ELIANE*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Nunca se vira uma
noite mais comprida do que aquela. Os minutos pareciam mais longos do que as
horas e aquele tique-taque do antigo relógio de parede martelavam na insônia do
Agostinho, como se fosse um malho de mil quilos. O remédio era parar o relógio,
mas logo sentiu que aumentava o silêncio e ficava mais só ainda.
Balançou o pêndulo e
torceu a chave da corda para dar-lhe mais força. Esperava apenas que o dia
clareasse para se libertar daquela angústia. Para onde teria ido Eliane aquela
tonta. Mas ao mesmo tempo reconhecia que ela tinha certa razão.
O culpado era ele,
com aquelas cenas de ciúme com que a atormentava. Eliane, afinal que culpa
poderia ter de ser tão bonita como era. E na verdade nunca havia surpreendido
se oferecendo a ninguém. E por que diabo ficava louco quando algum homem a
cumprimentava ou dava uma espiada furtiva no corpo de Eliane. Quem, por acaso,
poderia encontrá-la sem ter um arrepio de admiração e talvez até de desejo.
Nova como era, com
aqueles olhos, aquela boca, os seios pequeninos e aquela forma do corpo, não
poderia deixar de atrair atenção. Mas daí até ser infiel, ia uma distância
enorme. Agostinho coou um café bem forte, bebeu como quem toma um tônico,
acendeu um cigarro, montou no seu melhor cavalo, olhou para as três saídas e
teve dúvida por qual delas deveria seguir. E nesse instante ocorreu-lhe um
pensamento diabólico.
E se Eliane tivesse
fugindo com alguém. Aquela idéia assustou-o. Procurou na cinta o revolver,
examinou-lhe a carga, aprumou a faca de ponta e saiu ruminando suas
conjecturas. Parecia-lhe inacreditável, mas sempre era fácil acontecer uma
desgraça.
Eliane poderia muito
bem não ter suportado mais suas desconfianças, seus arrufos e ter procurado
libertar-se. Além do mais não havia se casado ainda, por culpa dele próprio que
ia sempre protelando, embora ela sempre falasse com ele a respeito.
Tudo isto era uma
insegurança para Eliane. Agostinho não procurava entender. O que estava claro é
que Eliane o havia deixado, sem uma palavra, sem um gesto ou uma explicação.
Enquanto o cavalo já
suado, trotava pelo caminho duro, Agostinho pensava em Eliane que poderia estar
bem agasalhada nos braços de alguém, completamente esquecida dele. Ou, quem sabe
sozinha e triste desorientada, sem rumo certo a seguir. A primeira hipótese
desesperava-o. Certamente não estaria em casa de parentes onde seria fácil ser
encontrada.
Eliane, ao contrário
de todas essas conjecturas, nem havia saído da cidade. Mudara-se apenas para
outro extremo, como auxiliar em casa de família. Não lhe era mais possível suportar
aquela situação de nem casada nem solteira e muito menos a ciumada de
Agostinho. Com toda a certeza iria perdendo os encantos e terminaria uma criatura
sem opções.
Não era egoísta, mas,
pobre como era, a única coisa de que se poderia valer era dela mesmo. Agostinho
que havia prometido tudo e tinha condições para torná-la feliz, ia sempre
adiando suas promessas e antevia que mais tarde poderia abandoná-la e já era
tarde demais pra ela.
Sempre fora uma moça
correta, limpa de corpo e alma, sonhava com um casamento que lhe desse
estabilidade. Quando Agostinho mostrou-se apaixonado ela própria encheu-se de
confiança.
Ainda inexperiente,
desconhecia as artimanhas dos homens. E por que a gente não se casa logo,
Agostinho?
Deixe completar a
maior idade. Faltam somente alguns meses e quero tirar-te daqui. Não suporto
ver-te como empregada doméstica. Quero-te como dona de casa, a gente se amando
como mereces. Juro-te que nos casaremos logo. Tenho medo que algum outro se apaixone
por ti e nuca mais terei tranqüilidade na vida. Não posso perdê-la.
E foram tantos dias
nessas mesmas promessa e juras que Eliane abandonou a casa da patroa e dormiu a
primeira noite com Agostinho. Começou então a ciumada. Eliane era muito mais do
que Agostinho supunha.
Era uma companheira
excepcionalmente dedicada e com atrativos que Agostinho nunca sonhara. Daí
veio-lhe a ciumada terrível. E conjecturas que poderia perdê-la. Assim como
saíra com ele, poderia ir-se com outro do dia para a noite. E voltar para casa
sem uma leve notícia. Imaginava que ainda teria sido pior se houvesse casado.
Então já não era só
Eliane, mas a sua mulher legítima. Considerava-se, no entanto culpado de tudo.
Uma criatura honesta não poderia suportar uns excessos de zelo, isolar-se do
marido como se eu fosse a única pessoa com o direito de vê-la e admira-la.
Perdia-a só por incompreensão e egoísmo.
E onde andava Eliane.
Sem nenhuma esperança, Agostinho andava numa e noutra direção, contando apenas
com o acaso. Procurava os amigos e os parentes de Eliane e ninguém sabia de seu
destino.
- Nunca mais tivemos
a menor notícia. Deve ter-se ido para bem longe.
Jamais lhe passava
pelas idéias de que pudesse estar na cidade curtindo os seus dissabores e sem
esquecer Agostinho.
Todavia preferia não
encontra-lo. Doía-lhe aquela desconfiança de infidelidade. Poderia suportar
tudo, menos aquele tratamento injusto e inexplicável. Mantinha-se retraída e
reprimindo desejos. Certamente não era a mesma Eliane do tempo de moça, quando
apenas sonhava com o amor. Entretanto, resistia às noites de insônia que lhe
vinham.
Sabia muito bem que
teria namorados se quisesse, mas na realidade não pretendia ser de mais
ninguém. E passavam-se as semanas e o tempo passava com aquele embalo do corpo a
fazê-la sofrer. Deixara de ser a Eliane alegre dos primeiros tempos, como se
estivesse com o pensamento distante. Dona Almira notava a diferença. Não seria
justo deixa-la assim. Certamente algum problema íntimo, natural nas mulheres daquela
idade.
- Vem cá, Eliane. O
que está se passando contigo, menina. Seja franca comigo. Talvez possa te
ajudar de alguma forma.
Eliane ficou parada
por alguns momentos. Pensava friamente sobre sua situação. Poderia ser
dispensada do seu trabalho, uma vez que havia ocultado o seu segredo.
- Vai, fala Eliane.
Entre duas mulheres não deve haver segredo.
Eliane contou-lhe
tudo. Saíra de casa com promessa de casamento. Mas além de não haver se casado
seu companheiro castigava-a com uma ciumada terrível. Não que tivesse culpa de
qualquer espécie. Era simplesmente ciúme doentio do Agostinho. Ninguém poderia
olhar para ela ou fazer-lhe um leve cumprimento. O homem via nisso o começo de
sua desgraça. Tinha medo de perdê-la. Não mais suportei. Estava sendo injusto.
Juro. Nunca havia pensado em
alguém. Antes de tirar-me da casa de minhas tias, nuca havia
tido um namorado. Nada passava de alguns olhares furtivos. No entanto,
Agostinho assustava-se até com os seus melhores amigos. Eu não podia sair de
casa, nem acompanhado com ele. Deixou até de frequentar a igreja. Então não
pude mais. Fugi. Não lhe deixei um roteiro. Era assim dona Almira. E agora
começo, nem sei como, a pensar em Agostinho. Senti saudades dele. A senhora sabe,
como estou, dificilmente conseguiria me casar. Também não quero ser uma
doidinha qualquer. Não sei assim, o que poderia fazer.
- Queres um conselho.
Não custa ir até lá colher informações. Muita coisa poderá ter acontecido. Só
se tem ciúme quando se tem muito amor. O Agostinho deve ter ficado desesperado.
- Tenho medo,
justamente por isto. Ele pode estar pensando que fugi com outro qualquer.
- Então façamos o
seguinte. Mando-lhe meu endereço e digo que quero falar com ele. Tu não
apareces. Nem digo que estais aqui. Vejo a reação do moço e tomar-se-á a
orientação que for mais acertada.
O bilhete foi para o
correio. Eliane ficou na observação. Não poderia ser colhida de surpresa. Não
saía e nem se apresentava à janela. Apenas, furtivamente, procurava reconhecer
que a chamasse à porta.
E não tardou.
Agostinho ao receber o endereço, ficou convicto de que se referia a Eliane. Não
podia ser outra coisa. Desconhecia qualquer dona Almira. Tomou o primeiro
transporte. Bairro da Soledade. O coração batia mais e mais à medida que se ia aproximando.
Será que Eliane está doente ou esteja preparando-se para ser mãe? Deus do céu,
como esta vida é complicada.
Afinal o ônibus para
na pracinha da Soledade. Perguntou as mocinhas da calçada se conheciam dona
Almira.
- Sim. Aquela casa
cor de rosa lá naquela esquina. Aquele casarão. A mais alta daqui de Soledade.
- Mora alguém com
ela?
- Não sabemos. Tem,
sim, filhos. Dois rapazes solteiros. Gente muito direita. Dona Almira é viúva e
rica. Os filhos dirigem a casa comercial.
- Obrigado meninas.
Agostinho pensou logo
em Eliane em casa de viúva com dois rapazes solteiros. Um perigo danado. Mas
seja o que Deus quiser.
Bateu palmas à porta
e demoraram a vir atendê-lo. Era um domingo, claro e saudável. Agostinho ouviu
o canto das graúnas e do galo de campina. Eliane já havia o identificado
através da fresta da porta da sala vizinha. É ele dona Almira. Por favor, não
quero aparecer.
- Não te preocupes.
Sei o que fazer.
- Boa tarde. Quem é o
senhor?
- Agostinho,
Agostinho Sarmento.
- Muito bem. Queira
entrar.
- Recebi sua carta,
minha senhora, e aqui estou à sua disposição.
- Então vamos ao assunto.
O senhor deve estar ansioso.
- Sim, estou.
- Casualmente conheci
uma jovem, chamada Eliane. Contou-me sua história. Disse que o senhor tirou-a
de casa prometendo casamento e não casou como prometera. Além disso, tornara-se
um ciumento doentio. A moça não suportou mais e preferiu deixa-lo em paz. Morria de amores
pelo senhor, mas sentia que estava atormentando sua vida, o que não acha justo
e, então, tomara a decisão de deixá-lo tranqüilo.
- E onde está ela?
- Por ora não estou
autorizada a dize-lhe. Isto depende dela. Em nossa casa não está, embora
gostasse de tê-la aqui com a gente. É uma moça ajuizada, muito direita. Anda
ultimamente muito triste. Tive pena dela e por isto tomei a iniciativa de
procurá-lo.
- E será que ela quer
voltar comigo? Tenho procurado por toda parte. Já andei por todas as cidades
vizinhas, pelos sítios e fazendas. Desiludi-me e considero-me perdido. A vida
para mim é como uma palha seca que o vento leva para onde quer. Fui culpado de
tudo. Amava tanto Eliane que tinha ciúmes até da brisa que lhe acariciava o
rosto. Ela sempre foi fiel, compreensiva, adorável. Eu, um doente de amor.
- Olhe senhor
Agostinho. Pelo que ela me contou, só sairá de onde está casada no religioso e
no civil. Seja como quem for. E nunca como pessoas ciumentas como o senhor.
Sempre foi uma moça honesta, dedicada somente ao Agostinho e ele não
compreendia isso. Foi assim que me contou.
- Queria falar com
Eliane. Pode me dar o endereço?
- Por ora, não. Faz
de conta que sou mãe dela. Sem casamento e acerto de convivência, nunca.
- Mas eu me casarei,
até agora mesmo. De ciúme nem sombra. Eliane não merece e não merecia. E eu é
que não a merecia. Somente depois que ela se foi é que me apercebi da injustiça
que cometia. Sem Eliane estarei perdido para sempre. Ninguém acabará com o
vazio de minha alma. Queria tanto vê-la para confessar o meu grande amor e tudo
quanto trago de arrependimento. Antes nunca a tivesse visto. A senhora não sabe
como se morre de desgosto.
Dona Almira, pediu
licença e entrou prometendo trazer-lhe um cafezinho. Já estava coado. Alguns
minutos depois, entra na sala acompanhada de Eliane. Agostinho perdeu a fala e
ficou imobilizado pela emoção. Não era possível. Eliane ali pertinho dele, os
mesmos olhos, o mesmo corpo atraente e um sorrisinho querendo soltar-se de boca
mais bela do mundo.
- És tu, Eliane.
Posso falara contigo, apertar-te as mãos Eliane. Tu me perdoas, esqueces tudo
que fiz contigo, imerecidamente, Eliane. Posso dizer o teu nome. Durante todo
esse tempo chamo por ti, como se estivesse brincando de te esconder, Eliane. Fiz
muitas promessas para te encontrar. E agora vou rezar para esta santa Almira
que te acolheu e colocou-me diante de ti, mesmo que não queiras mais. Já foi
muito ver-te e saber que encontrastes uma segunda mãe.
- Pois é, Agostinho.
Eliane desejava notícias suas. E agora é ela quem vai decidir. Somente uma
coisa posso adiantar-lhe. Não sairá desta casa sem estar casada e para uma
convivência de bons amigos. Farei tudo o quanto Eliane desejar, contanto que a
tenha de volta sem ressentimento.
- Até hoje,
Agostinho, privei-me de tudo. Dona Almira sabe de minha conduta. Deixei-te por
que não confiava em mim. E
isto me magoava demais. Também, não deseja ser uma mãe solteira. E antes que
isto viesse acontecer, tomei aquela decisão. Nunca deixei de ti querer bem.
Mais magoastes demais. Honesta como sempre fui e sabes disto, não podia mais
conviver com as tuas desconfianças.
- Acompanho-te, sim,
mas, casada e merecendo a tua confiança. Fora disto, apenas desejo-te
felicidade. Procuras outra, o que é tão fácil.
- Olha Eliane, hoje sou
outro Agostinho. E naquela casa só está faltando Eliane. Não irás fazer nova
experiência.
Oito dias depois já
estavam casados. Eliane confessou:
- Não quero
perder-te, mas me perderás para toda vida se não confiares em mim. Casamento não
é pão e água. Isso se tem sem ele.
E já hoje quem
visitar as casa de Agostinho, encontrará um casal de velhinhos de cabeça branquinha
e ainda como dois namorados. Ficam sempre se olhando como nunca se tivessem
visto. Quando falavam relembrando o passado, riam gostosamente e davam
palmadinhas um no outro como se o amor estivesse começando.
- E ainda queres
fugir?
- Ainda tens ciúmes
de mim?
E riram como duas
crianças que haviam feito uma diabrura.
E viviam nesse enleio
gostoso. Risos, palmadinhas e saudades da mocidade. Da cama macia e do cheiro
dos travesseiros.
- Safadinha!...
- Safadão!...
*O conto faz parte do
livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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