quarta-feira, 14 de agosto de 2013

SACI- PERERÊ – CAIPORA*









João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Quando a gente é pequeno, facilmente se impressiona com as coisas. Mesmo vivendo na roça, misturado com a natureza, montando em cavalo, montando cabras, andando pela noite, sempre aparece alguma coisa para assustá-lo.
            Com Adriano era o bicho Caipora, um molequinho franzino, de perninhas secas, cabelos bem fininhos e sempre com um cachimbinho de barro, pitando. Não andava pelas matas e sim, somente pelos campos e pelos matos encarrascados, matos baixos e ralos.
            Para Adriano o bichinho estava em toda parte e vez por outra ouvia o seu assovio fino e comprido. Era sinal de que andava por perto e o acompanhando. Poderia aparecer de um instante para outro. O Caipora era ligeiro e corria como ninguém. Não fazia tropel e tinha o dom de ocultar-se por traz de qualquer garrancho.   Adriano tinha uma vontade doida de vê-lo. Vê-lo de longe, de onde ele não pudesse pegá-lo. Mas era engraçado. Nunca se ouviu falar que o Caipora fizesse mal a ninguém. Sua distração era fumar seu cachimbinho. E como vivia sozinho, gostava de estar perto de meninos, com vontade de brincar com eles. Tanto assim que não chegava perto de gente grande. Ficava por todo tempo, escondidinho olhando a meninada brincar, doidinho para juntar-se a eles. Mas ninguém o chamava.
            Adriano perguntou certa vez a mestre Pedro donde o Caipora tirava fumo para fumar E o que é que ele comia.
            - Ora, Caipora é um bichinho muito esperto. Apanha folhas de fumo na roça, bota para secar e guarda. Quando não tem mais, fuma folhas de alecrim, de jurema, qualquer folha cheirosa. Anda sempre com um tiçãozinho de fogo que nunca se apaga. Come quase nada. Mel de jati e frutinhas; a de que mais ele gosta é cumati.
            - E onde o coitadinho dorme, hem mestre Pedro?
            - Sobe nas árvores, escolhe um galho bem alto, cruza as perninhas e pega no sono. Só acorda quando o sol sai. Aí se esconde numa moita e dorme de novo. Gosta de andar à tardinha e no começo da noite.
            - Bem que eu queria ver um. Mas só ouço os assovios.
            - Pois é. Quando o Caipora assobia é chamando a gente. Mas vocês correm com medo e o bichinho acompanha até perto de casa. Fica invisível quando quer. Bebe água nos tanques e nas folhas dos matos. Só bebe água bem limpinha. Já vi muitos Caiporas. É uma carinha engraçada e divertida. Só vive rindo quando vê gente. Adora meninos. Mas os meninos não querem saber do Caipora. E é aí que ele fica triste.
            Certo dia, encontrei o Caipora comendo cumati. Ele nem me viu. Ficava só piscando os olhinhos miúdos. Não tinha pressa. Apanha de um por um, mastigava bem, engolia e dava uma risadinha gostosa. É um safadinho. Só apanha as frutas bem madurinhas e doces; tirou umas baforadas e deitou-se sob um pé de cumati. Colocou o cachimbinho de lado e adormeceu. Fiquei muito tempo olhando pra ele. Parece que estava sonhando com coisas engraçadas. Fazia um arzinho de riso, mesmo dormindo.
            - E quando chove, onde ele fica pra não se molhar?
            - Ah! Ele gosta da chuva. Pelas noites de chuva Caipora tem a sua casinha escondida, cobertinha de capim. E uma caminha de varas com um colchãozinho de capim e folhas secas. O Caipora cobre-se nas noites chuvosas ou de frio, com um lençolzinho que ele mesmo tece com tirinhas de bananeira. Cobre-se e só deixa a carinha de fora.
            - Dizem que o saci só tem uma perna. É assim mesmo?
            - Que nada. Isso é conversa de gente besta. O Caipora tem duas perninhas e os pezinhos de menino. É um caboclinho de boa altura bem feitinho de corpo. Uma graça.
Quando quiser ver o Caipora é só me chamar. A gente sai à tardinha lá pelos carrascos e é só escutar o assovio.
            Tem uma coisa. Se tiver medo ele não aparece. Fica invisível. Não gosta de quem não gosta dele. Mas olha, a gente nunca sabe bem onde ele está assoviando. É misterioso.
            Era uma noite chuvosa, fria e úmida. Saci-Pererê foi para sua casinha, deitou-se, cobriu-se com seu lençolzinho de fibras de bananeiras, bem encolhidinho e depois de muita imaginação, adormeceu e sonhou. O sonho mais lindo de toda a sua vida de menino. Saci não envelhece. É sempre o mesmo caboclinho, pitando em seu cachimbinho de barro.
            Nunca mais haveria de esquecer aquele sonho delicioso.
            - Mas o que foi que Saci sonhou?
            - Sonhou com o que ele mais desejava.
            Na encruzilhada do caminho, estava um grupo de meninos brincando. Havia uma alegria encantadora.
            Saci assoviou.
            - Meninada! – Saci- Vamos chamá-lo?
            E um deles assoviou fininho.
            Ele assoviou mais perto e foi se chegando.
            Entrou na brincadeira e a meninada ria a valer da carinha e do cachimbinho de Saci-Pererê, com aqueles olhinhos redondinhos e vivos.
            Brincavam de guerra, de corrida, de se esconder. Havia sido o dia mais alegre de sua vida.
            Mas o caboclinho Pererê acordou e viu que tudo tinha sido apenas um sonho. E então, chorou, chorou, como um menino perdido. E daí por diante, Saci ia todos os dias bem escondidinho assistir as brincadeiras da meninada.
            Quando se cansou de vê-los brincando, fazia a sua brincadeira. Dava um assovio bem fino e bem forte, mesmo em cima deles. E ria o mais não poder rir com a carreira desabalada. E era assim que ele também se distraia.
            - E em casa diziam – Caipora assoviou bem em cima da gente. Quase nos pega!
            - Que nada seus bobos. Quem assovia é um pássaro. Nem se assustem.  O caipora não anda pelo dia. Somente à tardinha e à boca da noite, Depois vai dormir.
            - Bem que a gente estava sentindo cheiro de fumaça de fumo. Era ele que estava bem juntinho.
            É só impressão e medo seus tolos.
            Passaram-se alguns dias sem irem brincar na encruzilhada. Saci ia esperá-los todos os dias, até que voltaram.
            Saci então não assoviou mais. Gostava de ficar olhando. Não iria mais assustá-los. Mas, certo dia veio um gaiato fazer medo à meninada. E ficou escondido. Quando a garotada estava na maior das alegrias, o garoto soltou-lhe um assovio bem em cima. A carreira foi de perder as calças.
            - O Caipora ficou danado. E procurou vingar-se. Foi de mansinho deu o seu mais fino e forte assovio bem no ouvido do sujeito. A carreira foi maior do que a dos meninos. Mas Caipora correu atrás dele, num pega a qui pega ali, assoviando forte nas costas do medroso. Foi deixá-lo no terreiro da casa. E nunca mais o gaiato foi fazer medo a ninguém. Também não contou da carreira que havia dado.
            A meninada mudou o lugar das brincadeiras. E todas às vezes o caboclinho Caipira ia assistir, contente, suas brincadeiras. Esquecia-se até de fumar no seu cachimbinho de barro, nas horas de tão gostosa distração.
            Saci – Pererê – O Caipora dos carrascais da Arara, pertinho de Areal**, ainda hoje anda por lá fumando em seu cachimbinho e mortinho de saudade dos meninos de seu tempo que envelheceram e nem sabem mais brincar.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

**Nota:
Grijalva Maracajá Henriques – Historiador e Pesquisador.

            A fazenda Arara que meu pai se refere, fica no Município de Esperança – PB, próxima da cidade de Areal. Antigamente, também morei lá, por uns meses. Fazenda próspera, tinha sido do meu avô. Plantava-se fumo, feijão, mandioca, batatinha, erva–doce; criava-se de tudo: bois, vacas para leite, carneiros, galinhas, guinés e o diabo a quatro.
            Todos os meus parentes viveram e sobreviveram, estudaram, criaram suas famílias no trabalho honesto daquelas terras brancas. Hoje quem passa por lá – fui, várias vezes – assisti - com um aperto no coração – um abandono terrível, não existe um pé, pelo menos de “gogóia”, ou um pinto que tenha escapado dos gaviões.
            O último proprietário, - “dizem” que devia muito Imposto de terras, quando partiu para o outro lado, o governo tomou dos herdeiros e as entregou aos Sem-Terra da região. Que saudades... Dos homens trabalhadores de antigamente!

           




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