terça-feira, 6 de agosto de 2013


RASGA GALO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Um parente, pessoa afortunada, e já de cabelos grisalhos, sempre bem humorado e afiado na conversa, pegou uma mania, ou, digamos, uma preferência esquisita, o que quase sempre lhe custava mais caro. Galo era o seu prato predileto. Ninguém que passasse com um galo à sua frente. Gritava logo: - é para vender? E, então não tinha preço. Comprava desse no que desse. Mandava torrar uma banda e assar à outra e ficava impaciente até que o bicho fosse para a mesa. Os vendedores de aves já sabiam e passavam sempre pela sua porta oferecendo. Saltava em cima.
 – Passa o pau no bicho! Levanta a chama do fogão.
Às vezes o galo era velho de mais, como quase todos os galos que são descartados do terreiro, carne dura danada que levava tempo a cozinhar.
Quando demorava muito, reclamava da cozinheira ou mesmo da mulher – Que fogo frio é esse?
- É que o bicho é velho e duro.
- Põe cachaça ou folha de mamoeiro para amolecer. Vocês não aprendem nunca?
- Jota, ou Jota, deixa essa mania de comprar galo. Não há lenha nem gás que chegue. Parece ovo. Quanto mais cozinha mais duro fica. É um estrupício. E nem sei como diabo se pode gostar disso.
- Gosto não se discute. Vocês não têm paladar. Esses bichinhos novos não têm gosto de nada. Um galo velho tem sabor especial. Carne, gordura, tutano. Esse negócio de custar a cozinhar é secundário. Um pirão de galo é uma coisa apetitosa. Dá gosto comer.
De tanto correr, comprar e comer galo botaram-lhe o apelido jocoso de “Rasga Galo”. Pensam que ligava para isso. Achava era graça.
- Dizem por que não sabem o que é um galo bem temperado.
Mas certa feita os amigos quiseram pregar-lhe uma peça. Procuraram o galo mais velho da região.
A dona do bicho era dona Chiquinha. – Não, este galo não se vende. Vem do tempo de minha avó e era o melhor cantador das vizinhanças. Era desses que encostava o bico no chão. Canto dobrado.
- Mas dona Chiquinha, pagamos o que a senhora pedir. É para fazer um presente.
- Mesmo assim!
- Pois olhe. Pagamos o galo e damos um outro galo novo e bonito de presente.
Diante de insistência, dona Chiquinha cedeu o bicho, com pena. – Um galo cantador assim já desapareceu.
Afinal lá se foi o galo da dona Chiquinha.
Mandaram um sujeito passar à porta do Jota, apregoando galo. – Olha o galo. Grande e gordo!
Jota saiu às pressas e o vendedor já ia longe. Abriu a porta e gritou: - Galo!!! O moço voltou.
- Quando é o galo?
- Barato. É um bichão. Pegue no peso...
Jota suspendeu o bicho, levantou a asa, soprou as penas para ver a gordura e perguntou o preço.
O vendedor pediu uma exorbitância.
- Está doido, rapaz. Onde diabo já se viu um galo por esse preço?
- Não tem nada. Vou à frente. Já está quase encomendado. Lá adiante tem um freguês que é doido por galo. Paga o que se pede. É quase só chegar e entregar e meter o dinheiro no bolso. É o preço por quanto à dona mandou vender. Se não achasse, levasse de volta. É um galo de estimação. Tem carne como um peru. Criado com milho e sadio. Veja como tem a crista vermelha, bem corada. Se eu pudesse ficaria com ele para criar. Só o canto vale o dinheiro. É porque a velhinha está necessitada. Senão... Bem até logo. Depois não se vá se arrepender. O senhor nunca comeu um galo como este.
- Faça uma diferença.
- Não tem jeito, é ordem da dona.
- Nunca comi um galo tão caro na minha vida.
- Quem gosta do que é bom...
- Passa para cá, o bicho. Quando trouxer galo, pare por aqui.
- Sim senhor.
Jota entrou com o galo pegado pelas asas. Chamou a mulher, chamou a cozinheira.
Está ai um galo especial. Preparem a rigor.
A cozinheira examinou o bicho. – Este não cozinha com oito dias de fogo.
- Conversa. É um galo como os outros. Dá-lhe um porre de cachaça antes de matar. Amacia a carne...
O galo era tão duro que quase não morre. Carne arroxeada e fibrosa. Gordura só no couro amarelado. Foi ao fogo de lenha de aroeira e angico. Quanto mais levava fogo, mais endurecia e ficava nervento. Deu meio dia, uma hora da tarde e o garfo não furava.
- O bicho encruou. Está com o cão. Duas horas.
- Bota esse almoço, minha gente. Que galo difícil é este minha gente?
- Venha ver. Não há jeito. Experimente. Cru, cru. Coma outra coisa. Carne assada, ovos, que este galo não vai sair hoje.
- Quero é galo, galo, galo... Passa no moinho.
A empregada obedeceu.
- Dá não seu Jota. O moinho engasga. É uma bucha. Só botando para os gatos.
- Gato coisa nenhuma. Então, vou perder um galo desses. Nem se fale nisso. Aumenta o fogo.
Jota resolveu ir à carne de sol e ovos com uma farofinha de manteiga. - Vocês também não se lembraram de nada. Façam um pirão. Ou também o caldo não cozinhou? Tangam os miúdos. Moela, fígado. - Ao espetar, a moela saltou do prato. O pirão não tinha gosto de nada.
- Deixa no fogo, nem que queime toda a lenha do Cariri. Bota folha de mamão na panela, mas, esse galo não me escapa.
Com um dia e uma noite de fogo de aroeira e angico, o galo amanheceu mais brando. Tinha que ser. Não era possível. A moela não teve jeito. As obturações dos dentes caíram, mas o galo foi digerido lentamente. Mesmo assim Rasga Galo não perdeu o hábito nem o apetite.
- Olha o galo!

- Quanto é? Passa pra cá!

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