RASGA GALO*
João
Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Um parente, pessoa afortunada, e já
de cabelos grisalhos, sempre bem humorado e afiado na conversa, pegou uma
mania, ou, digamos, uma preferência esquisita, o que quase sempre lhe custava
mais caro. Galo era o seu prato predileto. Ninguém que passasse com um galo à
sua frente. Gritava logo: - é para vender? E, então não tinha preço. Comprava
desse no que desse. Mandava torrar uma banda e assar à outra e ficava
impaciente até que o bicho fosse para a mesa. Os vendedores de aves já sabiam e
passavam sempre pela sua porta oferecendo. Saltava em cima.
– Passa o pau no bicho! Levanta a chama do
fogão.
Às
vezes o galo era velho de mais, como quase todos os galos que são descartados
do terreiro, carne dura danada que levava tempo a cozinhar.
Quando
demorava muito, reclamava da cozinheira ou mesmo da mulher – Que fogo frio é
esse?
- É
que o bicho é velho e duro.
-
Põe cachaça ou folha de mamoeiro para amolecer. Vocês não aprendem nunca?
-
Jota, ou Jota, deixa essa mania de comprar galo. Não há lenha nem gás que
chegue. Parece ovo. Quanto mais cozinha mais duro fica. É um estrupício. E nem
sei como diabo se pode gostar disso.
-
Gosto não se discute. Vocês não têm paladar. Esses bichinhos novos não têm
gosto de nada. Um galo velho tem sabor especial. Carne, gordura, tutano. Esse negócio
de custar a cozinhar é secundário. Um pirão de galo é uma coisa apetitosa. Dá
gosto comer.
De
tanto correr, comprar e comer galo botaram-lhe o apelido jocoso de “Rasga Galo”.
Pensam que ligava para isso. Achava era graça.
-
Dizem por que não sabem o que é um galo bem temperado.
Mas
certa feita os amigos quiseram pregar-lhe uma peça. Procuraram o galo mais
velho da região.
A
dona do bicho era dona Chiquinha. – Não, este galo não se vende. Vem do tempo
de minha avó e era o melhor cantador das vizinhanças. Era desses que encostava
o bico no chão. Canto dobrado.
-
Mas dona Chiquinha, pagamos o que a senhora pedir. É para fazer um presente.
-
Mesmo assim!
-
Pois olhe. Pagamos o galo e damos um outro galo novo e bonito de presente.
Diante
de insistência, dona Chiquinha cedeu o bicho, com pena. – Um galo cantador
assim já desapareceu.
Afinal
lá se foi o galo da dona Chiquinha.
Mandaram
um sujeito passar à porta do Jota, apregoando galo. – Olha o galo. Grande e
gordo!
Jota
saiu às pressas e o vendedor já ia longe. Abriu a porta e gritou: - Galo!!! O
moço voltou.
-
Quando é o galo?
-
Barato. É um bichão. Pegue no peso...
Jota
suspendeu o bicho, levantou a asa, soprou as penas para ver a gordura e perguntou
o preço.
O
vendedor pediu uma exorbitância.
- Está
doido, rapaz. Onde diabo já se viu um galo por esse preço?
-
Não tem nada. Vou à frente. Já está quase encomendado. Lá adiante tem um freguês
que é doido por galo. Paga o que se pede. É quase só chegar e entregar e meter
o dinheiro no bolso. É o preço por quanto à dona mandou vender. Se não achasse,
levasse de volta. É um galo de estimação. Tem carne como um peru. Criado com milho
e sadio. Veja como tem a crista vermelha, bem corada. Se eu pudesse ficaria com
ele para criar. Só o canto vale o dinheiro. É porque a velhinha está
necessitada. Senão... Bem até logo. Depois não se vá se arrepender. O senhor
nunca comeu um galo como este.
-
Faça uma diferença.
-
Não tem jeito, é ordem da dona.
-
Nunca comi um galo tão caro na minha vida.
-
Quem gosta do que é bom...
-
Passa para cá, o bicho. Quando trouxer galo, pare por aqui.
-
Sim senhor.
Jota
entrou com o galo pegado pelas asas. Chamou a mulher, chamou a cozinheira.
Está
ai um galo especial. Preparem a rigor.
A cozinheira
examinou o bicho. – Este não cozinha com oito dias de fogo.
-
Conversa. É um galo como os outros. Dá-lhe um porre de cachaça antes de matar.
Amacia a carne...
O
galo era tão duro que quase não morre. Carne arroxeada e fibrosa. Gordura só no
couro amarelado. Foi ao fogo de lenha de aroeira e angico. Quanto mais levava
fogo, mais endurecia e ficava nervento. Deu meio dia, uma hora da tarde e o garfo
não furava.
- O
bicho encruou. Está com o cão. Duas horas.
-
Bota esse almoço, minha gente. Que galo difícil é este minha gente?
-
Venha ver. Não há jeito. Experimente. Cru, cru. Coma outra coisa. Carne assada,
ovos, que este galo não vai sair hoje.
- Quero
é galo, galo, galo... Passa no moinho.
A
empregada obedeceu.
- Dá
não seu Jota. O moinho engasga. É uma bucha. Só botando para os gatos.
-
Gato coisa nenhuma. Então, vou perder um galo desses. Nem se fale nisso.
Aumenta o fogo.
Jota
resolveu ir à carne de sol e ovos com uma farofinha de manteiga. - Vocês também
não se lembraram de nada. Façam um pirão. Ou também o caldo não cozinhou?
Tangam os miúdos. Moela, fígado. - Ao espetar, a moela saltou do prato. O pirão
não tinha gosto de nada.
-
Deixa no fogo, nem que queime toda a lenha do Cariri. Bota folha de mamão na
panela, mas, esse galo não me escapa.
Com
um dia e uma noite de fogo de aroeira e angico, o galo amanheceu mais brando.
Tinha que ser. Não era possível. A moela não teve jeito. As obturações dos
dentes caíram, mas o galo foi digerido lentamente. Mesmo assim Rasga Galo não
perdeu o hábito nem o apetite.
- Olha
o galo!
- Quanto
é? Passa pra cá!
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