadas. Paulo já sabia, aliás, o preço dos fósforos, dos cigarros, do açúcar e aos poucos ia decorando outros. A turmazinha habituou-se a conviver com as mercadorias sem desarrumar nada. Tília e Salústio passavam horas esquecidos brincando na sala ao lado, fazendo algazarra, parecendo dois periquitos numa gaiola. Onde estavam e como estavam, percebia-se de longe. Paulo, não, era ali perto da mãe na profissão de caixeiro. Era de que mais gostava, imbuindo de sua importância. Aos poucos ia aprendendo a fazer pacotes e adorava puxar a ponta do cordão para amarrá-los. Iracilda o incentivava, pois deveria mais tarde tomar conta da mercearia. Herdara de Aprício aquela tendência e que era a grande esperança de Iracilda. E só então poderiam voltar a morar na casa que haviam construído com tanto zelo e gosto.
            Paulo não freqüentava escola. A mãe, ela mesma lhe ensinava o que poderia ensinar a professora primária. E assim aproveitava as horas vagas e, sobretudo à noite. Paulo tinha boa vocação para as contas e aprendia com bastante facilidade a fazer os cálculos das mercadorias vendidas. O lápis no balcão, preso num cordel, pertinho dos papeis de embrulho, facilitava-lhe as tarefas. A mãe tinha o cuidado de conferir-las. E ele, cioso de si, de sua esperteza, dizia logo – Ta certa mãe. E sempre estava.
            - Muito bom Paulinho. Assim é que um homemzinho como você, faz. Continue fazendo assim e nossos negócios irão à frente. Vivemos disto. Não temos outro meio para comer, vestir e economizar.
            Do interior da casa e das outras duas crianças, cuidava, Aline, a pretinha também órfã de pai, que Iracilda arranjara. E que Deus a livrasse de sair. Tinha comida, cama para dormir e Iracilda a criara como filha. Já havia passado fome e tanto desconforto, que a vida que estava levando era um paraíso. Quatorze anos, quase todos na penúria, não lhe saiam da lembrança. E como poderia esquecer as manhãs e as noites que passara sem um pão para enganar a fome. A mãe, lavadeira, engomadeira com um ferro velho e ainda daqueles que colocavam no braseiro para esquentar, coitada, não podia fazer milagres. E, além disso, tinha receio de empregar a filha, já uma mocinha, para que não acontecesse com outras que, com o passar do tempo, apareciam buchudas e sem se saber de quem. E então, além do desastre, como poderia sustentar mais um. E isto lhe preocupava demais.
            Com ela acontecera justamente isto. A mãe a empregara e fora seduzida pelo filho da família onde trabalhava, pensando que era uma grande coisa ter um namorado branco, rico, e bem educado. O que mais poderia desejar. Preta e pobre, onde iria arranjar melhores amores. E o resultado é que quando não pode mais esconder o empinado da barriga, foi posta para fora, como uma moleca safada que havia seduzido e botado a perder o filhinho mimado e inocente.
– Por ali sinha quenga safada. Não respeita a casa onde trabalha, e desgraçou meu filho, meu menino de ouro. Deveria mandar dar-te uma surra de vara. E confie nessas crueiras!... Some de minha vista.
            - Mas dona Córdula, foi...
            - Foi coisa nenhuma, sinha rapariguinha descarada. Nem quero mais ouvir a tua voz.
            - Foi o seu filho que me pegou a força. Digo e digo.
            - Vou dizer ao meu marido, atrevida, tens coragem de acusar um inocente, um menino bonzinho como é. Coitado, emporcalhado por essa rameira ordinária.
            - Vou falar com o delegado.
            - É bom. Vai. Ficarás presa e mandarei dar-te uma boa sova.
            Foi assim que acontecera com ela e não queria que a filha caísse na mesma trama. E o miserável que abusara dela, nunca se lembrou de que a menina era filha dele. Preta era para saciar o desejo dos brancos, patrões e filhos mimados. Negro era lá gente!
            Iracilda já não era mais aquela criatura martirizada pelas apreensões da manutenção da família. Passou a cuidar-se mais e a dar mais conforto aos filhos e à própria empregadinha que tanto lhe servia e ajudava. Era uma pessoa da família e dessas pessoas amigas e reconhecidas.
            A mercearia crescia. Os lucros aumentavam e Iracilda era convencida de que Aprício não saia de perto da família, protegendo-a e animando-a. Era possível que outros não fizessem o mesmo, mas ela sabia bem até onde ia o zelo e a bondade de Aprício. Não dizia nada aos filhos para não impressiona-los, mas ela sentia em tudo sua presença.
            E quem poderia dar-lhe tanta força para suas realizações, senão Aprício que os amava tanto. Toda a noite rezava em agradecimento, para ele e pedia-lhe que a beijasse espiritualmente. Estava certa de que os seus pensamentos, os seus atos eram inspirados por Aprício. Não lhe restava dúvidas de que tudo que acontecesse em sua vida teria sua aprovação, fosse o que fosse.
            Em tão boa forma ainda, Iracilda começou a sentir saudades de um companheiro. Aprício havia sido tão bom e tivera com isso tanta sorte que ela poderia fazer uma tentativa sem medo de arriscar-se. Mas na verdade não tinha coragem de tomar a iniciativa.
            A solidão a estava invadindo. Os dias e as noites eram mais longos, o céu cinzento era como se caísse uma chuvinha muito fina e fria em seu coração de mulher ainda tão moça. Deveria estar a faltar-lhe qualquer coisa de que ela mesma tinha medo de pensar. Em seguida passou a viver irritadiça, nervosa, a ralhar com os filhos por coisas insignificantes. Arrependia-se depois, mas aquilo lhe parecia estranho. Já não vivia a fase das dificuldades quase insuperáveis e que afinal conseguira vencer. Assim, o seu estado de espírito não era uma coisa normal. E, uma seqüência de fatos obrigou-a a uma reflexão demorada, chegando por fim a uma conclusão que a espantou. Faltava-lhe um companheiro que lhe matasse as ansiedades.
            Enviuvara tão cedo inesperadamente e cercada de tantos problemas que se esquecera da própria existência, como mulher. E não tinha para onde fugir. Faltava-lhe mesmo quem lhe desse amor e recebesse dela os carinhos que podia oferecer. E o casamento seria a solução. Mas, como, se até então ninguém lhe pusera os olhos desejando-a. E se alguém o havia feito, nem prestara atenção. Tinha que ser dali por diante e, ao mesmo tempo, deveria tornar-se uma mulher atrativa. Mudar aquela impressão seca de merceeira, para a doçura de uma mulher que deseja amar e ser amada. Foi então que passou a notar a presença freqüente do Francelino de Abreu, um solteirão funcionário do Fisco Estadual. Criatura um tanto reservada e que demonstrava ser uma dessas pessoas solitárias que andava a procurar uma réstia de sol.
            Francelino olhava-a mais do que puxava conversa. Era como se tivesse medo de abrir as portas e soltar o leão que rugia dentro dele. Tinha receio de uma frustração. Por vezes era como se abrisse apenas um pouquinho e ficasse olhando pela frestinha estreita.
             Iracilda simpatizava com ele, mas não sabia ou nem chegava a perceber bem os seus sentimentos. Suspirava como se fosse ainda uma menina implume e inexperiente.
            Francelino chegara mais cedo naquele dia. Fala de tempo. O calor, as chuvas retardadas, as noites e luar e os amanheceres maravilhosos para quem acordava cedo.
            Iracilda parecia acordar repentinamente. Já não era uma menina inexperiente e resolveu rasgar o véu de timidez que inibia os dois.
            - Pois é senhor Francelino, todas as coisas da natureza são belas e atraentes, mas, mesmo assim, vivo como uma senhora. Uma mulher que não se sente realizada nem feliz. E terei que sair dessa penumbra em que vivo. Penso em me casar novamente, embora me pareça ser muito difícil encontrar quem queira uma viúva com filhos e sem atrativos. Mas irei lutar para isto. Uma mulher sozinha é assim como uma flor murcha e sem perfume ou uma planta que não tem quem ponha uma gota d’água. E assim se vai definhando, estiolando, morrendo aos poucos.
            - Ora minha senhora, parece-me que há muito pessimismo nos seus pensamentos. Pois não é. Uma mulher ainda tão jovem e de onde ainda não fugiu nenhum traço de beleza e atrativos, não pode deixar de ter grandes admiradores. Modéstia excessiva também esconde as pessoas. E creio que é o seu caso. Eu mesmo se a merecesse, seria um homem que a boa sorte entrava pelo furo da fechadura. Venho sempre aqui só para ter o prazer de estar perto de quem gostaria de possuir e amar perdidamente. Sou um solitário que, desde o tempo de sua mocidade, perdi o gosto de ver outras jovens. Fui infeliz por tê-la perdido, mas nem por isso, aniquilei-me. Acompanhei-a de longe como ainda poderia ter alguma esperança, embora sem saber por quê. Deveria ser à força do destino. Sabia que era feliz e, pelo menos isto me consolava. Seria capaz de atitudes desesperadas se a visse sofrer um só instante. Curti em silêncio todos esses anos, a desilusão de um amor nunca confessado. A culpa foi somente minha. A senhora era muito jovem e jamais pensaria que se casaria tão cedo e tão moça. Esperava uma oportunidade para falar-lhe. E Aprício que foi uma excelente criatura e um marido incomparável, antecipou-se. Fiquei angustiado, mas o que fazer contra o poder do destino.
            Quem sabe se não fossem os meus adiamentos, esperando não sei por que, tivesse merecido sua atenção. Mas eu era confiante demais e naquele tempo julgava que o meu anjo da guarda não falharia. Fiquei aterrado quando soube de seu noivado. E afoguei-me no silencio de minha desdita. E de lá para cá, não confiei mais no meu anjo protetor...
            - Quem sabe. Naquela fase eu era quase uma menina. Quando noivei com Aprício, francamente, nem tinha ainda certeza de que o amava seriamente. Mas o meu anjo da guarda foi camarada e vigilante. Deu-me sorte. Aprício foi o santo de minha adoração. Fomos tão felizes como, creio, nunca mingúem o foi tanto. Esses filhos que tenho e que adoro, é o fruto de um amor puro, constante e belo. Quando Deus levou Aprício, tão cedo e tão moço, esqueceu-se de que nós tínhamos três filhos, três passarinhozinhos que mal saíram da casca do ovo. Esqueceu-se do que eu não tinha com que cria-los. Esqueceu-se que Aprício me amava, adorava os filhos e que eu o amava também. Esqueceu-se de tudo, inclusive que iríamos sofrer demais. E creia meu amigo, que cheguei a perder a fé em minha crença religiosa e passei a duvidar da existência do próprio Deus, pelo menos como eu pensava que era. Talvez haja me arrependido, mas muito tarde. Sofri em silencio, desatinada, muitos meses, vendo a hora faltar pão para esses frutinhos verdes do meu amor sem limites. Tive medo e nas horas de maior perplexidade, fechava os olhos e chorava consternada. E foi diante deles que tomei a decisão de lutar para salva-los da orfandade. Ninguém sabe que é olhar para os filhos na incerteza de ter como alimenta-los e dar-lhes agasalhos. Meu coração nestes momentos parecia espedaçar-se. Mas não queria que percebessem o meu infortúnio. E ainda hoje, creio que os padres pregam uma religião fantasiosa. Anunciam um Deus que, na realidade, não se preocupa com a sorte das pessoas. Pois não é. Como se mata um amor tão puro e se entrega ao destino cruel, três filhos pequenos e inocentes e uma mulher. Sim, uma mulher também, criada só para a maternidade e para o amor. Felizmente consegui sair de minha maior tormenta. É, sim, a maior, pois de certo tempo para cá, acendeu-se dentro de mim, uma chama que me vai queimando lentamente, o desejo de amar, de ter alguém comigo, participando de minha vida. E quem sabe se não nos completaríamos. Poderemos conversar, entendermo-nos e tornarmo-nos bons amigos. Estou cansada desse cotidiano, dessa rotina que me consome. Uma casa sem homem é uma casa sem amor e sem segurança.
            - Seria ótimo que acontecesse, Mas, afinal há senhora pouco sabe de minha vida e talvez nem se interesse muito em saber.
            - Que ilusão. O que mais poderia desejar do que um amor tão antigo. Se não lhe pertenci foi culpa exclusiva do destino. Amei e amei muito o meu marido e foi ele o primeiro que apertara carinhosamente minha mão, apaixonado. Poderia ter sido outro qualquer igual a ele e que me quisesse bem. Certamente, que ainda conheço pouco o senhor, e gostaria de conhecê-lo como à palma de minha mão. Quem pode adivinhar o que ainda acontecerá entre nós dois.  Até ontem, posso dizer, preocupava-me apenas com os filhos, e com uma lembrança e uma saudade daquele que foi o meu grande amigo e o meu primeiro encontro com a felicidade. Afinal de contas, como gostaria de retornar aquela vida de doçura e encantamento. Só uma coisa devo exigir, é que a pessoa a quem volte a amar respeite a memória de Aprício e não tenha ciúme dele. Até hoje tem sido o meu guia espiritual e tenho a certeza de que não me censurará, amando outro. Sempre foi compreensivo e eu resguardo à sua memória e conservei-me virgem desde sua partida. E se os desejos de amar despertaram novamente em mim, foi com a aprovação de Aprício. Deixá-lo-ei no santuário de minha vida, como uma recordação inesquecível. Apenas isso. Perdoe-me se falo assim, mas creia que ele irá ficar contente com alguém que me ampare e ame.
            Francelino considerava-se um vencido e um vencedor. Agora sim, não tinha mais que duvidar e considerava-se bem pago de tanto tempo de desilusões e de esperança. Na realidade nunca chegara a entender por que esfriara tanto com respeito à outra mulher. Iracilda era como a sua própria sombra. Sua imagem estava sempre diante de seus olhos. Por que aquela criatura não saía, mesmo depois de casada, de sua imaginação. O que o encantara tanto. A maneira de olhar, sua simplicidade, a beleza de seu corpo jovem ou alguma força magnética que o atraía.
            Visitava a casa comercial de Iracilda só para vê-la e tentar desvendar a causa daquela fascinação. E foi então que percebeu que não era uma parte dela, era a harmonia do todo. O rosto, os olhos verdes que lhe davam aquela expressão tão agradável, os seios pequenos e buliçosos escondidos sobre a cambraia da blusa, as pernas que ninguém as tinha tão perfeita, a cintura que facilitava o requebro do corpo, a harmonia das linhas curvas traçando o que poderia haver de mais bonito e atraentemente num corpo de mulher. Fora o conjunto, a expressão corporal, aliada à simplicidade espiritual. Dava mesmo para esquecer todas as outras. E Iracilda nada perdera, ou antes, modelara-se ainda mais. Acentuaram-lhe as curvas e as saliências do corpo como se desafiassem e quisesse violentar a própria natureza...
            E Francelino chegou até a ter medo de perdê-la novamente se narrasse com insegurança fatos importantes de sua vida. Deveria ser dócil ou veemente? Aprício era do tipo dócil e possivelmente Iracilda desejaria um homem que o fizesse lembrar dele. Ela havia lhe falado em proteção e um homem fraco não a protegeria. Mulher gosta de carinho, mas detesta covardia, frouxidão. E ele não era nem covarde nem frouxo. Fora simplesmente um inibido, um confiante e descansado. Talvez por essa inibição e confiança tenha perdido Iracilda.
            Não podia ocultar suas mágoas secretas contra Aprício. Chegara a ponto de odiá-lo e desejar que ele morresse de qualquer coisa. Não era brincadeira perder a mulher que se ama e adora. E logo com aquele nome que o encantara e repetia-se no seu coração. Iracilda, Iracilda, Iracilda. Talvez bastasse aquele nome próprio para atraí-lo daquela forma. Iracilda está casada, vivendo junto, dormindo com o gaiato do Aprício, o felizardo. Aquilo lhe furava como um espinho maldito.
            - Pois sim, Iracilda. Minha maior angustia era saber compreender que havia perdido para sempre, e com aquele amor violento e frustrado que me tirava o prazer de viver. Não perdoava nem Deus nem o diabo, fosse quem fosse o culpado. Tive ódio, de mim mesmo e até vontade de despedaçar-me para vingar-me de minha má sorte. Mas nessas horas desesperadas, reagia nutrindo um pouco de esperança. Nunca ninguém amou tanto o impossível quanto eu. Quando me aparecia alguém que demonstrava querer-me, soltava lá de dentro de mim o nome de minha devoção, como um grito de alerta: Iracilda! Decerto era já uma espécie mansa de loucura. E nesse vai e vem da vida, o tempo sem querer, sim, sem querer, pois o tempo não quer bem a ninguém, levou-me ao encontro da felicidade.
            Eu sou Francelino, solteiro, com sessenta e oito quilos, um metro e setenta e dois de altura, batizado, católico, sem ser praticante, fazendeiro e apaixonado de muito tempo por bela criatura chamada Iracilda, o nome mais bonito que já se deu a uma mulher. Não sou rico, mas também não dependo financeiramente de ninguém. Falta-me apenas o mais importante para dar um abraço em dona felicidade, apelidada de Iracilda. E se Deus me der esta sorte, não tenho mais nada a me queixar da vida. E daqui pra frente passarei a ser o dono exclusivo do universo. Sim, porque não há quem tenha maior poderio do que um homem totalmente feliz.
- Poderemos nos casar se assim é, mas tenho um problema muito sério, o mais sério de minha vida. Os meus filhos, os filhos de Aprício. Mulher que se casa já com filhos de outro marido, sempre sofre desprezo que o segundo marido lhes inflige. E, para ser franca, não os trocaria nem por um anjinho do céu. Geralmente o novo marido não diz nada, mas fica a lembrar-se de que a esposa já pertenceu a outro.
            - Nunca me aconteceria isto. Quero-a como é, e já conheço todo o seu passado. Para mim continuará sendo a mesma mocinha de quinze anos. Tenho que ser bem claro nos meus hábitos. Sou habituado a mandar e também a combinar as coisas de maior importância. Não desejo uma mulher submissa, escrava ou apenas uma dona de casa, mas as decisões mais sérias dependerão de minha vontade. Isto poderá lhe ser desagradável, mas a verdade é que sou assim. Mulher deve viver mais no lar do que na rua. Não tolero más companhias, gente suspeita ou desonesta. Está claro, bem claro que isto exige sua reflexão. Dentro da nossa casa não se tocará na vida alheia, a não ser quando se possa ou se queira ajudar alguém.
            Gosto de conselhos e de sugestões e muito mais ainda de compreensão. Certamente um ou outro cometerá erros, coisa natural. Deslizes, nunca! Não haverá segredos para o casal, o que significará vida limpa e lealdade. E será que assim, serei a pessoa, o marido que deseja. Um engano será fatal. Nada de pensar que era diferente, nada de amuos, nada de ciúmes. Ciúmes, dizem que ciúme é próprio de quem ama. Acho que ciúme é falta é de confiança. Não há nada mais desagradável do que chegar a casa e encontrar a esposa pensativa ou de cara amarrada e cheia de maus pensamentos. Muita gente fofoqueira ou invejosa procura destruir a felicidade dos outros. Sente-se bem com isto.
– olha fulana, teu marido estava conversando com fulana. E aquela dona é perigosa. Se fosse meu marido, cortaria logo as asas.
 E daí começa os desentendimentos e a desarmonia do casal. Jamais darei motivo para isto e, portanto não poderei aceitar tais situações.
 – Olha Iracilda, toma o meu conselho. Não ponhas em casa, empregada moça e jeitosa. É uma grande ameaça. Não se deve confiar nem nela nem no marido. Homem não engravida como as mulheres e por isto nunca se sabe quando está traindo a esposa. E desconfia do bicho quando chegar à casa meio indiferente ou desconfiado e especialmente não te procurar alegando cansaço, sono ou enfado. Tudo é mentira. Andou fazendo das suas. Abre teus olhos. Cheira-lhe as roupas e fiscalizes sempre os bolsos do espertalhão. Por esquecimento poderia esquecer algum bilhete ou algum objeto comprometedor. Habitua-te com o cheiro natural do malandro. Eles procuram não deixar vestígios das traições, mas toda vigilância é perfeitamente válida. Existem mil maneiras de enganar as mulheres.
- Pois é bom advertir que não espero isto da criatura a quem me unir para sempre. Queria me conhecer, não era? Pois estou de corpo e alma me apresentando. Analise-me e resolva. Embora tenha que mergulhar em nova tormenta, prefiro ser sincero. Poderia fantasiar minha conduta, parecer-me angelical e deixar para revelar-me depois da água benta e do laço do Juiz. No entanto, não tenho e nunca tive coragem de enganar uma mulher, especialmente aquela a quem amo e sempre amei.
            - Pois é, tornou-se, assim, a pessoa com quem sonhava. Se me quer realmente, prepara-se para a união. Não tenho mais tempo de esperar. É fácil compreender a ansiedade de uma mulher há tanto tempo em jejum, como se minha vida tivesse sido uma sexta-feira santa. Não tenho mais forças para continuar vivendo só de sonhos e de amor.
            - Creio que minha pressa é ainda maior. Irei agora mesmo, marcar para amanhã, o casamento civil. A água benta ficará para depois. Tenho casa preparada há muito tempo. E tem um móvel na casa que também não pode mais esperar.
            - Vá, vá cuidar disto, por um ponto final na ansiedade dos dois. Quanto à água benta, tenho um frasquinho em casa. Dá para quebrar o galho...
            Francelino saiu quase às carreiras. Não poderia mais perder Iracilda. Seria o maior desastre de sua vida. Tinha medo de um recuo. Havia caído na besteira de recomendar-lhe reflexão. Mulher não deve refletir em questões de amor ou de desejos simplesmente. Para dar uma viravolta não muda as calcinhas. Quem poderia saber se não tinha já outro de olho, um desses que sabe salivar e temperar os quitutes. Quando Iracilda desejou conhecer algo de sua vida, talvez já fosse a escolha. Bobeara. Agora era correr, enforcar o Juiz se fosse preciso.
            - Quero falar com sua Exº. O Dr. Juiz de Direito.
            - Não está.
            - Viajou? Quando vai regressar. É caso urgentíssimo.
            - Bem, vou chamá-lo. Está dormindo, mas, como é coisa de muita urgência...
            - Mandou saber do que se trata.
            - Um casamento apressado. Nem quero saber quanto custa. É para hoje ainda ou no mais tardar, amanhã no primeiro horário. Tenho que viajar e preciso sair casado.
            - Mandou dizer-lhe que fosse buscar a noiva e as testemunhas. Amanhã viajara também.
            Francelino voltou disparado, o acaso estava o protegendo.
            Afinal o Juiz atendeu-o. E já antes do anoitecer Francelino estava atado de cama e mesa com Iracilda. E não se decepcionara. Era a mesma Iracilda que imaginara, mesmo já sendo mãe.
            Os meninos gostaram de Francelino. Estava sempre rindo para eles e nunca chegava sem trazer-lhes confeitos ou outros agrados. Não ralhava com eles. Isso era atribuição de Iracilda. E se tivesse filhos os trataria igualmente aos outros.
            O amor que tinha por Iracilda era grande demais para não deixar de respeitar os seus sentimentos de mãe. E depois, que culpa teriam eles de ter vindo do amor de outro homem.
            Iracilda comovia-se com aquela atitude tão digna e queria, assim, muito mais a Francelino. O que Iracilda não sabia era que Francelino fosse uma pessoa afortunada, um dos mais ricos da cidade. Fortuna que ele lhe dissera depois, ter muito pouco valor para ele, sem a participação dela. Até lhe parecia uma coisa perdida e inútil. Agora, não, cada moeda parecia ter um som e um brilho diferente. Como era agradável vê-la nos vestidos, nas jóias que ele oferecia e nas mínimas coisas, inclusive na comida que era servida aos dois e aos garotos. Na nova residência, Iracilda encontrou o conforto que merecia. E o que era antes uma casa vazia, habitada por um coração também vazio, transformou-se em risos de crianças e ninho dos amores. A porta fechada abriu-se para o sol e ao perfume das aglaias floridas. Não havia mais penumbras nem na casa, nem no coração. Iracilda voltara a cantar as mesmas canções dos seus tempos de menina-moça e Francelino pontilhava o seu violão, há tanto tempo empoeirado e esquecido e não atinava como era que uma mulher podia mudar tanto a vida de um homem marcado pelos desenganos. Sim, era Iracilda a feiticeira. Valera a pena ter esperado e ter sofrido. Um dia só, naquele dia em que levou Iracilda pela mão para as intimidades do seu quarto, deixava-lhe um saldo inesquecível.
            Ainda se lembrava da primeira noite. Ao amanhecer, os meninos perguntaram:
 – Mamãe, quem é este homem que nos trouxe para aqui?
            - É o segundo pai de vocês. O segundo marido de sua mamãe. Ele gosta muito de vocês. E eu gosto muito dele.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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