sexta-feira, 23 de agosto de 2013

ALVINA



ALVINA*

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)





         Alvina era o tipo da mulher que todos desejavam. O único defeito que possuía era ser bonita. Bonita de fazer medo e, por isso, os rapazes da cidade tinham certo receio de casar com ela. Seria uma temeridade sair com uma perfeição daquela sem tomar os olhares atrevidos dos homens.

          E Alvina desesperava-se com isso. Desejava casar-se como aconteciam com as outras moças; se por mais que ensaiasse namoros, logo voltava tudo ao que era. Procurava em si a causa dessas fugas e não lograra entendê-las. Tinha que ser mesmo má sorte. Como não poderia ser qualquer falha física, o motivo deveria estar em sua maneira de expressão, num cacoete qualquer desagradável.

          Não era uma moça rica, é bem verdade, mas também não era uma pobretona. O pai possuía uma das melhores casas comerciais da cidade e era homem respeitado e cercado de boas amizades.

         E se não era problema de família, de origem, também não era uma moça recatada, o que diabo poderia ser. Estava no pique de sua mocidade, procurava se apresentar como suas companheiras e o que lhe parecia era que quanto mais procurava se adornar, se tornava mais vistosa e atraente, mais se distanciava da rapaziada.

         Confessa quase desatinada, desapontada, deliberou recolher-se o mais possível para fugir a tantas desilusões e experiências amargas. Percebia que a turma gostava de vê-la, de admirara-la e não passava disso.

            Dona Alzira, passou a estranhar o comportamento da filha, sempre metida dentro de casa, pensativa, como estivesse escondendo-se de alguma coisa.

          Resolvera então, confessa-la.

         - Vem cá, Alvina, o que está acontecendo contigo. Quase não tens saído. Amarrada nos teus bordados, como quem perdeu o gosto de viver. Deves ser franca com a tua mãe. Uma mãe sempre tem remédio para essas coisas do coração. Por que não tens saído como fazias antes? Sofrestes alguma decepção, alguém te ofendeu, perdeste por acaso a amizade de tuas colegas. Abre o teu coração e conta-me o que há contigo. Não quero te ver assim, enclausurada, triste, alheia ao mundo que te cerca. Estás, por acaso, com alguma doença oculta. Sentes alguma coisa estranha que te assusta. Às vezes pode ser apenas impressão tua. Eu e teu pai andamos muito preocupados com essa tua atitude. Não avalias como isto nos dói. Temos feito mil e umas conjecturas e a nada chegamos. Para te falar a verdade, andamos com medo de ti. Quando se tem apenas um filho, como é o nosso caso, as preocupações aumentam.  Não foi algum namoradinho que te decepcionou. Tens por acaso, alguma paixão oculta, não correspondida?

          - Nada disso, mamãe. É que ninguém me quer. Os rapazes têm medo de mim é o que me parece. Sei que não sou tão feia assim e nem desagradável. Mas deve ser uma espécie de maldição. Não sou ciumenta nem exijo demais. Aproxima-se e fogem como se eu fosse algum espantalho. Enquanto isso, minhas colegas encontram namorados com facilidade. Nenhuma deixa de ter e só eu não, por mais que tente e me esforce.

         - É incrível. Uma moça tão bonita como és; irradiando simpatia. Como pode se entender isso Alvina. Não será que se assustam com a beleza, minha filha. Julgam que não te merecem ou que depois de noiva ou casada, sejas muito ambicionada. Tudo pode acontecer. Além disso, não és uma moça desvalida e sem recato. Teu comportamento é exemplar. Poderia falar com tuas amigas. Talvez elas saibam o que há a teu respeito.

         - Ora, mãe, elas não dirão nada. Não vão querer orientar quem pode ser uma concorrente.

- Pois deixa comigo. Hei de encontrar uma dica. Mas não te preocupes e não te impressiones.

         Dona Alzira tomou a iniciativa de falar com a mamãe de alguns rapazes dos mais atraentes da cidade.

- Olha fulana, sonda o teu filho sobre o que ele acha de Alvina. Como sabes não é uma moça feia e até hoje se tem revelado direita e honesta. No entanto não tem sorte nos amores. Os rapazes fogem dela com se tivessem medo. E isto está gerando um problema para Alvina. Enclausurou-se e se tornou uma criatura desalentada e triste.

As respostas foram sempre às mesmas. Achavam-na bonita demais para não deixar de ser desejada por todos. Já houve até apostas de noivado com Alvina. Mas na verdade, é que quem se casar com uma mulher tão ambicionada, terá sem dúvida muitos adoradores para tentá-la. E ninguém quer ter uma esposa para ser objeto de admiração dos outros. E sempre aparece um mais insolente que tenta conquista-la.  

         - Mas Alvina não é moça para aceitar coisas dessa natureza. Será absolutamente fiel a quem escolher.

         - Isto é o que a senhora diz pela confiança que deposita nela. No entanto, quem está de fora, tem suas dúvidas. Com essa humanidade de hoje, tudo é possível. E não tem aquele ditado que a carne é fraca. Mulher bonita demais é mesmo um tentação.

          O sujeito se aventura. Deu certo, muito bem, não deu paciência. E às vezes dá. E mesmo quando nada acontece, o marido não se conformará com as investidas. Que é um perigo, isto é. Já tem havido tantos casos de mulher que se casa e depois encontra um outro que é sua verdadeira atração. Com mulher comum, de beleza normal, geralmente ninguém se preocupa. Mas quem poderá ver uma Alvina para não deseja-la. No mínimo fica sonhando com ela, ou sempre de olho, como se costuma dizer.

          Mulher bonita assim não é brincadeira não. Pensa no que aconteceu com a Ida. Depois de casada e já com um filho, fugiu com outro. A Carminha, a mesma coisa. Não largou o marido que é um convencido, mas todos sabem da sua vidoca.

             É disso que os rapazes têm medo. E com a Alvina, pior que já anda cercada de adoradores. Quer dizer que está destinada a não se casar, só porque é uma moça bonita, fora do comum.

          Talvez, pelo menos aqui nesta cidadezinha de muros baixos, isto é, onde tudo se sabe, tudo se comenta. Além disso, minha comadre, Alvina, talvez na ânsia de arranjar um namorado como as outras, aceita qualquer um que se aproxime, dando a entender que gosta de todos de uma vez.

          São coisas do próprio destino. Ela se desespera, fica confusa e termina sem ninguém, nunca se sabe de quem ela gosta verdadeiramente.

            - Pois é, irei orientá-la. Foi ótimo conhecer essas facetas do relacionamento de Alvina. Vou tirá-la desse ambiente de dúvida e de desconfianças. Irão ver quem é Alvina daqui para frente. Não servirá mais para apostas e muito menos de objeto de brincadeiras. Não se brinca com o amor.

 E Alvina foi posta ao conhecimento das causas de suas desventuras amorosas. Ficou revoltada com o julgamento que fazia dela. - Beleza não era sinal de infidelidade, de desonestidade conjugal. Os seus admiradores não passavam de um bocado de sacripantas. Mas iria mostrar-lhes como se faz uma canoa.

            Até então havia recusado a admiração que lhe votava o Francisquinho, solteirão, rico para o lugar, honesto e um excelente amigo. Nunca havia correspondido, só e só, porque não era mocinho, cheio de salamaleques. Homem sério, ponderado, de boa família, mas recusado apenas pelo fato de ser mais velho do que ela.

            Achava, talvez, que amor mesmo só quem tinha para lhe dar eram os rapazinhos de cara lisa que frequentavam as festas e as retretas, sempre sorridentes e cheios de vida.

            Voltou a sair com a intenção dupla de olhar para a cara de seus pretendidos, procurar interpretar os seus gestos e suas intenções. E, em segundo lugar, aproximar-se de Francisquinho por quem na verdade nutria uma velha simpatia e provava de sua amizade.

            O único aspecto negativo até então, era a idade, os seus trinta e dois anos. Ia a sua loja, como sempre fazia, mas desta feita com outras intenções. Queria vê-lo bem de perto, sorrir para ele, demonstrar sua afeição. Fazia tudo isto, no maior sigilo, inclusive ocultando da própria mãe. Queria que a coisa disparasse como uma grande surpresa.

            O namoro foi rápido, e, Francisquinho deveria manter-se reservado. E somente era para aparecer em sua casa no dia do noivado. Era mesmo para estourar, como um foguetão de tomada de fogueira. Imprevistamente.

            A família de Alvina matinha ótimas relações de amizade com Francisquinho e sua família. Não haveria qualquer dúvida quanto à aprovação imediata. Era só chegar de improviso, falar e noivar. E foi o que sucedeu. Dia marcado, convite reservado para jantar.

            Os pais de Alvina apenas tiveram conhecimento de que Francisquinho havia dito que ira lhe fazer uma visita. E só. Mas tudo aconteceu como estava previsto e bem acertado. O pedido de casamento foi aceito com alegria desusada e ficou acertado que nada seria divulgado antes que o padre lesse na igreja a proclamação.

            A missa das dez horas do domingo a bomba estourou. Iriam se casar Alvina com Francisquinho Arruda. Foi uma estupefação geral. E a rapaziada caiu das nuvens. Havia dormido no ponto.

             - Era o Francisquinho que iria beliscar o fruto tão ambicionado. O que diabo dera em Alvina, - ninguém atinava. O resto da missa foi praticamente perdido. Ninguém queria saber de padre, de reza, de coisa nenhuma. O assunto era Alvina. O seu casamento com o velhote; -  só porque tinha dinheiro. Um absurdo.

            - Seria melhor morrer solteira. Uma menina tão bonita, virar a cabeça por um solteirão já desenganado. É bem certo que mulher só tem juízo nas unhas dos pés. Tem nada não. Esperam-se os resultados. Aquela não vai negar fogo. Toma-se uma desforra.

            No dia do casamento, a igreja estava repleta, enchia-se também de comentários.

- Aqui está, Adriano, bancamos os bobos e a menina desiludiu-se da gente e foi se refugiar nos braços de Francisquinho, um palerma, mas sem preconceitos idiotas. Levamos tudo na brincadeira e não se pode brincar com o amor.

Francisquinho fazia questão de comparecer as festas, reuniões, encontros, só para mostrar sua felicidade. Estava casado com a moça mais bonita da cidade e que lhe era fiel até nos sonhos.

            Os rapazes que olhavam para ela ou tentavam uma aproximação saiam desencantados. Alvina não era a moça que eles pensavam e tinham medo de sua beleza. Ademais, tinham diante de si, o respeito à Francisquinho, que não botava água à pinto, especialmente, ante em defesa de uma joia daquele.

            Ninguém que se atrevesse a fazer graça com ele ou ela. E que mais se lamentava era Aluízio, que intimamente morria de paixão por Alvina. Havia navegado nas ondas da turma e perdera-se no meio do caminho. Decepcionado, jurou decidir-se daí por diante, por si mesmo.

            E resolveu assaltar sem reservas a segunda moça mais atraente da cidade. Não lhe faltavam meios para isto. Endinheirado, com boa aparecia e cheio de vontade de ter o seu lar, foi direto a Alcinda. Era para casar e terminou arrebentando-a dos companheiros.

            E aconteceu o imprevisto, ou antes, aquilo que a turma suponha de Alvina, Alcinda não era Alvina. Namoradeira e infiel os levou em pouco tempo a separação. É assim que as aparências enganam.

            Alvina era exemplo de esposa e ninguém se atrevia a pensar nela. Embora sempre alegre e comunicativa, não dava oportunidades a qualquer pensamento leviano. Possuía o que desejava. Um lar somente seu e um marido que a respeitava como mulher e Senhora do lar.

             Não teve filhos e conservava-se na mesma de uma menina-moça, talvez mais esplendorosa ainda. Francisquinho sonhava com os seus desejos e não tinha razão para não atendê-los. Certo é que o casal servia de modelo e onde se apresentava era recebido como gente nobre.

            Alcinda transviou-se e desapareceu da cidade.  Era a vergonha da família e da sociedade. Os anos se foram sem notícias dela. Mas o destino sempre foi para muitos, cruel e desumano. Quando fugiram os seus encantos, foi caindo, caindo até a última expressão humana.

            Ninguém a queria e nem tinha onde cair. E teve que voltar a procura de amparo. Desafortunadamente não encontrou mais a família. Em estado de penúria, não encontrou alternativa. Procurou o ex-marido. Não para tentar conviver ou pedir-lhe perdão, mas para pedi-lhe socorro.

            Sempre havia sido bom para ela. Deixou que caísse à sombra da noite para procurá-lo. E ao localizá-lo sentiu calafrios de vergonha, mas a miséria em que vivia dava-lhe força para tudo. 

            - Sou eu, Aluízio. Alcinda. Quero apenas te falar. Estou desesperada.

- Você, você Alcinda! Deus me livre. Como chegaste a esse estado! Quem te devorou. Ou foi alguma maldição?

            - Sim, o tempo e a maldição ou quem sabe, uma provação pelo que fiz. Estou aqui para que não me deixes passar mais fome e desamparo. Não mereço perdão de ninguém. Já sofri demais. Quero, pelo menos, não morrer neste estado tão lamentável. Não merecias o que fiz contigo. Agora pago o dobro, inclusive com a humilhação de vir pedir amparo.

            Podes me castigar, mas, por favor, não me negues. Desejaria estar cega para não poder te ver.

            - Não, Alcinda, não te amargures tanto. Não quero lembrar do passado. Lamento que com tantos bons amigos que tivestes, tenhas decaído tanto. Julgava-te em berço dourado e nuca te desejei infelicidade. Magoaste-me, humilhaste-me, mas nem assim queria te ver neste estado lamentável. Afinal o que queres de mim?

            - Ter onde dormir e ter o que comer. Não te peço, te imploro.

            - Pois bem, vai procurar um trabalho doméstico noutra cidade. Até lá terás pão e dormida. Dar-te-ei uma pensão durante o tempo da procura de emprego. No entanto, ficará certo que terás um prazo máximo de dois meses. Aqui não te cabe. Ninguém te aceitará conhecendo o teu passado.

            Tome esse dinheiro e vai. Mande-me o endereço para te mandar o prometido. Perdeste um amigo leal, por falsos amigos, Ver se te curas!










*o conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


        

                 

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