MUDAR DE
CLIMA*
João
Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Marcolino não se dava bem com os ares da zona do Brejo. Sempre tinha um achaque a
lamentar. E dizia: só pode ser o clima brejeiro. Úmido no inverno, chuva fria
de maio a começo de agosto. Pensava em sair, ganhar o sertão ou subir a serra da
Borborema e se ficar do lado de lá, já nas quebradas para o sertão. Precisava
acabar com aquela murrinha, com aquela tristeza desgraçada de quem estava
caminhando para o pior. E tinha um medo danado de morrer. Quando ia às missas e
assistia as pregações do padre Júlio, as carnes lhe tremiam só em ouvir falar
na vida do outro mundo, depois de desencarnado.
O
certo mesmo era vender tudo e largar-se para outras terras onde adquirisse
saúde e acabasse aquele nervosíssimo desalentador. Não era brincadeira, andar
com medo de tudo. Procurava ir às festas para se distrair, mas não havia
consolo. Sempre o mesmo desengano de vida, como se tivesse alguém costurando
uma mortalha pertinho dele. Na certa, se continuasse assim, no mínimo iria
endoidar. E apavorava-se com a ideia de ir para um hospício, conviver com a
legião dos doidos. Tinha medo dos dias treze, das sextas-feiras, do mês de
agosto, da lua minguante e desgraça ainda maior era uma coruja “rasga-mortalha”
passar à noite cantando sobre o telhado de sua casa. Bicho agourento. Causava-lhe
arrepios na alma já abalada. Precisava dar um jeito naquela tortura. E o meio
era mesmo sair para outros mundos.
Vendeu
à casa da rua, o sítio, os animais, botou o dinheiro no bolso e o pé na
estrada. Nem disse nada a ninguém, nem aos parentes, as tias que ainda lhe
restavam. O fato é que desapareceu do dia para a noite, montado no seu
cavalinho pedrês e baixeiro, furador de estrada. Subiu o resto da Borborema,
pegou a chapada da serra e tinha até receio de olhar para trás. O importante
era sair daqueles grotões dos contrafortes da serra, tão cheios de sombra e de
corujas rasga-mortalha. Até o cachorro Lamparina havia dado ao vizinho. Na
primeira cidade que encontrou, foi a uma loja, comprou roupa completa, um para
de sapatos novos e um chapéu claro. Tinha verdadeiro pavor a coisas pretas e
marrons. Mudou toda a indumentária e deixou para trás tudo que usava. E teve
uma lembrança. Quem sabe se o cavalo pedrês não levava uma pouco de azar que
lhe perseguia. Trocou-o na primeira oportunidade, inclusive a sela e os
arreios.
Precisava
ir só, sem qualquer coisa que pudesse fazer-lhe recordar coisas passadas. Seria
bom também trocar o dinheiro que levava. E trocou até o último vintém. Estava,
pois, desligado do Brejo, da terra dos seus pesares.
Mas
lhe ocorreu ainda uma lembrança. Trazia na memória coisas do seu passado. Precisava
esquecer. Mordeu o lábio inferior, assuou o nariz, coçou a cabeça e tomou uma
decisão definitiva. Esquecer para sempre a sua terra, todos os recantos por
onde havia pisado. E quando lhe vinha alguma vaga lembrança, espantava com a
mão espalmada e mudava de pensamento. Afinal, Marcolino entrou na cidadezinha
de Carrapateiras, hospedou-se no hotel de dona Sinhá, tomou um banho para tirar
a poeira da viagem e foi voltear pelas ruas quase desertas, sem destino.
Enfadou-se e retornou ao hotel para o jantar. Sentou-se à mesa e, se, pois a
olhar os quadros e retratos pendurados pelas paredes. Lá estava o retrato de
uma jovem com um sorriso pendurado nos lábios. Não pode mais despregar os olhos
daquela visão atraente e bela.
-
Aquela é minha filha. Filha única. Está para chegar do colégio. É a Mariana.
Menina pobre, mas estudiosa, simples é a joia dos meus amores.
-
Muito bonita...
-
Vai conhecê-la daqui a pouco.
Marcolino parou o jantar quando Mariana foi chegando. O retrato era apenas uma amostra do
que era Mariana.
-
Vem cá, Mariana. – “Este moço é o Sr. Marcolino, nosso hóspede”. Chegou hoje à
tarde. Pretende ficar por aqui. Veio da zona do Brejo. Está adorando o Sertão. Gosta
do calor de nossa terra, das planícies, da serra lá distante. Passou um tempão
só falando nisso. A terra onde vivia era montanhosa, cheia de grotões, úmida e
chuvosa. Fugiu de lá. Quer comprar terras por aqui.
-
Terras ou outra coisa qualquer onde possa ter uma boa ocupação e uma vida tranquila. Não quer tomar casa. Prefere ser nosso pensionista.
-
Estava admirando aquele retrato quando dona Sinhá medisse que era você, mais
encantadora do que no retrato. Espero que seja uma moça feliz.
-
Ah! Gente pobre nunca pode ser totalmente feliz. Também não sou uma moça
infeliz. Tenho mamãe, estudo, não sou das piores alunas e acho que já é o
bastante.
Marcolino,
já noutros ares, via o mundo com outras cores. A timidez e o abatimento
sentimental, já não o castigavam como uma chuva de pedra em cima dos seus
nervos. Chegava até a pensar que não era mais Marcolino. A amplidão daquele
mundão novo, parecia ter-lhe aberto às asas para largos vôos.
E
Mariana passou a fazer parte de sua vida. Antes, nos seus desenganos, nem se
lembrava das mulheres. Via-as como se não tivesse nada a ver com elas. Bonitas
ou feia, nova ou já durona, era-lhe indiferente. Mas, agora, Mariana começava a
bulir com ele. Era uma espécie de molho que lhe dava gosto na vida. E achava aquilo
engraçado. Com vinte e dois anos e já pisando nos vinte e três, era um
destreinado em matéria de amor. Nem sabia como expressar os seus sentimentos. E
ficava-se a ver Mariana, os seus cabelos castanhos batendo nos ombros, os seus
olhos esverdeados e alegres, os seios pequenos fazendo saliência na blusa e na
boca sempre risonha.
Do
jantar em família, a conversa foi para a calçada, um velho habito da “família”,
e de vários habitantes da cidade, ao bate papo no hotel de dona Sinhá. Mariana
interessava-se em ouvir Marcolino contar a viagem e descrever as coisas de sua
terra. A casa na meia encosta, o sol desaparecendo cedo por trás dos
contrafortes da serra, os Pau-D’arcos florados, os engenhos de rapadura, as
festas da cidade. Mas Marcolino não falava de seus amores.
Dona Sinhá motivou-o.
-
O senhor não tem saudades de sua gente, de alguma moça apaixonada.
-
Ah! Saudades eu tenho, mas apenas de minhas duas tias as quais nem sabem por
onde ando. Vou escrever-lhes logo amanhã. Se soubesse de minha fuga, não me
teriam deixado sair. Não me dava bem na zona do Brejo, o seu céu estrelado, os
seus luares, os campos abertos, essas planícies sem fim. Lá o céu é sempre
sombreado, o horizonte limitado.
-
E não gostaria também de conhecer a gente do Sertão. Creio que é muito
diferente, nos hábitos e nos aspecto, bem diferente do povo de sua terra.
-
Exatamente. Sempre tive a impressão, que se confirma agora, de que o Sertanejo
é mais alegre, mais corajoso e mais atraente. Deus me livre de sair mais daqui.
Sabe como é o temperamento das pessoas. Cansei-me das ladeiras da vida, subindo
e descendo. Vivia angustiado. O clima me castigava. Sim deveria ser o clima e
aquele ambiente limitado, a luta desesperada pela sobrevivência. O povo de lá é
bom, acolhedor e diligente, Mas quase que só tem tempo para lutar e não para
viver. De janeiro a dezembro o tempo é pouco para cuidar da agricultura, dos
bichos e dos afazeres sem fim. Só se sai um pouco fora disso, nas quatro festas
do ano.
-
E as mulheres de lá serão iguais as daqui?
-
Talvez sim, talvez não. Aliás, mulher é sempre mulher em toda parte. Todo mundo
gosta delas. Creio que nada se faz sem pensar nelas. Até nas missas, muita
gente vai, não para rezar, mas para ter oportunidade de vê-las. Até os padres
quando se viram para o povo, correm os olhos na igreja toda... Nem se lembra
naquele instante, do que esta fazendo. Eu fui diferente lá no meu ambiente.
Embora vivesse economicamente bem, nunca tive uma namorada a sério, pensando em
casar. Tudo coisas distantes e passageiras. Meus pensamentos voavam para o
Sertão. Deveria ser aqui onde estaria minha felicidade. Por ora sou apenas um
desconhecido. Ninguém sabe quem sou e nem o que pretendo. Sei, apenas, que me
reencontrei comigo mesmo. Já me sinto completamente mudado. Aqui, as portas e
as janelas do meu coração abriram-se de par em par. E parece-me que sei bem
quem as abriu. E sem se aperceber fixou os olhos em Mariana.
Deu
para notar. Mariana observou e entendeu a alusão. E na verdade Marcolino,
apesar de ainda um quase desconhecido, não lhe era indiferente. Havia qualquer
coisa que a atraia em Marcolino. Talvez a simplicidade no viver e no falar. No
entanto, não tinha muitas esperanças. Havia em Carrapateiras muitas jovens
ricas, filhas de comerciantes e fazendeiros. Ela, filha de dona de um hotelzinho
que mal dava para mantê-los, não deveriam mesmo nutrir esperanças. Já estudava
com um sacrifício enorme da mãe. Ajudava, é verdade, no arranjo da casa, na
cozinha e em servir os hóspedes, especialmente nos dias de feira, de festas ou
de eleição.
Tinha
pena de dona Sinhá e por vezes falava até em abandonar os estudos. Não queria
que a mãe se sacrificasse tanto. O pai havia morrido tão cedo, deixando-lhes
apenas a casa que se transformara em hotel, como meio de sobrevivência. E
aquilo havia sido um verdadeiro milagre. Também não havia outro apelo. Os
parentes de dona Sinhá, não tiveram como ajudá-la materialmente.
E
os tempos foram se passando e Marcolino acima e abaixo, tentando um negócio
razoável e compatível com as suas economias. E foi nessa fase que a estrada de
rodagem chegou a Carrapateiras. O movimento começou a crescer. O hotel recebia
mais hóspede. Marcolino teve, então, uma ideia, Propor a dona Sinhá, uma
sociedade. Ampliar o hotel. Remodelar a casa ou adquirir outra. Com maior número
de cômodos, antes que outro se aventurasse a isso. Comprar mobiliário mais
acolhedor e colocar uma placa, “Novo Hotel”, com um sub-letreiro – “Familiar”.
-
Mas senhor Marcolino, será que compensa. O seu dinheiro empatado nisso. E se
não der certo?
-
Ora, não há nem dúvida. Dia a dia chega mais gente. Muitas pessoas estão se hospedando
em cassa de amigos e de políticos. Toda essa gente será atraída, desde que o
hotel ofereça boas condições. Só mesmo se a senhora não confiar em mim.
-
Não, não, senhor Marcolino. Não é isto. Confio demais. Receio é que o senhor
não se de bem.
-
Aceita o não?
-
Bem. Se o senhor quer se arriscar?
-
Deixe comigo.
E
dentro de uma semana, Marcolino já havia comprado uma casarão na rua principal,
bem ao lado da praça e perto da casa do chefe político, o manda chuva de
Carrapateiras. Os pedreiros e carpinteiros entraram em ação. Não se dizia o que
seria. Marcolino queria causar um impacto. Haveria dois salões de refeições. Um
para a elite, outro para o povo pobre. Oito quartos com camas adequadas e
guarda roupas com espelho. O dinheiro ia-se embora quase todo, mas voltaria
assobiando. E o hotel estourou como uma bomba.
E
surgiram os comentários:
–
“Estão vendo aí”. Chega um sujeito de fora, endinheirado e prejudica dessa
forma a dona Sinhá. A coitada vai passar miséria. Gente daqui, que a conhece,
não se atreveria a isso. Um espertalhão. Um morcego. Chupa o sangue das
criaturas e ainda anda rindo por aí.
-
Também não apareceu alguém para ajudar dona Sinhá. A coitada tem lutado como um
bicho para viver e educar a filha. Agora é que estão se lembrando dela. É
sempre assim. Porque não melhoraram o seu hotelzinho. Agora, como vai viver com
a filha, ninguém sabe. A freguesia muda-se toda, é lógico. Um hotelzão daquele
e logo na praça principal.
-
Vai falir. Ninguém vai sair lá dona Sinhá.
-
Ficará só com os “pés rapados”. Parece que não conheces esta humanidade. Ora
bolas. Quem vai se preocupar que dona Sinhá viva ou morra com a filha. Engano
teu.
Foi
marcada a inauguração do hotel. O vigário foi convidado par a benzedura. As
autoridades e pessoas de mais prestígio também. E aí foi a surpresa. Dona sinhá e mariana estavam lá à frente das festividades.
E uma das mais ruidosas e indiscretas interpelou dona Sinhá.
-
Deixastes o teu hotelzinho para te empregares no hotel desse forasteiro, que
nem se sabe donde veio e só para acabar contigo. E aí ainda mais, trazeres tua
filha moça para as unhas dos viajantes. É uma pena.
-
Como. Empregada do Sr. Marcolino. Quem te contou isso. Puro engano teu. Como há
tanta gente maledicente. Sou simplesmente a dona, a proprietária e, além disso,
a próxima sogra do Marcolino, noivo da Mariana. Será que ouvistes bem. Vou
repetir. Proprietária do novo hotel e Mariana noiva de Marcolino. Gostastes?
Talvez não, mas é isto mesmo. O velho hotel será remodelado para residência dos
três. Marcolino, eu e Mariana, já planejamos tudo. Dinheiro está aí sobrando.
Acabaram-se as dificuldades e agora Carrapateiras tem onde hospedar a fina flor
da sociedade. Vamos, vou mostrar-te um apartamento reservado para as pessoas de
destaque. É isto mesmo, minha filha. Mariana encontrou o noivo que desejava.
Marcolino, educado, bom e honesto é o que eu poderia almejar de melhor para
Mariana. Olha ali os dois. Que amor de noivos.
-
E se esse Marcolino não for o que pensam?
-
Se fosse noivo de tua filha, seria uma joia rara. Não te preocupes não. Eles se
amam e o Marcolino, adora a menina. Vê como está bem vestida e alegre. Basta
isso para pagar todos os meus sacrifícios. Quero pedir-te uma coisa. Toma conta
da casa. Serve-te à vontade com tuas amigas.
E
chamou mariana.
-
Olha Mariana, aqui é a dona Sinésia, que, aliás, já conheces.
Apresentou
Marcolino, o noivo de Mariana.
-
Um grande prazer em cumprimentá-la. Sou um hospede de dona Sinhá e se ela consentir,
seu futuro genro. Estou encantado com a sua terra. Só aqui poderia encontrar
uma princesinha assim. Se eu fosse rico não seria tão feliz. Basta-me ser
hospede de dona Sinhá e noivo da Mariana.
O
novo hotel enchia-se. Quem viajava pela região tinha obrigatoriamente de pousar
em Carrapateiras. Valia a pena. Boa dormida e feições fartas e bem temperadas.
O
dinheiro chegava e o hotel se ampliava. Marcolino, casado, nem se lembrava de
mais do Brejo. Ia lá visitar as tias, que, afinal, viviam bem. Um dia iriam a
Carrapateiras, conhecer mariana e dona Sinhá, de quem tanto falava Marcolino.
-
Vistes mana, como está o Marcolino? Nem parece mais aquele sorumbático
amorrinhado que se consumia aqui. Dá até vontade de a gente ir-se também
embora. Pelo retrato, a Mariana é um amorzinho. Sertaneja alegre e de uma
simpatia invejável.
-
Foi o clima, o clima. Se a gente tivesse se mandado não tinha caído nessa de
ter que morrer solteironas.
-
E quem sabe se não seria bom tentar. Quem não trisca, não petisca... Vende-se este
engenho velho e posa-se no caminho.
-
Baixa esse teu fogo, Adelaide.
-
Baixar como, Santina, se aqui todo mundo conhece a gente.
-
Vamos procurar comprador...
E
uma olhou para a outra engolindo em seco.
-
É o calor do Sertão, faz milagre.
-
Se faz...
Em.
11.5.85
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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