ATÍLIO*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Atílio
nascera de sete meses. Homem feito continuou baixinho e franzino, mas, de uma
compleição agradável. Conversador. Era dessas criaturas que, onde estava,
alegrava o ambiente, não só pela simpatia que despertava mais ainda pela
maneira espirituosa de se expressar. Era desses que sempre fazia falta, onde
não estava.
Acontecia que Atílio só aparecia no
vilarejo nos dias santos e feriados. Também nunca dizia onde estava e nem o que
fazia. Eram coisas que só interessavam a ele próprio. Nem ao menos fazia
qualquer referência sobre suas atividades. Aparecia sempre limpo e contente,
como se fosse a pessoa mais feliz deste mundo. O que também ninguém sabia é que
Atílio tinha uma meta a atingir, mesmo que tivesse de pegar o diabo pelo rabo e
arrancar-lhe os dentes e as unhas. A meta era a morena cor de pecado: Nira! Que
também havia se apaixonara por Atílio, mesmo sendo pobre e sem perspectivas de
poder dar-lhe a condição social que ela já desfrutava.
Nira, porém, jurara casar-se com ele
no dia que Atílio quisesse. Lutariam os dois, lado a lado dividindo qualquer espécie
de sacrifícios.
Mas Atílio, embora confiando em Nira,
queria tê-la sem que ela tivesse de participar daquilo que ele considerava
obrigação exclusivamente sua. Queria, apenas que Nira tivesse a paciência de
esperar e acreditar nele.
Nira também miudinha no porte, mas,
uma beleza de moça, com um rosto cheio de encantos, uns olhos sonhadores e um
corpo flexível e tentador. Esquecera-se que poderiam existir outros rapazes
interessados nela. Atílio era o seu sonho, seu bem querer, sua própria vida.
Nira não era moça rica, mas também jamais lhe faltara o conforto que uma moça
de sua categoria podia ter. Ocultava dos pais essa sua predileção por Atílio,
convencida de que eles não concordariam com uma união tão desigual e sem
futuro. Também percebia que, sobretudo a mãe, estranhara o seu comportamento retraído.
Em
relação aos rapazes se percebia facilmente estarem à sua procura, inclusive
moços de posição social e financeira superior à sua. - Fazia que não via,
especialmente para evitar que lhe pedissem explicações. - Sabiam que Nira não
era uma anormal nem física nem moralmente para comporta-se com tamanha indiferença.
E o mais enigmático é que se conservava bem humorada alegre e cheia de vida,
como se fosse à menina mais feliz entre todas. - É que não dava a perceber sua
paixão oculta e que extravasava nas canções que cantava.
Dona Cinira, quando a ouvia, só não
fazia jurar que havia alguma abelha doirada volteando aquela flor
desabrochando. Suas cantigas estavam bem claras, eram de moça apaixonada. Havia
de descobrir aquele intricado mistério. E dona Cinira vivia de olho nela. Um
dia ela haveria de denunciar-se ou trair-se. Uma olhadela furtiva para alguém,
um bilhete, uma carta, um gesto, qualquer coisa denunciador. Mas, ai do engano.
Dona Cinira não poderia jamais suspeitar que a alegria de Nira fosse causada
por um Atílio - pobre diabo, sem eira nem beira. - A coisa era tão distante que
nem dava mesmo para uma leve suspeita.
Atílio e
Nira combinavam aonde e como deveriam se ver e conversar um pouco. E uma das
formas era Atílio vir a sua casa como vendedor de qualquer coisa. E era o que
faziam. Atílio levava numa caixinha, coisas que as mulheres gostavam de usar. E
sempre que Atílio tinha oportunidade, lá se ia de casa em casa, especialmente
dos vizinhos, oferecendo suas miudezas. Passava em casa de dona Cinira e era
ela mesma, que mandava Nira ver quem era ou comprar qualquer coisa. E neste momento,
ia uma carta de amores e outra vinha às mãos de Nira. Conversava o quanto
podiam e aproveitavam ainda as visitas as casas ao lado e de frente, que Atílio
ia propositadamente fazendo ofertas. Quando dona Cinira estava presente, sabiam
perfeitamente disfarçar. Ninguém podia com as artimanhas de uma moça
apaixonada. Dona Cinira poderia desistir. Nira, às vezes, quando Atílio saia,
ficava-se à sala da frente e, como se estivesse inteiramente despreocupada
entoava uma de suas mais apaixonadas canções pra Atílio ouvir.
Dona
cinira andava tonta. Seu faro de mãe não lhe ajudava, mas ela não tinha dúvida
que havia coelho na horta. Isto era mais do que certo, era certíssimo. Se Nira
fosse uma moça recolhida, feiosa, fanática por alguma religião que a freasse,
ainda poderia aceitar aquela sua indiferença pelo namoro. Mas do jeitinho que
era ela, isto não. E certo dia, intrigada, chamou-a as falas:
- Vem aqui
Nira. Estamos sozinhas, sou tua mãe, tua maior amiga e confidente. O que há
contigo. Todas as outras moças têm namorados, até as meninas feiosas e vives
assim neste abandono, como se ninguém te quisesse. Ficamos preocupados contigo.
Sentes alguma coisa, ou o que se passa contigo. Seja franca com tua mãe talvez
possa te ajudar. Não é mesmo?
- Não mãe, não há nada. Como vê sou uma
moça sadia, alegre; durmo muito bem e vivo tranqüila. Tenho dois namorados em
casa. A senhora e papai. Também não pensei em casamento. Certamente porque
ainda não chegou minha oportunidade.
- Mas
olha, ouço-te cantando canções tão apaixonadas que chego a ficar maldando.
- Ah!
Canto para alegrar a senhora e a casa. Adoro essas canções e músicas de
seresteiro. Aliais, quero até que me comprem um violão para acompanhar-me. Aí
sim será mais agradável.
Atílio
trabalha despreocupadamente para adquirir uma condição econômica e financeira
que permitisse dar a Nira o conforto que em casa desfruta. Em terras
arrendadas, plantava e colhia como se estivesse colhendo o seu próprio destino.
Ampliava sua lavoura de algodão, cujas safras lhe davam melhor receita. O
milho, o feijão e tudo mais que lograva apanhar, eram vendidos nas melhores
épocas; e o dinheiro contado, somado e amealhado. Juntava o quanto podia,
gastando apenas o essencial a sua modesta condição de vida. Planejara sair da agricultura
e instalar-se no comércio; de surpresa. A casa onde morava com sua mãe,
dispunha de uma sala de frente para iniciar suas atividades comerciais. E
somente dona Sofia conhecia os propósitos do filho. A sorte lhe favoreceu num
dos anos de bons invernos no sertão. As safras dobradas e altos preços para o
algodão. Ninguém diria que aquele quase pingo de gente fosse tão atilado e capaz
de desenvolver esforços tão admiráveis.
Atílio
terminou as colheitas, reduziu-as a dinheiro e deu inicio ao seu projeto.
Contratou a montagem de prateleiras e balcões. Sigilosamente. E quando estava
em ordem à instalação, foi à Campina Grande e comprou à vista, os artigos que
já havia relacionado. E, num belo dia, o caminhão estava à sua porta. Para surpresa
geral; somente miudezas, tecidos, chapéus e calçados. Coisa que praticamente
não existia no vilarejo, ramo, portanto, pouco explorado. Além do mais era um
comércio limpo e que conferia certo destaque a quem negociava com tais artigos.
Bodegueiro, nunca seria. . . Vender querosene, sabão, bacalhau não recomendavam
ninguém. E depois a família de Nira não havia de querer vê-la casada com um
simples bodegueiro.
E lá se foi um ano mais de lutas e
de espera. Atílio chegava às vezes a recear que Nira perdesse a paciência. E
durante todo esse tempo, Atílio imaginava como seria o pedido de casamento.
Seus negócios iam otimamente e ele
não descurava o sortimento de sua loja. Melhorava o sortimento à medida que a
freguesia aumentava. Já se formava novo plano. Mudar a loja mais para o centro
da vila, onde seria reformada uma casa antiga. Não se tinha mais dúvida de que
a casa comercial de Atílio era a de melhor sortimento e aparência. Quem
desejasse adquirir um bom tecido ou um sapato fino, teria que chegar até lá.
Atílio
não abandonava sua gravata e seu paletó riscado ou cinza. Tirava-o somente no
balcão, onde exibia a camisa sem rugas e bem ensacada. Mas a gravata com uma
pequena jóia, não saia do pescoço. Propositadamente, ninguém andava mais
elegante do que Atílio.
Nira
quando queria vê-lo e conversar um pouco ia à loja fazer pequenas compras,
exibindo também uma blusa que a tornava uma gracinha de moça de bom gosto.
Resolveram, então, enfrentar a parada. Nira teria que começar namoro
aberto para que todos soubessem que estava apaixonada. Esperaria a reação dos
pais e da sociedade exigente. Na cidadezinha respeitava-se doentiamente, a
igualdade social e todo mundo sabia que Atílio embora bem de vida e de uma
moral admirável, era filho de gente pobre, sem posição social. Não tinha a
mesma origem de Nira. Gente que sempre morou em subúrbio, sem freqüentar as
altas rodas. Nira não tinha a menor ilusão de que seria compreendida. No
entanto, a decisão estava tomada. E o namoro tornou-se público.
- Não, não seria possível que uma
moça distinta como era Nira pretendesse se casar com um rapazinho filho de uma
dona Sofia, e com um trabalhador de roça, aliás, já desaparecido. Por que Atílio
não procurava uma mocinha de sua igualha. Atílio, ele estava no seu papel. Quem
estava se humilhando era a Nira que não conhecia o seu lugar. Se ao menos fosse
uma moça pobre que estivesse à procura de dinheiro do namorado. Mas nem isto.
A família tomou conhecimento.
Chamou-a as falas. Nira explicou-se. Já eram namorados há muito tempo, desde
quando conhecera Atílio. E não havia mais jeito. Tinha sério compromisso e não
via nada demais. Atílio era gente limpa e ninguém poderia atribuir-lhe qualquer
defeito. Não queria contrariar os pais e esperava que eles entendessem. Aonde
iria encontra um moço de melhor caráter. Na alta sociedade da vila. Quem? Atílio
era tão honesto e compreensivo que somente se destinara a se casar quando
estivesse em condição de oferecer-lhe o mesmo conforto que tinha em casa. E
chegou o que os dois desejavam. Agora tivessem santa paciência. Seria Atílio ou
mais ninguém. Iria vê-la criar rugas em casa até morrer de desgosto. Só porque
é filho de dona Sofia. . .
- Mas é
a sociedade, Nira!
- Que
sociedade. Não precisamos dela para resolver nosso destino. Caso não queira nos
aceitar que se amole. Precisa-se acabar com preconceitos. Quem é aqui, melhor
que Atílio. Quem? Nem o padre da freguesia. Namoro com ele desde quase menina.
Nunca me disse uma liberdade, por menor que fosse. E é tão dedicado a mim que
me jurou: - Nira, só casarei contigo quando for um homem independente. Esperes
se quiseres e puderes. Amo-te de mais, no entanto, nunca para te fazer
infeliz. - E hoje está ai, quase rico,
respeitado, asseado, honesto e fiel ao que me prometeu. Poderia ter me deixado
como fazem muitos outros. Pois tem muitas quem o queira e ademais não sou a
moça mais bonita aqui entre nós.
- Fizemos
somente uma observação. Poderias estar sendo uma vítima das artimanhas do moço
ou capricho teu e uma advertência poderia despertar-te de um sonho ilusório.
Mas estamos percebendo que amas mesmo o Atílio, a quem admiramos por todas as
razões, o teu casamento com ele será uma alegria para nós, mas será que ele te
ama também igualmente?
- Mais
ainda, estou certa disso!
- Então,
esperamos que nos apareça e faça o pedido.
- Ora, Atílio
é tão correto que afirmou que só se aproximaria quando tivesse certeza absoluta
de que o aceitariam. Só em último caso faria uma tentativa.
- Bem
que adivinhávamos que havia um segredo em tua vida. Só o que me intrigava é
como o guardastes até hoje. Sonsinha, não é?
- Um
amor puro e grande ensina a gente muita coisa. Aquela história de Atílio andar
vendendo miudezas era apenas uma forma de nos vermos sem que pressentissem.
Aquelas canções que eu cantava para ele ouvir a distancia, eram minhas juras de
amor. Eu sabia que mamãe procurava adivinhar e que vivia de olho em mim. Fui
mais esperta. . . Também ela jamais havia de pensar que sua Nira tivesse a
coragem de namorar um Atílio, sem boa posição social e sem dinheiro. Eu.
Perdoe-me mamãe, às vezes tinha até pena de vê-la preocupada e até pensando que
eu era uma moça retardada ou uma presunçosa que não aceitava as insinuações dos
rapazes ricos da cidade. E eu conversando tranqüilamente com Atílio e fazendo
que estivesse comprando alguma coisa por outros motivos. Como mamãe voava muito
alto e eu estava cá embaixo, nunca desconfiou do Atílio, o mascatezinho dos
domingos e feriados...
-Tu
merecias agora, eram uns bolos com uma boa palmatória. Pois esta dormente me
enganou todo este tempo com aquele espertinho. E eu que tinha pena dele e
comprava também suas agulhas e alfinetes, rendas e sabonetes, só para ajudá-lo.
Quero mesmo ver com que cara vai me aparecer aquele descarado. Eu com pena também
dessa safadinha, já moça feita, sem namorado, pensando que ela sofria muito por
isto. Quando cantava aquelas bonitas e saudosas canções, cheguei até a chorar
às escondidas supondo que ela sofria. Mas vocês dois ainda vão me pagar bem
caro minhas preocupações e os meus zelos. Seu Atílio, com aquela carinha de
sonso, zombando do faro de uma mãe zelosa. Cheguei á humilhação de andar
escutando por traz das portas na tentativa de ouvir um nome ou qualquer coisa
que me servisse de roteiro. E a filinha do coração conversando e de namoro
serrado com o engraçadinho do Atílio, em minha porta, sob os meus próprios
olhos, sem perceber nada. Como, meu Deus, poderia supor tamanha habilidade
daquele cara de inocente e desta santinha de pau oco. Mas eu os espero na curva
do caminho. Deixo ele me aparecer. Quem via aquela figurinha de grilo de fava,
só podia supor que estava era empenhado em vender suas bugigangas para comprar
o pão com que mitigasse a fome. Todo piedoso, modesto, aflito, mostrando-me,
num apelo, a sensibilidade de uma mãe, as suas aflições:
– Compre
dona, compre-me alguma coisa. Mamãe está aflita me esperando. - Ah! Bicho
descarado. E tu também, deslambida! Zombando de mim. Nunca uma mãe foi tão
enganada...
Atílio
não tinha mais por quem esperar. Nira havia lhe transmitido o convite do pai
para o jantar do domingo. E teria que, ir com dona Sofia. Prepararam-se os
dois, à última moda, recendendo perfume caro. Roupas em folha. Dona Sofia
continuava a mesma mulher simples, apenas com uma antiga aliança, sua mais doce
recordação.
Atílio
entrou em casa de Nira com o coração nas mãos, tal a emoção que sentia. Dali
por diante não teria mais que esconder seu amor pela menina de seus sonhos de
tantos anos. Os anos mais longos de sua vida. Dona Cinira estava inquieta a
esperá-lo. Queria descoser-lhe as orelhas. Mas Atílio resolveu reagir e levar a
coisa na brincadeira. Para isto possuía habilidade.
- Então
meu mascatizinho de uma figa enganou-me, não é. Vendendo suas bugigangas, e com
os olhos em minha filha, não é. Pois olhe, só lhe perdôo a traição por causa de
Nira.
- Ora
dona Cinira há de desculpar, mas era o único meio que encontrava para mascatear
meu amor pela menina Nira. Humilde como era não havia outra saída honrosa...
- E
quem teve essa idéia ardilosa?
- Para
lhe ser sincero fomos nos dois, Nira e eu. Caso descobrissem logo, com certeza
teriam um enorme desgosto e Nira e eu iriam sofrer. Assim, não. Víamos-nos, conversávamos
um pouco e, por fim ouvia as belas canções que ela cantava para que eu ouvisse
suas mensagens de amor. Tinha receio que a senhora desconfiasse, mas Deus é
maior do que eu pensava e protegia nossos encontros. Por favor, chame logo o Dr.
Antonio que tenho pressa em desincumbir-me do restante da tarefa. Pelo que
percebo, a senhora não aprova nosso noivado e, quero saber se o Dr. Antonio não
terá a mesma atitude.
- Antonio é teu chaleira e da boazinha da Nira.
Também não tem nada contra. Acalma-te e considera-te meu genro, seu peralta. O
que pretendia era dar uma puxadela de orelha, aliás, nos dois por terem me
enganado todo esse tempão. Fiz coisas de menino buchudo para saber o que a Nira
fazia sem querer saber de namorado e passei por baixo da mesa.
- Ora,
havia acertado com a Nira que somente nos revelaríamos quando eu estivesse em
condições de dar-lhe conforto. Amor sem conforto, geralmente dura pouco. E eu
não queria perdê-la. Nunca acreditei naquelas promessas de mulheres
apaixonadas, casar e ir morar numa choupana ou debaixo de uma ponte ou de um pé
de pau. Quando a paixão se acaba ou se satisfaz, quer é um reinado, palácio de
cristal e faisão. Sapatinho doirado e viagens maravilhosas num reino encantado.
E Atílio não cairia nessa. Hoje, não. Não tenho muito para dar, mas o que
possuo vai crescer com o amor de nós dois. Que quer ser o casal mais feliz de
todos os tempos já está escrito nas taboas de Moises. E como eram agradáveis
aquelas comunicações furtivas, isto é, ás vistas da “mamãe” sem que ela
percebesse. A senhora é uma santa criatura para quem fazíamos nossas orações no
sentido de não perceber o nosso segredo. Creia que jamais houve um mascate de
tanta sorte. Nira me esperava sempre a hora acertada, com uma de suas mais
bonitas canções. O dinheiro que recebia dela, está todo guardado para
devolvê-lo. E com que doçura ela me comprava e pagava. Nas moedas que me
entregava eu sentia nossa felicidade. E todas às vezes traziam-lhe alguma
insignificância como presente. Não as usava para não despertar curiosidade.
- Vocês
me traíram, me enganaram, zombaram de mim. Também como havia de pensar que
minha Nira estivesse apaixonada por uma figura como essa tua. Também confiava
nela, julgando-a uma coitadinha inocente que só sabia modular aquelas canções
de seresta, quando eram mensagens que te enviava, seu pelintra. Mas já te disse
que irão me pagar com juros dobrados.
- Sim
senhora. Pagaremos quando nos casarmos. Quer um netinho ou uma netinha. A
senhora mesma escolherá o nome e será a madrinha. Creio que Nira concorda
comigo.
- Olha Atílio,
com um espirro de gato da tua qualidade, Nira nunca terá filhos. Pelo menos é o
que penso.
- Talvez
até não, pois não quero vê-la deformada, carregando um par de gêmeos. Pensa
senhora que sou o doutor. Um homão daquele, com uma filha só. Adoro Nira e será
ela quem irá dizer como quer. O melhor mesmo será amar sem ter filhos, andar
enjoando, cheia de desejos esquisitos. Afinal de contas vamos reservar este
assunto para depois do casamento.
- E querias
que fosse antes?
- Não,
mas se fosse também à senhora não iria descobrir nada. Como detetive, é uma
fracassada.
- Vê bem, quero respeito. Do contrário não
casarás mais com a Nira.
- Agora
está sem jeito. Já temos um plano formado para o caso de uma recusa.
- Que
plano?
- Não
casar e continuar o namoro até nascer o primeiro filho...
- Bandido!
- A senhora não está vendo que é uma
brincadeira. Também não percebe nada meu Deus. Imagine que espécie de sogra é
esta que arranjei.
- Olha
seu cara de mamulengo (ia dizer um nome feio) brincadeira tem dia e hora.
- Muito bem, desculpe, mas preciso
conhecer bem a mãe de minha Nira.
- Minha
não. Ainda não é dono de nada.
Nira ia chegando e ouviu o final da conversa.
Aventurou-se a ajuda a Atílio.
- É por
isto mamãe que falam tanto das sogras. Deixe meu noivo em paz.
- Deixar
o que? Estou certa de que irás fazer um péssimo casamento. Este sujeitinho é
metido a engraçado, todo cheio de lérias. Sabes o que me disse? Teve o topete
de me dizer que se houvesse recusa de nossa parte, esperaria até que nascesse o
primeiro filho. Desavergonhamento e falta de respeito.
- Tua
mãe não entende de nada, Nira. Imagina. Referia-me a gatinha que tenho em casa.
Aquela angorazinha...
- Angorazinha
o que seu velhaco, mascate de uma figa.
Dr.
Antonio chegou. Risonho e amigo cumprimentou Atílio e foi logo lhe agradecendo
por ter aceitado o convite para o jantar. Olhou para a mulher, de cara amarrada
e estranhou.
- Que
houve com tua gata!...
- Também
quer botar ás unhas de fora e fazer gracinha...
Nira interveio.
Explicou ao Dr.Antonio a zanga da mãe. Não entendeu uma brincadeira de Atílio e
torceu o nariz.
- Ora,
Nira, tua mãe levou mais de três anos e não descobriu teu namoro com Atílio,
quanto mais uma coisa assim momentânea. É uma santa e adorável criatura, mas
não tem faro de gato. Eu que não fazia pesquisas, já havia percebido que aquela
história de mascate era uma farsa. Vi certa vez pela fresta da janela a alegria
de vocês dois. E sabia desde então qual era a mascateação. E tua mãe bebendo
água. E ainda comprava linha, agulha, sabonetes, e pagando toda satisfeita a
malandragem dos dois.
- Sabem
de uma coisa, vocês três cabem na mesma sacola. Fiquem-se aí que vou cuidar no jantar. Mas um dia me pagam...
- Eu
também, minha querida!
- Será
o primeiro. Deixo-te a pão e água.
- Ou
francisquinha, traz aí duas cervejas geladas para abrir o apetite desses
gaitas.
Atílio
saboreava a cerveja e preparava-se para falar do noivado. Dr.Antonio percebia o
engasgo e antecipou-se.
- Fique
tranqüilo e considere-se noivo de Nira. Vamos acabar com essas formalidades
vexatórias. Basta o que minha mulher já sofreu. É uma inocente. Quero que vocês
dois se amem como nos temos amados. Nunca discutimos, nunca brigamos, a não ser
quando Nira estava para nascer. Não queria que eu fizesse o parto. Eu não
queria que alguém botasse a mão nela. E ela não confiava em mim. Tivemos que
chamar uma parteira. Fiquei como assistente da velha Pureza. Mas, quando a
coisa apertou, gritou por mim. E como não tinha como evitar as dores naturais
passou-me na cara: - “não disse que não sabes de nada. Volta para a escola de
medicina”. Como não nasceu mais ninguém não houve mais briga. Olha Atílio,
tinha muito medo que Nira viesse a se casar com um desses mocinhos fúteis que
só sabem mesmo onde está o dinheiro do papai e a proteção da mamãe. Gente que
tirada à roupa que veste não fica nada que se aproveite. Alguns desses andavam
rondando, mas, felizmente, ela parece que adivinhava meus pensamentos.
- Talvez
não seja eu a pessoa ideal que o senhor pensa. No entanto, confio no amor que
me prende a Nira. Vem de muito longe, de quando eu era apenas um rapazinho de
mãos vazias e que teria de alcançá-la com esforço, perseverança e honestidade.
Era ela que me dava coragem e estímulo para vencer todas as distancias que nos
separava. Enquanto Nira esperava por mim, sabendo que eu lutava desesperadamente
para merecê-la, creia, nunca tive um momento de dúvida ou de desânimo. E como
foi difícil chegar à meta dos meus sonhos. Da vida do campo, saltei para o comércio,
onde alcancei duas grandes vitórias. Condições financeiras satisfatórias e nível
social que me permitia e me dava coragem para ter a pretensão de pedir-lhes
Nira em casamento. Mas, perdoem-me o senhor. Deu-me seu consentimento, é
verdade, mas não consultou dona Cinira e nem ouviu sua filha. No momento
decisivo às vezes a realidade não é aquela que se imagina. Não tenho dúvidas
quanto à Nira, mas dona Cinira me pareceu incerta.
- Não
creio Atílio. Em todo caso, vamos ouvi-la. E chamou-a com a filha.
- Como
é, Nira, o senhor Atílio acaba de te pedir em casamento. O que nos dizes?
- Atílio
é o meu sonho bom. Venho há muito tempo esperando por este momento. Sempre foi
meu primeiro e único amor.
- E você,
Cinira, qual o seu pensamento.
- O
senhor Atílio, merece sem dúvida, a mão de Nira, mas, tanto ele quanto ela, merecem
um castigo exemplar. Enganaram-me e zombaram de meu amor e zelo de mãe. Tudo o
mais posso esquecer, mas aquela tapeação de mascate me abalou os nervos. Quando
imagino que fazia compras a este espertalhão pensando que queria nossa ajuda
para sair de alguma dificuldade, estava era criando oportunidade para ver a
nossa filha e namora-la às ocultas. E eu, feita uma tola, bebendo água de pote.
Preocupada pela atitude da menina, que ao contrário de todas as outras moças
nem pensava em namorado, e ela namorando na minha cara, combinadinha com este
gaiato. E nem me passava pela cabeça que estivessem me enganando. Também não
podia pensar em semelhante disparate. Uma menina filha de um doutor, apaixonada
por um mascate de meia tigela, quando havia tanto moço afortunado, querendo-a.
Mas a culpa maior era desta espertinha e não duvido que o arranjo tenha sido a idéia
dela. Tudo, porém, mudou. O sabidinho de Atílio mostrou que tinha raça e está
aí próspero e fagueiro; hoje um daqueles de maior destaque social da vila. Dou
minha aprovação, mas exijo uma coisa dos dois: dizer quem foi o idealizador da
mascateação, que teve a déia.
- Fui eu
mesma, mãe. Era a maneira de ver e falar com Atílio sem ninguém desconfiar. E a
senhora me ajudava mandando fazer comprinhas. E eu achava até engraçado, embora
tivesse remorso de estar enganando. Comentava isto com Atílio ele me dizia:
“coitada de dona Cinira”.
- Disse
que ia perdoar, mas não perdôo mais. Podem se casar, se o Antonio consentir,
que é um chaleira, da filha e deste mascate de uma figa, vou exigir outra
coisa. Que se ajoelhem os dois e digam: “perdão, mamãe”.
- Perdão,
mamãe!!!
- Ou Francisquinha.
Traz aí as garrafas de champanhe e as taças que guardei para o noivado desses
dois descarados. E como é, seu cara de fuinha, não vai beijar a Cinira.
- Precisa
mais não, mamãe. Já me beijou.
- Onde?
- Na
boca!
- É,
mais eu não vi.
- Então
lá vai outro.
- Também
não precisava um beijo tão demorado.
- Então
vou dar um mais ligeirinho...
- Está
se aproveitando, não é?
- É bom
ser obediente. A senhora merece...
- Toma
teu champanhe e cuida bem de minha filha. Nira, tu e este teu noivo bebem da
mesma água. Só espero que não sequem o pote.
Em 5.5.1986.
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