terça-feira, 24 de março de 2015

ELIANE


ELIANE*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Nunca se vira uma noite mais comprida do que aquela. Os minutos pareciam mais longos do que as horas e aquele tique-taque do antigo relógio de parede martelavam na insônia do Agostinho, como se fosse um malho de mil quilos. O remédio era parar o relógio, mas logo sentiu que aumentava o silêncio e ficava mais só ainda.
Balançou o pêndulo e torceu a chave da corda para dar-lhe mais força. Esperava apenas que o dia clareasse para se libertar daquela angústia. Para onde teria ido Eliane aquela tonta. Mas ao mesmo tempo reconhecia que ela tinha certa razão.
O culpado era ele, com aquelas cenas de ciúme com que a atormentava. Eliane, afinal que culpa poderia ter de ser tão bonita como era. E na verdade nunca havia surpreendido se oferecendo a ninguém. E por que diabo ficava louco quando algum homem a cumprimentava ou dava uma espiada furtiva no corpo de Eliane. Quem, por acaso, poderia encontrá-la sem ter um arrepio de admiração e talvez até de desejo.
Nova como era, com aqueles olhos, aquela boca, os seios pequeninos e aquela forma do corpo, não poderia deixar de atrair atenção. Mas daí até ser infiel, ia uma distância enorme. Agostinho coou um café bem forte, bebeu como quem toma um tônico, acendeu um cigarro, montou no seu melhor cavalo, olhou para as três saídas e teve dúvida por qual delas deveria seguir. E nesse instante ocorreu-lhe um pensamento diabólico.
E se Eliane tivesse fugindo com alguém. Aquela idéia assustou-o. Procurou na cinta o revolver, examinou-lhe a carga, aprumou a faca de ponta e saiu ruminando suas conjecturas. Parecia-lhe inacreditável, mas sempre era fácil acontecer uma desgraça.
Eliane poderia muito bem não ter suportado mais suas desconfianças, seus arrufos e ter procurado libertar-se. Além do mais não havia se casado ainda, por culpa dele próprio que ia sempre protelando, embora ela sempre falasse com ele a respeito.
Tudo isto era uma insegurança para Eliane. Agostinho não procurava entender. O que estava claro é que Eliane o havia deixado, sem uma palavra, sem um gesto ou uma explicação.
Enquanto o cavalo já suado, trotava pelo caminho duro, Agostinho pensava em Eliane que poderia estar bem agasalhada nos braços de alguém, completamente esquecida dele. Ou, quem sabe sozinha e triste desorientada, sem rumo certo a seguir. A primeira hipótese desesperava-o. Certamente não estaria em casa de parentes onde seria fácil ser encontrada.
Eliane, ao contrário de todas essas conjecturas, nem havia saído da cidade. Mudara-se apenas para outro extremo, como auxiliar em casa de família. Não lhe era mais possível suportar aquela situação de nem casada nem solteira e muito menos a ciumada de Agostinho. Com toda a certeza iria perdendo os encantos e terminaria uma criatura sem opções.
Não era egoísta, mas, pobre como era, a única coisa de que se poderia valer era dela mesmo. Agostinho que havia prometido tudo e tinha condições para torná-la feliz, ia sempre adiando suas promessas e antevia que mais tarde poderia abandoná-la e já era tarde demais pra ela.
Sempre fora uma moça correta, limpa de corpo e alma, sonhava com um casamento que lhe desse estabilidade. Quando Agostinho mostrou-se apaixonado ela própria encheu-se de confiança.
Ainda inexperiente, desconhecia as artimanhas dos homens. E por que a gente não se casa logo, Agostinho?
Deixe completar a maior idade. Faltam somente alguns meses e quero tirar-te daqui. Não suporto ver-te como empregada doméstica. Quero-te como dona de casa, a gente se amando como mereces. Juro-te que nos casaremos logo. Tenho medo que algum outro se apaixone por ti e nuca mais terei tranqüilidade na vida. Não posso perdê-la.
E foram tantos dias nessas mesmas promessa e juras que Eliane abandonou a casa da patroa e dormiu a primeira noite com Agostinho. Começou então a ciumada. Eliane era muito mais do que Agostinho supunha.
Era uma companheira excepcionalmente dedicada e com atrativos que Agostinho nunca sonhara. Daí veio-lhe a ciumada terrível. E conjecturas que poderia perdê-la. Assim como saíra com ele, poderia ir-se com outro do dia para a noite. E voltar para casa sem uma leve notícia. Imaginava que ainda teria sido pior se houvesse casado.
Então já não era só Eliane, mas a sua mulher legítima. Considerava-se, no entanto culpado de tudo. Uma criatura honesta não poderia suportar uns excessos de zelo, isolar-se do marido como se eu fosse a única pessoa com o direito de vê-la e admira-la. Perdia-a só por incompreensão e egoísmo.
E onde andava Eliane. Sem nenhuma esperança, Agostinho andava numa e noutra direção, contando apenas com o acaso. Procurava os amigos e os parentes de Eliane e ninguém sabia de seu destino.
- Nunca mais tivemos a menor notícia. Deve ter-se ido para bem longe.
Jamais lhe passava pelas idéias de que pudesse estar na cidade curtindo os seus dissabores e sem esquecer Agostinho.
Todavia preferia não encontra-lo. Doía-lhe aquela desconfiança de infidelidade. Poderia suportar tudo, menos aquele tratamento injusto e inexplicável. Mantinha-se retraída e reprimindo desejos. Certamente não era a mesma Eliane do tempo de moça, quando apenas sonhava com o amor. Entretanto, resistia às noites de insônia que lhe vinham.
Sabia muito bem que teria namorados se quisesse, mas na realidade não pretendia ser de mais ninguém. E passavam-se as semanas e o tempo passava com aquele embalo do corpo a fazê-la sofrer. Deixara de ser a Eliane alegre dos primeiros tempos, como se estivesse com o pensamento distante. Dona Almira notava a diferença. Não seria justo deixa-la assim. Certamente algum problema íntimo, natural nas mulheres daquela idade.
- Vem cá, Eliane. O que está se passando contigo, menina. Seja franca comigo. Talvez possa te ajudar de alguma forma.
Eliane ficou parada por alguns momentos. Pensava friamente sobre sua situação. Poderia ser dispensada do seu trabalho, uma vez que havia ocultado o seu segredo.
- Vai, fala Eliane. Entre duas mulheres não deve haver segredo.
Eliane contou-lhe tudo. Saíra de casa com promessa de casamento. Mas além de não haver se casado seu companheiro castigava-a com uma ciumada terrível. Não que tivesse culpa de qualquer espécie. Era simplesmente ciúme doentio do Agostinho. Ninguém poderia olhar para ela ou fazer-lhe um leve cumprimento. O homem via nisso o começo de sua desgraça. Tinha medo de perdê-la. Não mais suportei. Estava sendo injusto. Juro. Nunca havia pensado em alguém. Antes de tirar-me da casa de minhas tias, nuca havia tido um namorado. Nada passava de alguns olhares furtivos. No entanto, Agostinho assustava-se até com os seus melhores amigos. Eu não podia sair de casa, nem acompanhado com ele. Deixou até de frequentar a igreja. Então não pude mais. Fugi. Não lhe deixei um roteiro. Era assim dona Almira. E agora começo, nem sei como, a pensar em Agostinho. Senti saudades dele. A senhora sabe, como estou, dificilmente conseguiria me casar. Também não quero ser uma doidinha qualquer. Não sei assim, o que poderia fazer.
- Queres um conselho. Não custa ir até lá colher informações. Muita coisa poderá ter acontecido. Só se tem ciúme quando se tem muito amor. O Agostinho deve ter ficado desesperado.
- Tenho medo, justamente por isto. Ele pode estar pensando que fugi com outro qualquer.
- Então façamos o seguinte. Mando-lhe meu endereço e digo que quero falar com ele. Tu não apareces. Nem digo que estais aqui. Vejo a reação do moço e tomar-se-á a orientação que for mais acertada.
O bilhete foi para o correio. Eliane ficou na observação. Não poderia ser colhida de surpresa. Não saía e nem se apresentava à janela. Apenas, furtivamente, procurava reconhecer que a chamasse à porta.
E não tardou. Agostinho ao receber o endereço, ficou convicto de que se referia a Eliane. Não podia ser outra coisa. Desconhecia qualquer dona Almira. Tomou o primeiro transporte. Bairro da Soledade. O coração batia mais e mais à medida que se ia aproximando. Será que Eliane está doente ou esteja preparando-se para ser mãe? Deus do céu, como esta vida é complicada.
Afinal o ônibus para na pracinha da Soledade. Perguntou as mocinhas da calçada se conheciam dona Almira.
- Sim. Aquela casa cor de rosa lá naquela esquina. Aquele casarão. A mais alta daqui de Soledade.
- Mora alguém com ela?
- Não sabemos. Tem, sim, filhos. Dois rapazes solteiros. Gente muito direita. Dona Almira é viúva e rica. Os filhos dirigem a casa comercial.
- Obrigado meninas.
Agostinho pensou logo em Eliane em casa de viúva com dois rapazes solteiros. Um perigo danado. Mas seja o que Deus quiser.
Bateu palmas à porta e demoraram a vir atendê-lo. Era um domingo, claro e saudável. Agostinho ouviu o canto das graúnas e do galo de campina. Eliane já havia o identificado através da fresta da porta da sala vizinha. É ele dona Almira. Por favor, não quero aparecer.
- Não te preocupes. Sei o que fazer.
- Boa tarde. Quem é o senhor?
- Agostinho, Agostinho Sarmento.
- Muito bem. Queira entrar.
- Recebi sua carta, minha senhora, e aqui estou à sua disposição.
- Então vamos ao assunto. O senhor deve estar ansioso.
- Sim, estou.
- Casualmente conheci uma jovem, chamada Eliane. Contou-me sua história. Disse que o senhor tirou-a de casa prometendo casamento e não casou como prometera. Além disso, tornara-se um ciumento doentio. A moça não suportou mais e preferiu deixa-lo em paz. Morria de amores pelo senhor, mas sentia que estava atormentando sua vida, o que não acha justo e, então, tomara a decisão de deixá-lo tranqüilo.
- E onde está ela?
- Por ora não estou autorizada a dize-lhe. Isto depende dela. Em nossa casa não está, embora gostasse de tê-la aqui com a gente. É uma moça ajuizada, muito direita. Anda ultimamente muito triste. Tive pena dela e por isto tomei a iniciativa de procurá-lo.
- E será que ela quer voltar comigo? Tenho procurado por toda parte. Já andei por todas as cidades vizinhas, pelos sítios e fazendas. Desiludi-me e considero-me perdido. A vida para mim é como uma palha seca que o vento leva para onde quer. Fui culpado de tudo. Amava tanto Eliane que tinha ciúmes até da brisa que lhe acariciava o rosto. Ela sempre foi fiel, compreensiva, adorável. Eu, um doente de amor.
- Olhe senhor Agostinho. Pelo que ela me contou, só sairá de onde está casada no religioso e no civil. Seja como quem for. E nunca como pessoas ciumentas como o senhor. Sempre foi uma moça honesta, dedicada somente ao Agostinho e ele não compreendia isso. Foi assim que me contou.
- Queria falar com Eliane. Pode me dar o endereço?
- Por ora, não. Faz de conta que sou mãe dela. Sem casamento e acerto de convivência, nunca.
- Mas eu me casarei, até agora mesmo. De ciúme nem sombra. Eliane não merece e não merecia. E eu é que não a merecia. Somente depois que ela se foi é que me apercebi da injustiça que cometia. Sem Eliane estarei perdido para sempre. Ninguém acabará com o vazio de minha alma. Queria tanto vê-la para confessar o meu grande amor e tudo quanto trago de arrependimento. Antes nunca a tivesse visto. A senhora não sabe como se morre de desgosto.
Dona Almira, pediu licença e entrou prometendo trazer-lhe um cafezinho. Já estava coado. Alguns minutos depois, entra na sala acompanhada de Eliane. Agostinho perdeu a fala e ficou imobilizado pela emoção. Não era possível. Eliane ali pertinho dele, os mesmos olhos, o mesmo corpo atraente e um sorrisinho querendo soltar-se de boca mais bela do mundo.
- És tu, Eliane. Posso falara contigo, apertar-te as mãos Eliane. Tu me perdoas, esqueces tudo que fiz contigo, imerecidamente, Eliane. Posso dizer o teu nome. Durante todo esse tempo chamo por ti, como se estivesse brincando de te esconder, Eliane. Fiz muitas promessas para te encontrar. E agora vou rezar para esta santa Almira que te acolheu e colocou-me diante de ti, mesmo que não queiras mais. Já foi muito ver-te e saber que encontrastes uma segunda mãe.
- Pois é, Agostinho. Eliane desejava notícias suas. E agora é ela quem vai decidir. Somente uma coisa posso adiantar-lhe. Não sairá desta casa sem estar casada e para uma convivência de bons amigos. Farei tudo o quanto Eliane desejar, contanto que a tenha de volta sem ressentimento.
- Até hoje, Agostinho, privei-me de tudo. Dona Almira sabe de minha conduta. Deixei-te por que não confiava em mim. E isto me magoava demais. Também, não deseja ser uma mãe solteira. E antes que isto viesse acontecer, tomei aquela decisão. Nunca deixei de ti querer bem. Mais magoastes demais. Honesta como sempre fui e sabes disto, não podia mais conviver com as tuas desconfianças.
- Acompanho-te, sim, mas, casada e merecendo a tua confiança. Fora disto, apenas desejo-te felicidade. Procuras outra, o que é tão fácil.
- Olha Eliane, hoje sou outro Agostinho. E naquela casa só está faltando Eliane. Não irás fazer nova experiência.
Oito dias depois já estavam casados. Eliane confessou:
- Não quero perder-te, mas me perderás para toda vida se não confiares em mim. Casamento não é pão e água. Isso se tem sem ele.
E já hoje quem visitar as casa de Agostinho, encontrará um casal de velhinhos de cabeça branquinha e ainda como dois namorados. Ficam sempre se olhando como nunca se tivessem visto. Quando falavam relembrando o passado, riam gostosamente e davam palmadinhas um no outro como se o amor estivesse começando.
- E ainda queres fugir?
- Ainda tens ciúmes de mim?
E riram como duas crianças que haviam feito uma diabrura.
E viviam nesse enleio gostoso. Risos, palmadinhas e saudades da mocidade. Da cama macia e do cheiro dos travesseiros.
- Safadinha!...
- Safadão!...
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





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