segunda-feira, 5 de agosto de 2013

ATÍLIO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


           Atílio nascera de sete meses. Homem feito continuou baixinho e franzino, mas, de uma compleição agradável. Conversador. Era dessas criaturas que, onde estava, alegrava o ambiente, não só pela simpatia que despertava mais ainda pela maneira espirituosa de se expressar. Era desses que sempre fazia falta, onde não estava.
Acontecia que Atílio só aparecia no vilarejo nos dias santos e feriados. Também nunca dizia onde estava e nem o que fazia. Eram coisas que só interessavam a ele próprio. Nem ao menos fazia qualquer referência sobre suas atividades. Aparecia sempre limpo e contente, como se fosse a pessoa mais feliz deste mundo. O que também ninguém sabia é que Atílio tinha uma meta a atingir, mesmo que tivesse de pegar o diabo pelo rabo e arrancar-lhe os dentes e as unhas. A meta era a morena cor de pecado: Nira! Que também havia se apaixonara por Atílio, mesmo sendo pobre e sem perspectivas de poder dar-lhe a condição social que ela já desfrutava.
Nira, porém, jurara casar-se com ele no dia que Atílio quisesse. Lutariam os dois, lado a lado dividindo qualquer espécie de sacrifícios.
Mas Atílio, embora confiando em Nira, queria tê-la sem que ela tivesse de participar daquilo que ele considerava obrigação exclusivamente sua. Queria, apenas que Nira tivesse a paciência de esperar e acreditar nele.
Nira também miudinha no porte, mas, uma beleza de moça, com um rosto cheio de encantos, uns olhos sonhadores e um corpo flexível e tentador. Esquecera-se que poderiam existir outros rapazes interessados nela. Atílio era o seu sonho, seu bem querer, sua própria vida. Nira não era moça rica, mas também jamais lhe faltara o conforto que uma moça de sua categoria podia ter. Ocultava dos pais essa sua predileção por Atílio, convencida de que eles não concordariam com uma união tão desigual e sem futuro. Também percebia que, sobretudo a mãe, estranhara o seu comportamento retraído.
            Em relação aos rapazes se percebia facilmente estarem à sua procura, inclusive moços de posição social e financeira superior à sua. - Fazia que não via, especialmente para evitar que lhe pedissem explicações. - Sabiam que Nira não era uma anormal nem física nem moralmente para comporta-se com tamanha indiferença. E o mais enigmático é que se conservava bem humorada alegre e cheia de vida, como se fosse à menina mais feliz entre todas. - É que não dava a perceber sua paixão oculta e que extravasava nas canções que cantava.
Dona Cinira, quando a ouvia, só não fazia jurar que havia alguma abelha doirada volteando aquela flor desabrochando. Suas cantigas estavam bem claras, eram de moça apaixonada. Havia de descobrir aquele intricado mistério. E dona Cinira vivia de olho nela. Um dia ela haveria de denunciar-se ou trair-se. Uma olhadela furtiva para alguém, um bilhete, uma carta, um gesto, qualquer coisa denunciador. Mas, ai do engano. Dona Cinira não poderia jamais suspeitar que a alegria de Nira fosse causada por um Atílio - pobre diabo, sem eira nem beira. - A coisa era tão distante que nem dava mesmo para uma leve suspeita.
         Atílio e Nira combinavam aonde e como deveriam se ver e conversar um pouco. E uma das formas era Atílio vir a sua casa como vendedor de qualquer coisa. E era o que faziam. Atílio levava numa caixinha, coisas que as mulheres gostavam de usar. E sempre que Atílio tinha oportunidade, lá se ia de casa em casa, especialmente dos vizinhos, oferecendo suas miudezas. Passava em casa de dona Cinira e era ela mesma, que mandava Nira ver quem era ou comprar qualquer coisa. E neste momento, ia uma carta de amores e outra vinha às mãos de Nira. Conversava o quanto podiam e aproveitavam ainda as visitas as casas ao lado e de frente, que Atílio ia propositadamente fazendo ofertas. Quando dona Cinira estava presente, sabiam perfeitamente disfarçar. Ninguém podia com as artimanhas de uma moça apaixonada. Dona Cinira poderia desistir. Nira, às vezes, quando Atílio saia, ficava-se à sala da frente e, como se estivesse inteiramente despreocupada entoava uma de suas mais apaixonadas canções pra Atílio ouvir.
         Dona cinira andava tonta. Seu faro de mãe não lhe ajudava, mas ela não tinha dúvida que havia coelho na horta. Isto era mais do que certo, era certíssimo. Se Nira fosse uma moça recolhida, feiosa, fanática por alguma religião que a freasse, ainda poderia aceitar aquela sua indiferença pelo namoro. Mas do jeitinho que era ela, isto não. E certo dia, intrigada, chamou-a as falas:
          - Vem aqui Nira. Estamos sozinhas, sou tua mãe, tua maior amiga e confidente. O que há contigo. Todas as outras moças têm namorados, até as meninas feiosas e vives assim neste abandono, como se ninguém te quisesse. Ficamos preocupados contigo. Sentes alguma coisa, ou o que se passa contigo. Seja franca com tua mãe talvez possa te ajudar. Não é mesmo?
          - Não mãe, não há nada. Como vê sou uma moça sadia, alegre; durmo muito bem e vivo tranqüila. Tenho dois namorados em casa. A senhora e papai. Também não pensei em casamento. Certamente porque ainda não chegou minha oportunidade.
         - Mas olha, ouço-te cantando canções tão apaixonadas que chego a ficar maldando.
          - Ah! Canto para alegrar a senhora e a casa. Adoro essas canções e músicas de seresteiro. Aliais, quero até que me comprem um violão para acompanhar-me. Aí sim será mais agradável.
         Atílio trabalha despreocupadamente para adquirir uma condição econômica e financeira que permitisse dar a Nira o conforto que em casa desfruta. Em terras arrendadas, plantava e colhia como se estivesse colhendo o seu próprio destino. Ampliava sua lavoura de algodão, cujas safras lhe davam melhor receita. O milho, o feijão e tudo mais que lograva apanhar, eram vendidos nas melhores épocas; e o dinheiro contado, somado e amealhado. Juntava o quanto podia, gastando apenas o essencial a sua modesta condição de vida. Planejara sair da agricultura e instalar-se no comércio; de surpresa. A casa onde morava com sua mãe, dispunha de uma sala de frente para iniciar suas atividades comerciais. E somente dona Sofia conhecia os propósitos do filho. A sorte lhe favoreceu num dos anos de bons invernos no sertão. As safras dobradas e altos preços para o algodão. Ninguém diria que aquele quase pingo de gente fosse tão atilado e capaz de desenvolver esforços tão admiráveis.
          Atílio terminou as colheitas, reduziu-as a dinheiro e deu inicio ao seu projeto. Contratou a montagem de prateleiras e balcões. Sigilosamente. E quando estava em ordem à instalação, foi à Campina Grande e comprou à vista, os artigos que já havia relacionado. E, num belo dia, o caminhão estava à sua porta. Para surpresa geral; somente miudezas, tecidos, chapéus e calçados. Coisa que praticamente não existia no vilarejo, ramo, portanto, pouco explorado. Além do mais era um comércio limpo e que conferia certo destaque a quem negociava com tais artigos. Bodegueiro, nunca seria. . . Vender querosene, sabão, bacalhau não recomendavam ninguém. E depois a família de Nira não havia de querer vê-la casada com um simples bodegueiro.
E lá se foi um ano mais de lutas e de espera. Atílio chegava às vezes a recear que Nira perdesse a paciência. E durante todo esse tempo, Atílio imaginava como seria o pedido de casamento.
Seus negócios iam otimamente e ele não descurava o sortimento de sua loja. Melhorava o sortimento à medida que a freguesia aumentava. Já se formava novo plano. Mudar a loja mais para o centro da vila, onde seria reformada uma casa antiga. Não se tinha mais dúvida de que a casa comercial de Atílio era a de melhor sortimento e aparência. Quem desejasse adquirir um bom tecido ou um sapato fino, teria que chegar até lá.
         Atílio não abandonava sua gravata e seu paletó riscado ou cinza. Tirava-o somente no balcão, onde exibia a camisa sem rugas e bem ensacada. Mas a gravata com uma pequena jóia, não saia do pescoço. Propositadamente, ninguém andava mais elegante do que Atílio.
         Nira quando queria vê-lo e conversar um pouco ia à loja fazer pequenas compras, exibindo também uma blusa que a tornava uma gracinha de moça de bom gosto.
         Resolveram, então, enfrentar a parada. Nira teria que começar namoro aberto para que todos soubessem que estava apaixonada. Esperaria a reação dos pais e da sociedade exigente. Na cidadezinha respeitava-se doentiamente, a igualdade social e todo mundo sabia que Atílio embora bem de vida e de uma moral admirável, era filho de gente pobre, sem posição social. Não tinha a mesma origem de Nira. Gente que sempre morou em subúrbio, sem freqüentar as altas rodas. Nira não tinha a menor ilusão de que seria compreendida. No entanto, a decisão estava tomada. E o namoro tornou-se público.
- Não, não seria possível que uma moça distinta como era Nira pretendesse se casar com um rapazinho filho de uma dona Sofia, e com um trabalhador de roça, aliás, já desaparecido. Por que Atílio não procurava uma mocinha de sua igualha. Atílio, ele estava no seu papel. Quem estava se humilhando era a Nira que não conhecia o seu lugar. Se ao menos fosse uma moça pobre que estivesse à procura de dinheiro do namorado. Mas nem isto.
A família tomou conhecimento. Chamou-a as falas. Nira explicou-se. Já eram namorados há muito tempo, desde quando conhecera Atílio. E não havia mais jeito. Tinha sério compromisso e não via nada demais. Atílio era gente limpa e ninguém poderia atribuir-lhe qualquer defeito. Não queria contrariar os pais e esperava que eles entendessem. Aonde iria encontra um moço de melhor caráter. Na alta sociedade da vila. Quem? Atílio era tão honesto e compreensivo que somente se destinara a se casar quando estivesse em condição de oferecer-lhe o mesmo conforto que tinha em casa. E chegou o que os dois desejavam. Agora tivessem santa paciência. Seria Atílio ou mais ninguém. Iria vê-la criar rugas em casa até morrer de desgosto. Só porque é filho de dona Sofia. . .
         - Mas é a sociedade, Nira!
         - Que sociedade. Não precisamos dela para resolver nosso destino. Caso não queira nos aceitar que se amole. Precisa-se acabar com preconceitos. Quem é aqui, melhor que Atílio. Quem? Nem o padre da freguesia. Namoro com ele desde quase menina. Nunca me disse uma liberdade, por menor que fosse. E é tão dedicado a mim que me jurou: - Nira, só casarei contigo quando for um homem independente. Esperes se quiseres e puderes. Amo-te de mais, no entanto, nunca para te fazer infeliz.  - E hoje está ai, quase rico, respeitado, asseado, honesto e fiel ao que me prometeu. Poderia ter me deixado como fazem muitos outros. Pois tem muitas quem o queira e ademais não sou a moça mais bonita aqui entre nós.
         - Fizemos somente uma observação. Poderias estar sendo uma vítima das artimanhas do moço ou capricho teu e uma advertência poderia despertar-te de um sonho ilusório. Mas estamos percebendo que amas mesmo o Atílio, a quem admiramos por todas as razões, o teu casamento com ele será uma alegria para nós, mas será que ele te ama também igualmente?
         - Mais ainda, estou certa disso!
         - Então, esperamos que nos apareça e faça o pedido.
          - Ora, Atílio é tão correto que afirmou que só se aproximaria quando tivesse certeza absoluta de que o aceitariam. Só em último caso faria uma tentativa.
           - Bem que adivinhávamos que havia um segredo em tua vida. Só o que me intrigava é como o guardastes até hoje. Sonsinha, não é?
          - Um amor puro e grande ensina a gente muita coisa. Aquela história de Atílio andar vendendo miudezas era apenas uma forma de nos vermos sem que pressentissem. Aquelas canções que eu cantava para ele ouvir a distancia, eram minhas juras de amor. Eu sabia que mamãe procurava adivinhar e que vivia de olho em mim. Fui mais esperta. . . Também ela jamais havia de pensar que sua Nira tivesse a coragem de namorar um Atílio, sem boa posição social e sem dinheiro. Eu. Perdoe-me mamãe, às vezes tinha até pena de vê-la preocupada e até pensando que eu era uma moça retardada ou uma presunçosa que não aceitava as insinuações dos rapazes ricos da cidade. E eu conversando tranqüilamente com Atílio e fazendo que estivesse comprando alguma coisa por outros motivos. Como mamãe voava muito alto e eu estava cá embaixo, nunca desconfiou do Atílio, o mascatezinho dos domingos e feriados...
          -Tu merecias agora, eram uns bolos com uma boa palmatória. Pois esta dormente me enganou todo este tempo com aquele espertinho. E eu que tinha pena dele e comprava também suas agulhas e alfinetes, rendas e sabonetes, só para ajudá-lo. Quero mesmo ver com que cara vai me aparecer aquele descarado. Eu com pena também dessa safadinha, já moça feita, sem namorado, pensando que ela sofria muito por isto. Quando cantava aquelas bonitas e saudosas canções, cheguei até a chorar às escondidas supondo que ela sofria. Mas vocês dois ainda vão me pagar bem caro minhas preocupações e os meus zelos. Seu Atílio, com aquela carinha de sonso, zombando do faro de uma mãe zelosa. Cheguei á humilhação de andar escutando por traz das portas na tentativa de ouvir um nome ou qualquer coisa que me servisse de roteiro. E a filinha do coração conversando e de namoro serrado com o engraçadinho do Atílio, em minha porta, sob os meus próprios olhos, sem perceber nada. Como, meu Deus, poderia supor tamanha habilidade daquele cara de inocente e desta santinha de pau oco. Mas eu os espero na curva do caminho. Deixo ele me aparecer. Quem via aquela figurinha de grilo de fava, só podia supor que estava era empenhado em vender suas bugigangas para comprar o pão com que mitigasse a fome. Todo piedoso, modesto, aflito, mostrando-me, num apelo, a sensibilidade de uma mãe, as suas aflições:
          – Compre dona, compre-me alguma coisa. Mamãe está aflita me esperando. - Ah! Bicho descarado. E tu também, deslambida! Zombando de mim. Nunca uma mãe foi tão enganada...
          Atílio não tinha mais por quem esperar. Nira havia lhe transmitido o convite do pai para o jantar do domingo. E teria que, ir com dona Sofia. Prepararam-se os dois, à última moda, recendendo perfume caro. Roupas em folha. Dona Sofia continuava a mesma mulher simples, apenas com uma antiga aliança, sua mais doce recordação.
          Atílio entrou em casa de Nira com o coração nas mãos, tal a emoção que sentia. Dali por diante não teria mais que esconder seu amor pela menina de seus sonhos de tantos anos. Os anos mais longos de sua vida. Dona Cinira estava inquieta a esperá-lo. Queria descoser-lhe as orelhas. Mas Atílio resolveu reagir e levar a coisa na brincadeira. Para isto possuía habilidade.
          - Então meu mascatizinho de uma figa enganou-me, não é. Vendendo suas bugigangas, e com os olhos em minha filha, não é. Pois olhe, só lhe perdôo a traição por causa de Nira.
          - Ora dona Cinira há de desculpar, mas era o único meio que encontrava para mascatear meu amor pela menina Nira. Humilde como era não havia outra saída honrosa...
          - E quem teve essa idéia ardilosa?
          - Para lhe ser sincero fomos nos dois, Nira e eu. Caso descobrissem logo, com certeza teriam um enorme desgosto e Nira e eu iriam sofrer. Assim, não. Víamos-nos, conversávamos um pouco e, por fim ouvia as belas canções que ela cantava para que eu ouvisse suas mensagens de amor. Tinha receio que a senhora desconfiasse, mas Deus é maior do que eu pensava e protegia nossos encontros. Por favor, chame logo o Dr. Antonio que tenho pressa em desincumbir-me do restante da tarefa. Pelo que percebo, a senhora não aprova nosso noivado e, quero saber se o Dr. Antonio não terá a mesma atitude.
         - Antonio é teu chaleira e da boazinha da Nira. Também não tem nada contra. Acalma-te e considera-te meu genro, seu peralta. O que pretendia era dar uma puxadela de orelha, aliás, nos dois por terem me enganado todo esse tempão. Fiz coisas de menino buchudo para saber o que a Nira fazia sem querer saber de namorado e passei por baixo da mesa.
          - Ora, havia acertado com a Nira que somente nos revelaríamos quando eu estivesse em condições de dar-lhe conforto. Amor sem conforto, geralmente dura pouco. E eu não queria perdê-la. Nunca acreditei naquelas promessas de mulheres apaixonadas, casar e ir morar numa choupana ou debaixo de uma ponte ou de um pé de pau. Quando a paixão se acaba ou se satisfaz, quer é um reinado, palácio de cristal e faisão. Sapatinho doirado e viagens maravilhosas num reino encantado. E Atílio não cairia nessa. Hoje, não. Não tenho muito para dar, mas o que possuo vai crescer com o amor de nós dois. Que quer ser o casal mais feliz de todos os tempos já está escrito nas taboas de Moises. E como eram agradáveis aquelas comunicações furtivas, isto é, ás vistas da “mamãe” sem que ela percebesse. A senhora é uma santa criatura para quem fazíamos nossas orações no sentido de não perceber o nosso segredo. Creia que jamais houve um mascate de tanta sorte. Nira me esperava sempre a hora acertada, com uma de suas mais bonitas canções. O dinheiro que recebia dela, está todo guardado para devolvê-lo. E com que doçura ela me comprava e pagava. Nas moedas que me entregava eu sentia nossa felicidade. E todas às vezes traziam-lhe alguma insignificância como presente. Não as usava para não despertar curiosidade.
         - Vocês me traíram, me enganaram, zombaram de mim. Também como havia de pensar que minha Nira estivesse apaixonada por uma figura como essa tua. Também confiava nela, julgando-a uma coitadinha inocente que só sabia modular aquelas canções de seresta, quando eram mensagens que te enviava, seu pelintra. Mas já te disse que irão me pagar com juros dobrados.
         - Sim senhora. Pagaremos quando nos casarmos. Quer um netinho ou uma netinha. A senhora mesma escolherá o nome e será a madrinha. Creio que Nira concorda comigo.
          - Olha Atílio, com um espirro de gato da tua qualidade, Nira nunca terá filhos. Pelo menos é o que penso.
          - Talvez até não, pois não quero vê-la deformada, carregando um par de gêmeos. Pensa senhora que sou o doutor. Um homão daquele, com uma filha só. Adoro Nira e será ela quem irá dizer como quer. O melhor mesmo será amar sem ter filhos, andar enjoando, cheia de desejos esquisitos. Afinal de contas vamos reservar este assunto para depois do casamento.
          - E querias que fosse antes?
          - Não, mas se fosse também à senhora não iria descobrir nada. Como detetive, é uma fracassada.
          - Vê bem, quero respeito. Do contrário não casarás mais com a Nira.
          - Agora está sem jeito. Já temos um plano formado para o caso de uma recusa.
          - Que plano?
          - Não casar e continuar o namoro até nascer o primeiro filho...
          - Bandido!
          - A senhora não está vendo que é uma brincadeira. Também não percebe nada meu Deus. Imagine que espécie de sogra é esta que arranjei.
          - Olha seu cara de mamulengo (ia dizer um nome feio) brincadeira tem dia e hora.
          - Muito bem, desculpe, mas preciso conhecer bem a mãe de minha Nira.
         - Minha não. Ainda não é dono de nada.
         Nira ia chegando e ouviu o final da conversa. Aventurou-se a ajuda a Atílio.
         - É por isto mamãe que falam tanto das sogras. Deixe meu noivo em paz.
         - Deixar o que? Estou certa de que irás fazer um péssimo casamento. Este sujeitinho é metido a engraçado, todo cheio de lérias. Sabes o que me disse? Teve o topete de me dizer que se houvesse recusa de nossa parte, esperaria até que nascesse o primeiro filho. Desavergonhamento e falta de respeito.
          - Tua mãe não entende de nada, Nira. Imagina. Referia-me a gatinha que tenho em casa. Aquela angorazinha...
          - Angorazinha o que seu velhaco, mascate de uma figa.
          Dr. Antonio chegou. Risonho e amigo cumprimentou Atílio e foi logo lhe agradecendo por ter aceitado o convite para o jantar. Olhou para a mulher, de cara amarrada e estranhou.
           - Que houve com tua gata!...
          - Também quer botar ás unhas de fora e fazer gracinha...
          Nira interveio. Explicou ao Dr.Antonio a zanga da mãe. Não entendeu uma brincadeira de Atílio e torceu o nariz.
          - Ora, Nira, tua mãe levou mais de três anos e não descobriu teu namoro com Atílio, quanto mais uma coisa assim momentânea. É uma santa e adorável criatura, mas não tem faro de gato. Eu que não fazia pesquisas, já havia percebido que aquela história de mascate era uma farsa. Vi certa vez pela fresta da janela a alegria de vocês dois. E sabia desde então qual era a mascateação. E tua mãe bebendo água. E ainda comprava linha, agulha, sabonetes, e pagando toda satisfeita a malandragem dos dois.
         - Sabem de uma coisa, vocês três cabem na mesma sacola. Fiquem-se aí que vou cuidar no jantar. Mas um dia me pagam...
          - Eu também, minha querida!
          - Será o primeiro. Deixo-te a pão e água.
          - Ou francisquinha, traz aí duas cervejas geladas para abrir o apetite desses gaitas.
          Atílio saboreava a cerveja e preparava-se para falar do noivado. Dr.Antonio percebia o engasgo e antecipou-se.
          - Fique tranqüilo e considere-se noivo de Nira. Vamos acabar com essas formalidades vexatórias. Basta o que minha mulher já sofreu. É uma inocente. Quero que vocês dois se amem como nos temos amados. Nunca discutimos, nunca brigamos, a não ser quando Nira estava para nascer. Não queria que eu fizesse o parto. Eu não queria que alguém botasse a mão nela. E ela não confiava em mim. Tivemos que chamar uma parteira. Fiquei como assistente da velha Pureza. Mas, quando a coisa apertou, gritou por mim. E como não tinha como evitar as dores naturais passou-me na cara: - “não disse que não sabes de nada. Volta para a escola de medicina”. Como não nasceu mais ninguém não houve mais briga. Olha Atílio, tinha muito medo que Nira viesse a se casar com um desses mocinhos fúteis que só sabem mesmo onde está o dinheiro do papai e a proteção da mamãe. Gente que tirada à roupa que veste não fica nada que se aproveite. Alguns desses andavam rondando, mas, felizmente, ela parece que adivinhava meus pensamentos.
          - Talvez não seja eu a pessoa ideal que o senhor pensa. No entanto, confio no amor que me prende a Nira. Vem de muito longe, de quando eu era apenas um rapazinho de mãos vazias e que teria de alcançá-la com esforço, perseverança e honestidade. Era ela que me dava coragem e estímulo para vencer todas as distancias que nos separava. Enquanto Nira esperava por mim, sabendo que eu lutava desesperadamente para merecê-la, creia, nunca tive um momento de dúvida ou de desânimo. E como foi difícil chegar à meta dos meus sonhos. Da vida do campo, saltei para o comércio, onde alcancei duas grandes vitórias. Condições financeiras satisfatórias e nível social que me permitia e me dava coragem para ter a pretensão de pedir-lhes Nira em casamento. Mas, perdoem-me o senhor. Deu-me seu consentimento, é verdade, mas não consultou dona Cinira e nem ouviu sua filha. No momento decisivo às vezes a realidade não é aquela que se imagina. Não tenho dúvidas quanto à Nira, mas dona Cinira me pareceu incerta.
          - Não creio Atílio. Em todo caso, vamos ouvi-la. E chamou-a com a filha.
          - Como é, Nira, o senhor Atílio acaba de te pedir em casamento. O que nos dizes?
          - Atílio é o meu sonho bom. Venho há muito tempo esperando por este momento. Sempre foi meu primeiro e único amor.
          - E você, Cinira, qual o seu pensamento.
          - O senhor Atílio, merece sem dúvida, a mão de Nira, mas, tanto ele quanto ela, merecem um castigo exemplar. Enganaram-me e zombaram de meu amor e zelo de mãe. Tudo o mais posso esquecer, mas aquela tapeação de mascate me abalou os nervos. Quando imagino que fazia compras a este espertalhão pensando que queria nossa ajuda para sair de alguma dificuldade, estava era criando oportunidade para ver a nossa filha e namora-la às ocultas. E eu, feita uma tola, bebendo água de pote. Preocupada pela atitude da menina, que ao contrário de todas as outras moças nem pensava em namorado, e ela namorando na minha cara, combinadinha com este gaiato. E nem me passava pela cabeça que estivessem me enganando. Também não podia pensar em semelhante disparate. Uma menina filha de um doutor, apaixonada por um mascate de meia tigela, quando havia tanto moço afortunado, querendo-a. Mas a culpa maior era desta espertinha e não duvido que o arranjo tenha sido a idéia dela. Tudo, porém, mudou. O sabidinho de Atílio mostrou que tinha raça e está aí próspero e fagueiro; hoje um daqueles de maior destaque social da vila. Dou minha aprovação, mas exijo uma coisa dos dois: dizer quem foi o idealizador da mascateação, que teve a déia.
         - Fui eu mesma, mãe. Era a maneira de ver e falar com Atílio sem ninguém desconfiar. E a senhora me ajudava mandando fazer comprinhas. E eu achava até engraçado, embora tivesse remorso de estar enganando. Comentava isto com Atílio ele me dizia: “coitada de dona Cinira”.
          - Disse que ia perdoar, mas não perdôo mais. Podem se casar, se o Antonio consentir, que é um chaleira, da filha e deste mascate de uma figa, vou exigir outra coisa. Que se ajoelhem os dois e digam: “perdão, mamãe”.
           - Perdão, mamãe!!!
           - Ou Francisquinha. Traz aí as garrafas de champanhe e as taças que guardei para o noivado desses dois descarados. E como é, seu cara de fuinha, não vai beijar a Cinira.
          - Precisa mais não, mamãe. Já me beijou.
          - Onde?
          - Na boca!
          - É, mais eu não vi.
          - Então lá vai outro.
          - Também não precisava um beijo tão demorado.
          - Então vou dar um mais ligeirinho...
          - Está se aproveitando, não é?
          - É bom ser obediente. A senhora merece...
          - Toma teu champanhe e cuida bem de minha filha. Nira, tu e este teu noivo bebem da mesma água. Só espero que não sequem o pote.
Em 5.5.1986.

*O conto faz parte do romance “Vidas Nordestinas”, no prelo

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