terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A VACA MANSINHA


                           



A      VACA     MANSINHA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 Era outro animal de maior estimação. Era como se fizesse parte da grei. Creio que foi adquirida do José Vieira, lá da zona do Brejo de Alagoa Nova, criada na corda desde novinha, aprendera a conviver com as pessoas. Gostava de ser acariciada em qualquer parte onde estivesse.
          Era a mansidão em pessoa. Era um mimo de animal bem conformado. Baixinha, sempre gorducha, boa leiteira e sem qualquer espécie de manha. Não havia preço para ela.
            - Teria que morrer no pasto. E foi assim. Meu pai dizia - Ninguém vai tocar nela. Ajudou a criar os meus filhos e é um animal de estimação.
 Havia quase uma devoção à vaca Mansinha. Ninguém se atrevia sequer a gritar com ela. Teria até vergonha de tratá-la com grosseria. E era engraçado, aprendera os hábitos do seu ex-dono. Educado, tranqüilo e gorducho.
          Um lembrava sempre o outro. Também não tinha pressa. Nada de correrias e chifradas. E era uma mãe exemplar. Tinha ciúme de suas crias e estava sempre vigilante. Parecia até que era muito mais mãe do que muita gente que anda por aí.
          Não escondia leite. Tinha-se que tirá-lo e deixar a parte do bezerro. Minha mãe sempre perguntava por Mansinha. Como é já teve cria? Cuidado com Mansinha. Os partos sempre foram normais. As crias eram sempre machos. Parecia até que as outras vacas a respeitavam.
          Era um exemplo de educação e de paciência. Admirável! Quando José Vieira chegava, perguntava logo pela vaca Mansinha. Tinha saudades dela. Tinha-se às vezes a impressão que nos visitava mais para vê-la e matar saudades, do que propriamente por outra coisa. Ficou muito triste quando soube que havia morrido. Ficou pensativo como se houvesse sido uma pessoa da família ou amigo de todas às horas.
          Mamãe chorou. A meninada também. Meu pai, ninguém sabe. Talvez às escondidas. Nunca deu parte de fraco...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

Nota: recordações de infância do meu pai, na fazenda Arara, Município de Esperança Paraíba, onde nascera e se criara.


OS BINÓCULOS



OS BINÓCULOS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Ele oitenta e cinco anos e ela oitenta e dois, um casal como poucos existem. Nasceram, e casaram-se no interior, vida de fazenda bem em cima da serra da Borborema. Fora do período escolar, iam à cidade pelas quatro festas do ano ou em solenidades especiais. Custódio, um velhinho, que tivera preguiça de crescer e ficara abaixo de um metro e trinta, coisa que não lhe causava qualquer complexo. Fisionomia agradável e dignidade à prova de maçarico. Ninguém sabia de um ato seu que não merecesse elogios. A fazenda era o seu mando e lhe rendia o que desejava pra uma vida normal. Não conhecia excessos e principalmente a moral era coisa sagrada. Qualquer liberalidade era considerada uma quebra de dignidade.
             Um decote, uma saia acima do tornozelo e até uma calça de homem muito justa, falta de vergonha. Manga curta não ficava atrás. Mulher que cortava os cabelos e fumava em público era um Deus nos acuda. Sem-vergonhice.
            Dona Alexandrina, nem era bom pensar. Ia além das regras do marido. Criatura simpática, alegre e religiosa como se fosse uma beata. Nada de falhar com suas rezas diárias no quarto do santuário. Santuário antigo, trabalhado e apinhado de imagens dos santos de sua devoção. Pelas paredes, estampas, crucifixos, rosários bentos e cruzes de palha benta dos domingos de ramos. Fazia gosto aquela devoção.
            A vida na fazenda foi se tornando em solidão. Os três filhos, todos casados, bem situados na vida e na sociedade, passaram-se para morar na capital a antiga Paraíba, de antes de João Pessoa.
            Pedro, o mais velho, Cirurgião Dentista, Jonas, Guarda Livro e Paulo, funcionário da Secretaria da Fazenda. A permanência do casal na fazenda era-lhes uma constante preocupação. Naquela idade, deveriam os pais viver pertinho deles. Embora tenha sido difícil convencê-los a transferirem-se para a capital, após imensa luta, conseguiram. Um problema era onde desejariam morar. No centro da cidade, num bairro ou na praia?
            - Nada de centro. O melhor seria mesmo um recanto onde estivesse em contato permanente com a natureza.
A escolha foi a praia de Tambaú. Ali estavam um mar admiravelmente belo, os coqueirais, os cajueiros nativos, as jangadas, os navios passando para Cabedelo e um mundo de poesia. Tambaú, Cabo branco, a praia de Gonçalo, Ponta do Mato, praia Formosa e o areal limpinho da praia.
            Mais distante, mar adentro, o cordão de arrecifes onde quebravam as ondas formando uma beleza sem igual, de brancas espumas. Aquilo era para não se cansar de ver. Mar esverdeado, mar azulado, mar claro, dependendo das horas. A saída e a chegada das jangadas era outro espetáculo deslumbrante.
            O casal Santiago mudara completamente de ambiente e de sistema de vida. A fazenda ficara entregue a um sobrinho que a fazia render ainda mais. Era um patrimônio de família intransferível, pelo valor e pela afetividade. Passaria de filhos a netos. Quando queriam diluir as saudades faziam–lhe uma visita, reviam recanto por recanto e voltavam com caixas de queijos e manteiga de garrafas, amarelinhas como se fosse gema de ovo.
            Nos dias santos e domingos os filhos reuniam-se a eles e aquela convivência enchiam-lhe de prazeres. Pela manhã e à tardinha, passeavam os dois pela orla dos mares e aquele ar saudável era-lhes um elixir de longa vida.
            Os tempos foram se indo imperceptivelmente e os costumes evoluíram numa corrida de doidos varridos. Os decotes cresciam, as saias encurtavam pernas, e seios mal protegidos, ofereciam um espetáculo novo aos olhos curiosos do casal. A princípio parecia o fim do mundo que estaria para acabar. Era um escândalo, moças de maiô colado, mostrando irreverentemente as curvas e reentrâncias do corpo.
            Dona Alexandrina não tirava os olhos de cima de Custódio. Acompanhava-lhe todos os movimentos.
 - O que é que estás olhando, Custodio? Vamos para casa. Isto é uma vergonha. Onde estão os pais dessas desajuizadas. Podem esperar o castigo.
            - Que nada, Alexandrina, o solzinho está uma delícia... São coisas do tempo mulher. Tudo que acontece é permitido por Nosso Senhor.
            - Esta não!!! Nosso Senhor não concorda com essas patifarias. Onde já se viu semelhante descaramento. Vamos, vamos...
            - Vá você. Preciso tomar mais um pouquinho de sol. Na fazenda passava a vida no campo, tomando sol. Aqui me faz falta.
            - Faz falta coisa nenhuma, velho enxerido. Conheço tuas manhas. O que queres é ficar olhando as pernas dessas lambisgóias sem pai, sem mãe, sem juízo...
            - Nada disso, mulher. Não me adianta ver mais essas coisas... Pernas, só mesmo as tuas.
            - Não admito safadeza, nem pilantragem.
            E o tempo foi galopando. Do maiô, passaram as meninas para os biquínis e as tangas.
            - O mundo vai se acabar mais cedo do que eu esperava – dizia dona Alexandrina, fazendo o pelo sinal da santa cruz. Sabes de uma coisa, Custódio, vamos voltar para a fazenda. Uma nudez dessas já passou de falta de vergonha. Tenho rezado para ver se a coisa para e é pior ainda. Essas doidas estão cutucando o cão com vara curta. O inferno não vai caber a metade.
            - Já te disse Alexandrina, isso é coisa da evolução. Mulher nua ou vestida é a mesma. Só porque querem mostrar os seus encantos, fazes este escarcéu. Deixa as meninas se divertirem.
            - Olha Custódio, estou te estranhando e é bom que cries vergonha nas fuças. E deu-lhe uma tapinha na boca.
            - Que é isto, mulher. Vou comprar umas pecinhas daquelas para teus banhos...
            - Não suporto deboche. Vou falar com teus filhos sobre teus desavergonhamentos. Tiro você daqui. Depois de velho, caduco. Metido com enxerimentos.
            - Mas, minha velha, não saio do teu lado e estou olhando somente para o mar, vendo as ondas quebrar, a espuma alvinha nos arrecifes. Vamos fazer um acerto. Ficaremos tomando sol e olhando só um para o outro.
            - Tem graça não. Já estou enjoada dessa tua cara deslavada. Bicho cínico!
            - Somente você reclama de mim. Eu ainda nada reclamei de você.
            - Reclamar o que?
            - Estão aí os homens quase nus, só com um calçãozinho imoral e não me tiras os olhos de cima.
            - Nada disso, seu cachorrão. Não me venhas com essas insinuações. Sou uma mulher honesta e católica.
            - Sei, sei. Mas nunca é tarde demais para sonhar...
            No dia seguinte, Custódio foi à cidade. Embora, como diz Jorge Amado, - sexo começa nos olhos -, na verdade só era o que restava no coronel Custódio. As meninas de tanga não lhe saiam, então, dos olhos. E como a vista não estava lá grande coisa, fora a uma casa de ótica e comprara dois binóculos, um de maior aumento que encontrara e outro mais delicado e de pouco alcance, para dona Alexandrina. Em casa, não falou no poder de visão e teve o cuidado de ocultar o que lhe pertencia. Seria, mais tarde, uma surpresa.
            - Está aí um presente dona Alexandrina. Assim poderás observar melhor os navios que passam e as jangadas que vão ou voltam das pescarias.
            - Que beleza, Custódio. És o melhor marido deste mundo e do outro.
            No domingo, a praia regurgitava de gente. Um domingo ensolarado, claro, bonito. O mulherio fizera uma invasão ainda não vista. Até parecia que as pecinhas haviam encurtado. Estava um dia magnífico para inaugurar um binóculo. Dona Alexandrina, de binóculo nos olhos corria a orla marítima e as distancia mar adentro.
            - Formidável Custódio - Custódio experimentou o binoclozinho de enfeite e mostrou-se também maravilhado. Minutos depois deu saltinho a casa e pegou o outro, o grandão, o dele, binóculo de homem.
            - Você escondeu o seu não foi, seu velho ordinário...
            - Para fazer uma surpresa e, além disso, teve mais efeito a entrega do teu. Botou-o na cara e lamentou-se. – Vou trocar, não vale nada. Só se ver pertinho. Fui enganado.
            Dona Alexandrina, preocupada com o dela, achando tudo bonito, pertinho dela, nem se preocupou com o binóculo do Custódio. Somente no domingo seguinte lembrou-se de experimentá-lo.
            - Deixa ver aqui, Custódio.
            - Não vale nada, mulher. Uma pinóia.
            - Então vai trocá-lo. Dinheiro é dinheiro, não se pode jogar fora assim, devias ter experimentado.
            - Confiei, mulher. Sou um matutão boboca.
            E foi disfarçando.
            - Ou não sabes regular. Mexe nessa rodinha aí.
            Custódio mexeu, mas para tirá-lo de foco. Só se podia ver umas sombras apagadas e meio disformes.
            - Deixa, deixa ver.
            Alexandrina tomou o bicho, examinou-o, parecia possante. Colocou-o por cima do nariz e deu umas voltinhas no regulador, foi tentando e o foco apareceu nítido, as imagens juntinhas dela, quase aos seus pés. Quase que através dos biquínis, e nos mínimos detalhes. Só faltava ver as pessoas por dentro. Uma maravilha. Mas sempre com cara de ingênua, tirou-o de foco e devolveu.
            - Na verdade não vale nada. Precisas trocá-lo, ou então fica com o meu e te diverte à vontade. O meu é ótimo!
            - Não, Alexandrina, vale a intenção que tive. Comprei esse aí para te dar e depois este outro não é próprio para mulher.
            - Fiz tudo, Custódio e não consegui regulá-lo. É uma pena.
            Custódio, sorrateiramente, regulou o bichão, chamou as banhistas para juntinho de si e ficava se deliciando. Engolia em seco, corria-lhe um calorzinho pela espinha, lembrava-se dos seus bons tempos. De qualquer maneira era um prazer meio diabólico estar olhando as coisas proibidas das mulheres e filhas das outras. Observava os menores gestos das donas, em todas as suas posições às vezes desleixadas. Mas sempre se lamentando com a mulher. – Fui ludibriado. Vou trocar; comprar mesmo um desse teu. É o jeito. Empresta-me aqui um pouquinho.
            - Nada, disso. Fica com o teu. Além disso, é feio um homem usando binóculo de mulher...
            Custódio certinho de que dona Alexandrina falava sério, foi a casa, ali pertinho e deixou o binóculo, por puro descuido no banco da praia. Dona Alexandrina tomou-o, com pena de Custódio. Não passava de um beócio. Não sabia nem focalizar um binóculo. Mas era bom assim. Não tinha que estar olhando para o corpo quase nu das mulheres. E nem o aconselharia mais a trocá-lo. E nessas conjecturas, levou o binóculo aos olhos. Quase cai de costas. As imagens eram maravilhosas. Uma nitidez incrível. E nesse momento percebeu quando uma dona ajeitava a pecinha de baixo, na maior sem-vergonhice e logo depois levantava as pecinhas de cima e olhava para os dois bichinhos como se estivesse querendo acariciá-los.
            Custódio não passava de um cachorrão, um velho safado, a depravação em pessoa. E foi vendo muito mais coisa interessante. Lá estava um casal agarrado enroscado, no meio das ondas. Uma pouca vergonha. Colocou o binóculo no lugar antes que Custódio aparecesse. E esperou Custódio chegar com a cara mais lisa deste mundo.
            - Nem vou mais usar isto. Tão grandão e tão péssimo. Não serve pra nada. Disfarçou um pouco, esfregou os olhos pra enxergar melhor e o binóculo dormindo no banco.
            - Pega, homem, toma o meu. Tenho dó de te ver assim, com a vista curta, sem poder apreciar o mar, as ondas, as jangadas, os coqueirais, a praia Formosa, Cabo Branco, Ponta de Mato, os navios...
            - Deixa mulher. Obrigado, obrigado. Não quero privar-te de uma boa manhã na praia.
            E com alguns bons minutos tomou o seu, tentou umas espiadas e largou-o no banco. Disfarçava.
            - Me deixa tentar novamente, Custódio.
            - Que nada. Já fiz tudo. Não tem jeito mesmo. Vou tentando assim mesmo com essas imagens embaraçadas.
            - Eu acho que as lentes estão é mofadas. Muito tempo na casa...
            - É isto. Deve ser isto. E levou o binóculo à cara e ficou percorrendo a praia até que se fixou num ponto.
            Dona alexandrina procurou localizar o mesmo objeto. Olhava na mesma direção e lá estava a atração de Custódio. – O sem vergonha, descarado. Um casal se enrolando na areia, distante dos outros e na maior intimidade. Só podia ser aquilo. Não se conteve mais. Tirou o binóculo dos olhos e ficou observando. Vez por outra dava uma observada com o dela. Em certo momento Custódio desceu o binóculo. E ela focou o dela. O casal havia se levantado. Não havia mias dúvida de que era a cena que o safadório observava. Era melhor irem para casa.
            - Não, mulher. Diverte-te mais. Não te incomodes comigo. Também não sirvo mais para nada.
            - Olha Custódio, vens tentando me enganar, mas descobri tuas manhas. O binóculo que irás trocar amanhã, amanhã mesmo, será o meu. Não tens vergonha de querer enganar tua própria mulher, mulher de mais de cinqüenta anos de vida contigo. Usei teu binóculo. Uma maravilha!!! Bandido... Toma esta porcaria que me deste e me trás igual a este teu ou maior. A invenção de binóculo foi tua. Aliás, passa-me para cá logo esse teu até que traga o outro.
            - Mulher, com binóculo ou se binóculo, não adianta mais nada. Quando a coisa congela não há mais esperança. Pode-se andar em cima de brasa, a temperatura é a mesma... Não sabe?
            - Mas dá uma saudade, Custódio...
            - Que dá, dá, mas, quem sabe se não causará um enfarte. Muita gente tem morrido disso.
            - Pior é ficarmos mais inutilizados do que já estamos. Sem levantar mais e com a boca torta.
            - De qualquer forma, amanhã vou trocar o teu binóculo. A coisa é divertida.
            - Faças como quiseres. Quem manda em casa é o marido...
            - Estás ficando depravada, mulher...
            - Depravado és tu que estavas olhando aquele bolo na areia da praia.
            - E não viste também.
            - Fui só ver o que estavas olhando tão interessado.
            - Vamos deitar acolá na areia da praia.
            - Pra que?
            - Simular, ao menos Alexandrina...
            - Descarado, depravado, cachorrão... Mas como quem manda é o dono da casa, vamos lá bicho velho reimoso!
            Água salgada e areia da praia fazem milagre...
            Dona Alexandrina animou-se, mas sabia que era inútil. Tarde demais. Tinham que ficar no binóculo mesmo.

Em 6.8.1985

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

PRECONCEITOS DE IPITINGA






PRECONCEITOS DE IPITINGA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Ipitinga, uma cidadezinha muito antiga, quase um vilarejo de gente preconceituosa, socada num recanto da Serra da Borborema, zelava suas tradições religiosas e sociais.
Para se viver ali, não era apenas ocupar uma casa e comunicar-se com seu povo. Não. Não senhor. Era necessário obedecer aos costumes da terra, rezar pela mesma cartilha. Do contrário ficaria isolado, sob observação; comendo o pão que o diabo amassou. Ai daquele que não freqüentasse assiduamente as missas dos domingos; não cumprimentasse quem encontrava e não cedesse o lugar às mulheres. Essa coisa toda vinha de um passado bem distante, da família Nogueira que dera origem à cidade.
Mulheres de vida livre lá não estendiam a saia. Era chegar e ter que espirrar imediatamente. O ambiente era absolutamente familiar. E em decorrência desse rigorismo, é de se imaginar o que acontecia por trás dos muros. Desse no que desse, tudo havia de ficar em família.
Um belo dia de sol e de uma visibilidade admirável hospedara-se no hotel de dona Santa um estranho vindo não se sabia de onde. Instalou-se no melhor quarto; exigia boa cama e roupas lavadinhas. Seria pensionista, pois havia chegado para ficar.
Quem é quem não é, e o que se soube foi unicamente que se chamava José Francisco dos Santos; um nome comum, dando a entender que se tratava de pessoa de pouca importância. O que era para estanhar era a farpela. Sempre bem vestido, bem engomado, sapatos finos e anel caro no dedo anular. Não exercia qualquer profissão e aparentava não se preocupar com isso. Era uma posição que despertava curiosidade.
A gente do comércio considerava que poderia ser algum fiscal do governo e a população, de modo geral, atribuía-lhe a função perigosa de algum espião. Conversar com o homem era perdido, pois não dava uma deixa. Era sempre a mesma pessoa, andando pelas ruas, sentando-se na pracinha, conversando com quem lhe dava oportunidade. Um mistério dos diabos. José existia por toda parte, Francisco, a mesmíssima coisa e Santos nem se fala. Não tinha, pois, como adivinhar-lhe a família.
Os mais espertos faziam sondagens sem qualquer resultado. Não perdia missa, atencioso com todos. Apelaram para o vigário. Talvez se descobrisse com ele. Mas nem de longe. A única coisa que conseguiu pescar, não identificava nada. José Francisco adiantara apenas que andava procurando um lugar calmo para viver e havia gostado do clima da cidade, dos ares do Cariri. Estava se dando otimamente de saúde, admirava a conduta da população e que desejava ficar definitivamente ali, se tivesse a boa sorte de fazer um bom casamento.
Fazer um bom casamento assanhou a moçada. Com um visual daquele era mesmo de atrair qualquer donzela. Mas havia um embaraço dos diabos. Não se sabia quem era.
Um criminoso, um ladrão, um agente do governo. Tudo poderia ser. Esperavam que pelo menos o José Francisco se estabelecesse no comércio ou noutro ramo qualquer.
Diariamente aparecia com ternos novos, uma extravagância. Só poderia ser para chamar atenção e mais tarde enganar alguém.
Vez por outra, fazia uma viagem de poucos dias e retornava ainda mais apresentável. Era um enigma. Pela primeira vez acontecia aquilo em Ipitinga. E o mais sério estava para acontecer. Quando menos se espera, a filha do fazendeiro mais próspero de Ipitinga estava de namoro firmado com José Francisco. A cidade ficou estarrecida. Ou a moça estava doida ou o mundo estava mudando dos pés à cabeça. A família de Albertina chamou-a as falas. Não era possível. Onde já se ouvira falar em maior disparate. Sujeito misterioso, impenetrável e ainda encontrar uma tresloucada que se apaixonasse por criatura tão estranha.
- É, papai, não sei por que, mas fui atraída e quero me casar com ele. Pode ser uma doidice minha, mas não tenho forças para me dominar. Tenho procurado sair, esquecer, e, no entanto cada vez sinto-me mais presa.
- Vamos expulsá-lo daqui. Não poderemos consentir em tamanho desatino. Uma filha de Teodoro Abreu, casar com um troca-tinta. Nunca!
- Talvez não seja tanto assim, papai. É um moço distinto, respeitador, honesto, de boa conversa e não parece ser um zé-ninguém.
- E porque ele não diz quem é de onde veio e o que pretende. Esperamos que mudes de idéia.
- Não tenho forças. Estou vencida. Fale com ele. Pode ser que se declare.
- Nem quero vê-lo. Será melhor.
Albertina foi se encontrar com José Francisco. Contou-lhe tudo. Fez-lhe ver que precisava conhecê-lo e não seria contra sua família. De outra forma estaria tudo terminado entre os dois.
- Mas se eu te contar o meu passado, quem vai me assegurar que não te perderei?
- Naturalmente, se o teu passado for limpo, honesto, eu mesma afirmarei. Caso não seja, deverás compreender que será impossível. Como poderia casar-me contigo sem saber quem és. Julgava que me dirias tudo sobre tua vida.
- Que dizer que poderia confiar em ti se nada existir que me desabone?
- Certamente que sim.
- Pois, sob total sigilo, vou te dizer quem eu sou. Talvez não queiras acreditar, mas lhe direi somente a verdade. Sou filho daqui mesmo, deste Município de Ipitinga. Sai da roça ainda um meninote, um rapazinho que sonhava por assim dizer, com o inatingível. Fui-me de léu em léu e cheguei a São Paulo. Levei por vários anos, uma vida de cão sem dono. Parece, entretanto, que quanto mais o destino me acossava, maior era a vontade de prosseguir. Empreguei-me como auxiliar de balconista. Fazia o trabalho mais árduo, mais pesado. Estudava à noite na certeza de que venceria mais tarde. Como já podia comer e tinha onde dormir, tinha a impressão que estava vitorioso. Quando já sabia escrever e ler, mandei carta para meus pais, gente pobre e comecei a ajudá-los como podia. Anos depois, em dois anos consecutivos, faleceram. Foi aí que sofri o maior desengano de minha vida. Senti-me só, como se me houvesse jogado num deserto sem saída. Quem nunca ficou só, não sabe o que é solidão. Só, no meio de muita gente. Redobrei meus esforços. Subi de categoria. Reuni algum dinheiro e com a experiência adquirida, instalei um boteco. E fui somando, somando. Passei a uma mercearia e por fim a uma grande casa comercial em local que se tornou disputado. A cidade crescia e o que me pertencia estava então numa das zonas mais valorizadas de São Paulo. Começaram a fazer-me ofertas. Ofertas que me pareciam até coisas de loucos. E foi nessa fase que passei por uma imprevista transformação sentimental. A lembrança de minha terra. Parecia ver a casinha de meus pais, as mesmas árvores do campo, os mesmo recantos. Aquelas imagens não me saiam da memória. Tinha também a impressão de que aqui não mais me sentiria sozinho. Bastaria pisar no mesmo chão onde nasci e vivi minha infância. Dias e noites ouvia aquele chamamento. E foi assim que resolvi vender tudo e voltar para minha terra, comparar por qualquer preço o local de meu nascimento. E isto já o fiz. Matei minhas saudades e, agora, morro de amores por ti. Não necessito do dinheiro do teu pai. O que possuo nos bancos da capital, é talvez muito mais do que possas avaliar. Não me vanglorio em dizer que sou rico, mesmo porque dinheiro é apenas um bem. Riqueza é viver bem e não se vive bem sem amor.
E, se me casar contigo, ai sim, serei o homem mais afortunado deste mundo. Também não vou dizer que tenho dinheiro para te fazer feliz. Tenho de sobra, mas a felicidade, dinheiro não dá. Pode dar conforto material. Só isto. Felicidade é possuir quem a gente ama. Pois é minha querida, José Francisco dos Santos, hoje formado em assuntos comerciais, independente, podendo viver como deseje, e não sou, ainda, feliz. Ninguém pode ser feliz sozinho. Entendestes? Poderei mostrar a teus pais minhas contas bancárias meus certificados de idoneidade, minha certidão de nascimento e eles verão quem é José Francisco dos Santos. Se eu tivesse um nome ou um sobrenome de estrangeiro, talvez não me pedissem identificação. Seria logo um doutor e teria todas as qualidades de um homem de bem, embora fosse um patife.
No entanto, com esse nome prosaico, José Francisco dos Santos, nome de roceiro de pé de serra, ninguém me considera. A propriedade onde meus pais viveram que hoje é nossa é uma das melhores da região.
Se eu tiver sorte, mais tarde a conhecerás. Mas não necessito dela para viver, entendes. Mas lá estão meus pais e eu também.
Depois de comprada, paga e escriturada, confesso-te que me ajoelhei no local da casinha de meus pais e chorei de emoção. É assim que se mata uma imensa saudade, tudo quanto possuía em São Paulo e o que hoje possuo, pouco ou nada valia em relação aquele cantinho onde abri os olhos para ver as coisas do mundo. Agora só me falta uma coisa, aliás, a mais importante, que é casar-me contigo. Mas há uma condição, casar como estou; sem ninguém saber quem eu sou, por isto, peço-te absoluto sigilo. Somente os teus pais e nos dois saberemos. Pois é. Conta aos teus pais o que ouvistes de mim. Depois me levarás lá ou me esperarás para o pedido, se é que me aceitas. Depois de tudo que acabastes de ouvir.
- E porque não havia de querer. Sabes que te queria ignorando todo o teu passado e o teu presente. Não será, pois a tua fortuna, que ambiciono; mesmo pelo fato muito simples de sempre ter tido o que desejo. Meu pai já me presenteou com uma grande fazenda e possuo bastante gado e produção agrícola, suficientes para ter uma vida confortável com quem me casar.
- Pois é Albertina, a condição é só esta. Para o povo te casaras com um desconhecido. E só no dia seguinte saberão quem sou eu. Assim, assistiremos comentários a respeito de tua doidice de casar com um desconhecido. Irão fazer severas críticas a ti e a tua família que consentiu. Depois, logo no dia imediato, tudo mudará, não porque te amo e nos amamos, mas pelo que eu possuo e pelo que sou. A humanidade é assim. Condena hoje e abençoa amanhã. Verás que dirão com ar de espanto e indignação:
- Como é que Albertina casou-se com um sujeito que nem se sabe quem é. Vindo do oco do mundo e pode ser um grande trapaceiro como tudo indica que é. E o pior é ter tido o consentimento da família. Só um pai que se quer ver livre da filha. Ah! Mundo velho errado!... Escuta bem o que te digo...
Albertina contou aos pais a história de José Francisco.
- Não, não era possível.  Traze o moço aqui. Queremos conhecê-lo de perto.
E dentro de menos de um mês estavam casados. O noivado havia sido imediato.
Os comentários de rua e esquinas eram aterradores:
- Só uma moça desvalida, sem pai e sem mãe. Acabaram-se as tradições de nossa terra. Uma vergonha, uma tristeza. Aonde se vai parar com semelhante despautério. E logo quem, meu Deus. Chega aqui um sujeito misterioso e só porque anda todo enfarpelado e apresentável, aparece uma doidinha e se apaixona a ponto de ir casar com o consentimento dos pais irresponsáveis.
O caldeirão dos comentários malévolos fervia e espumava. Chegaram ao ponto de apelar para a interferência de seu vigário. Talvez assim pudessem evitar o disparate e a quebra das tradições sociais de Ipitinga.
- Ora, o padre da freguesia, que, afinal recusou-se a dar palpites. – São problemas coração. Além disso, o moço até hoje tem tido um comportamento exemplar. Se está por aqui oculto ou não, isso é com a família da noiva. Assim como pode ser um aventureiro, pode ser um moço de bem, Se não se declara quem é; paciência. Depois se saberá.
- Mas, padre...
- Nada de mais padre. Não meto minha mão em cumbuca. Além disto, é um homem católico, não perde missa e nunca se ouviu falar de sua conduta. Vocês também querem se meter em tudo... Ora essa!
- Estão vendo as idéias de seu vigário! Parece até que está conluiado com o tal do José Francisco. Acabaram-se os bons tempos. Cada um que cuide de si. Até o reverendo se sai com uma daquela. Está tudo perdido. Vamos rezar pela salvação das famílias de Ipitinga, senão irá tudo levar a breca.
O casamento realizou-se, o vigário fez uma bela oração. Parecia até que o noivo era a pessoa mais credenciada e a mais ilustre de Ipitinga. - Chegou até a elogiar as qualidades físicas do bonito par. Não passava de um desavergonhado. Pois não era. Um bicho desconhecido dá um golpe de sorte numa das melhores famílias da terra e o padreca teve aos maiores elogios. A moça não era filha dele. Pobre coitada. Tão bonitinha e educada que é. Está visto que o diabo tem muito poder. Enrolou até o vigário.
No dia seguinte a dinamite estouro. José Francisco era filho de Ipitinga; e a maior fortuna da cidade. Diziam até que os bancos não aceitavam mais dinheiro dele. A grande fazenda Santo Amaro, afamada nas redondezas era dele também. Formado em comércio, uma jóia de noivo.
A casa de José Francisco dos Santos passou encher-se de gente. Albertina era a moça de maior sorte da terra e do céu.
- Aquela diabinha tem um sétimo sentido, ou então sabia de tudo e ficou caladinha, a manhosa. E na certa o padre sabia também... Não viram as saídas dele. Tudo tramado. E nós, os imbecis, a meter a língua onde não devia. Terra pequena, de muro baixo.
- A terra, não; vocês, de língua de trapo. Falam de Deus e do diabo. Que vergonha...
Em 5.8.1985
*o conto pertence ao livro “Vidas nordestinas”, no prelo.



ZORILDO

 
ZORILDO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

Zorildo, ponta de rama da família, nascera raquítico e como se já tivesse nascido cansado. Baixinho e franzino, tinha desgosto de ter vindo ao mundo com aquele físico que os outros achavam ridículo. Esperava crescer até os 18 anos, mas não avançou mais do que uns escassos centímetros. Nem dava para medir. E aquela coisa emperrada, minúscula, sentia-se deprimido diante dos colegas. Havia de valer-se de algum recurso pessoal para superar a deficiência física. Fazer um esforço sobre humano para destacar-se nos estudos. Até então não havia se apercebido de que dispunha de uma boa memória e de uma inteligência razoável, talvez superior aos que poderiam supor. Mas será que levariam em conta esses seus dotes intelectuais? De qualquer forma era o de que poderia valer-se. Caía em cima dos livros e dos deveres assim como um animal faminto. Lia, relia, rabiscava papel, tentando expressar seus sentimentos, consultava dicionário, para correção da ortografia. Não participava de  brincadeiras, ausentava-se das festas, onde poderia até parecer uma figura meio ridícula.
Com o tempo, percebeu que era dotado de facilidade de escrever e falar. Adquiria livros especiais sobre literatura e oratória. Devorava tudo quanto lhe caia nas mãos. Mas seria difícil fazer com que acreditassem em sua capacidade de improvisar e descrever. Teria que conseguir oportunidades. Idealizou, então, um jornalzinho semanário para o colégio. Escreveria alguma coisa e colocaria o seu nome logo em cima. Acreditas sim ou não, mas ali estaria o seu nome. Mostraria que tamanho, gordura, poderia ter valor na balança, o que valia era o intelecto.
Saiu o primeiro número. Foi um espanto. O diretor do colégio chamou Zorildo:
- Quem escreveu esta crônica, Zorildo. Teu pai? É feio assinar coisas que os outros escrevem. Não repitas isto. A pessoa deve ser correta desde cedo. Quem começa assim, desacredita-se logo.
- Mas quem contou ao senhor que não fui eu quem escreveu? Ou é apenas suposição do senhor. Será porque sou um rapazinho raquítico, não tenho a estampa dos outros. Posso dar uma comprovação. Vou pegar papel e lápis, e vou escrever aqui na presença do senhor. Não é possível que já traga decorado. Aliás, o senhor pode dizer o assunto, contando que seja literário. Como o senhor vê, minha cabeça é pequena, proporcional ao corpo, mas não é vazia.
Fez o teste, puxou pela massa cinzenta e escreveu uma página até lírica. Correta no escrever e num estilo próprio.
O Padre Teodomiro pediu perdão. - Não sabia que possuías esses dotes. Desculpe-me.
- Não tenho o que desculpar. Todos podem se enganar. Deus me deu essa compensação. Já pensou se além de miudinho como sou, fosse também um burrinho?
E semanalmente o jornalzinho saia com o nome de Zorildo. Cada vez melhor. Noutra coluna, fazia a biografia humanística.
Na semana seguinte o “Pirilampo” estampava a biografia humanística do monsenhor Cardoso, Mas, elogiosa. E no arremate, Zorildo declarava que o Monsenhor havia lhe oferecido um livro de física com o intento de ajudar um estudante raquítico e pobre. Fazia o agradecimento. E o Monsenhor não teve onde espirrar. Comprou o compêndio e presenteou-o.
- Olha Zorildo, continua e não faltará quem te ajude. Sabes dizer as coisas e a gente fica a te querer bem. Mas não penses que vou te dar notas boas só por isto. Estuda, bicho...
Zorildo procurava uma oportunidade para fazer um discurso de improviso, numa solenidade. Queria mostrar quem era. Chegou o dia das mães. Festa no colégio. Convite para comparecimento das mães dos alunos. Ninguém se lembrou de Zorildo. O Reitor designou-o padre Florêncio para fazer o elogio às mães. Era considerado um bom orador.
No final do discurso, foi facultada a palavra. Zorildo meteu os pés. Era a sua vez. A assistência ficou gelada. O que poderia sair daquela coisinha chocha e morena; logo depois de ouvir o padre Florêncio, como era que concediam a palavra a uma muriçoca daquela.
Zorildo subiu à tribuna e fez um arzinho de riso, olhou o ambiente, demorou um pouco como se nada soubesse dizer. Os comentários saiam baixinho, mas ouvia-se o zunzum da assistência. Zorildo começou a falar com uma tranqüilidade de velho orador. A oração saiu como água cristalina, jorrando de uma fonte de cristal. Fazia comparações e derramava poesia sobre as mães que o ouviam embevecidas. Os padres e os seus colegas pararam a respiração. Não, não podia ser Zorildo. Deveria ser o espírito de algum gênio oculto naquela figurinha que parecia mais um galhinho seco das caatingas do Nordeste.
Nem foi breve, nem se alongou demais. E arrematou
– Mães! Minha mãezinha está entre vós. É a mais simples e a mais humilde de todas. Ninguém pode avaliar o sacrifício que tem feito para manter-me neste colégio. Moramos numa casinha de barro, coberta de palha isto não impediu que esta santa criatura fizesse de mim um dos alunos deste colégio. Levanto as mãos magras para o céu e peço à mãe de todas as mães, que abençoe essas santas que muitas vezes sorriem para nós, ocultando uma lágrima para que sempre nos sintamos felizes. Uma mãe é o santuário de todas as nossas esperanças e alegrias. Não há riqueza maior do que a riqueza do coração de uma mãe. Onde está uma mãe está uma benção. Quando está ausente, nos leva no coração. Mãe, minha mãe, a roupa que tu lavas com as mãos já cansadas, para o nosso sustento e a camisa que visto, hei de compensar-te um dia!

04/07/1979

*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

BRASIL, brasileiro






BRASIL, brasileiro‏
Olá,
Não sei se foi uma menina de 14 anos mesmo que escreveu, mas. . . Concordo e gostei muito do texto.
Garota de 14 anos vence concurso em Joinville com a seguinte redação:
“Certa noite, ao entrar em minha sala de aula, vi num mapa-múndi, o nosso Brasil chorar:

O que houve meu Brasil brasileiro? Perguntei-lhe! E ele, espreguiçando-se em seu berço esplêndido, esparramado e verdejante sobre a América do Sul, respondeu chorando, com suas lágrimas amazônicas: Estou sofrendo. Vejam o que estão fazendo comigo... Antes, os meus bosques tinham mais flores e meu seio mais amores. Meu povo era heróico e os seus brados, retumbantes. O sol da liberdade era mais fúlgido e brilhava no céu a todo instante. Onde anda a liberdade, onde estão os braços fortes? Eu era a Pátria amada, idolatrada. Havia paz no futuro e glórias no passado. Nenhum filho meu fugia à luta. Eu era a terra adorada e dos filhos deste solo era a mãe gentil. Eu era gigante pela própria natureza, que hoje devastam e queimam, sem nenhum homem de coragem que às margens plácidas de algum riachinho, tenha a coragem de gritar mais alto para libertar-me desses novos tiranos que ousam roubar o verde louro de minha flâmula. Eu, não suportando as chorosas queixas do Brasil, fui para o jardim. Era noite e pude ver a imagem do Cruzeiro que resplandece no lábaro que o nosso país ostenta estrelado. Pensei... Conseguiremos salvar esse país sem braços fortes? Pensei mais... Quem nos devolverá a grandeza que a Pátria nos traz? Voltei à sala, mas encontrei o mapa silencioso e mudo, como uma criança dormindo em seu berço esplêndido."

domingo, 6 de dezembro de 2015

MEU ANIVERSÁRIO



Perambulando por esse mundo afora, dando carreiras, peitadas e gritos, cheguei em fim aos meus setenta e três anos. Agradecendo por tudo isso; aos meus pais que resgataram meu espírito errante, lá de outras eras; dos familiares que me suportaram por esse tempo todo; meus amigos e colegas e até os que não concordam com as minhas ideias, meu muito obrigado pela lembrança desse cinco de dezembro.
Segue, em tempo, esse verso do Augusto dos Anjos que põem por terra todo esforço feito em vão.

VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho
Destes meus olhos apagou!… Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta…
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que arenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

EPAMINONDAS



EPAMINONDAS*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Quando o sujeito que pede esmolas não é um velhinho, ou deformado ou um doente, é sempre um preguiçoso. Era o caso de Epaminondas. Físico normal, alegre, engraçado. Sem doença nenhuma, mas a profissão oficial era pedir. Pedir roupas, sapatos, comida e cigarros. Até para manter o vício de fumar pedia e censurava quem não lhe dava. Não quer dar, não dê, mas não me venha com sermões. Baixote simpático, de seus quarenta e cinco anos, sem pressa para nada. Nem para pedir quando estava com fome. Tipo curioso, figura popular de quem todos gostavam. Andava sempre limpo e empaletozado. Possuía parentes ricos, mas não os procurava. Procurava para que, se não tolerava trabalho.
            - Por que não vás trabalhar Epaminondas?
            - Quem, eu. Essa não. Estou vivendo muito bem. Tenho boa freguesia. Almoço e jantar certos. Até está sobrando. Algumas pessoas reclamaram porque não apareci.
            - Mas não é isso. Não tens doença, não és aleijado e fica feio andar pedindo, Epaminondas. Não te acanhas disso?
            - De forma nenhuma. Cada um tem a sua maneira de viver. Não obrigo nem boto a faca nos peitos de ninguém. Dá quem quer e tem boa vontade. Ora essa. Vou suar e me preocupar à toa. Era o que faltava. Chega a ser até falta de raciocínio e de inteligência. Olha aqui para minhas mãos. Lisinhas. Nem marca de calos. Ainda não te deu na cachola, pensar nisso. Nunca suei. Tomo banho para tirar a poeira e refrescar o corpo. Para lavar, suar, Deus me livre.
            Epaminondas possuía um sobrinho muito rico e na mesma cidade. Um amigo falou com ele.
- Olha Vieira, da um jeito naquele teu tio. Não fica bem, um homem normal e sadio viver pedindo esmola, quando todos sabem que é teu tio. Pelo menos lhe garanta a comida e a roupa. Assim deixará de pedir.
            Vieira mandou chamá-lo.
Epaminondas entrou na loja do sobrinho meio desconfiado. Deveria ser alguma reprimenda ou pior do que isso. Oferecimento de emprego, mesmo que fosse coisa fácil.
            - Muito bem, meu tio. Estava mesmo querendo vê-lo. Desejo ajudá-lo. Tirá-lo dessa vida humilhante de andar pedindo. Não fica bem, nem para senhor, nem para mim.
No momento Epaminondas ficou meio tonto e aceitou.
            - Volta aqui na próxima semana. Tenho um bom negócio para o senhor.
            E na semana seguinte, Epaminondas apareceu. Havia passado à semana pensando no que seria. Estava quase certo de que não seria boa coisa; pelo menos não seria melhor do que não fazer nada. Disso estava certíssimo. Ninguém iria lhe doar alguma coisa de mão beijada.
            - Bem meu tio. O negócio já está feito. Comprei uma propriedade na zona do Cariri. De porteiras fechadas. Vacas, cabras, ovelhas e outros animais. É chegar e administrar. Casinha boa, depósito, curral, toda cercada e mais um açudeco que raramente seca. Tem chovido e está coberta de pastagens. O açude cheio. Fica a margem da estrada de rodagem. Para sair basta esperar o ônibus. É sua não lhe custará um níquel. Vou deixá-lo lá. Para começar adiantarei dinheiro. Fará suas compras aqui em Campina Grande ou em Soledade. Tem também roça de milho, feijão, melancia e mais um bocado de coisas. Boazinha mesmo.
            Epaminondas conformou-se. Uma vez que era dele, valeria a pena tentar.
O automóvel para na porta de casa.
- Pronto, está aqui, meu tio. Como já lhe disse é sua, um presente que lhe dou. Não fica só. Está aí os vizinhos, uma bodega, uma pensãozinha. E o tráfego é constante.
Epaminondas entusiasmou-se. Jamais havia pensado em ser proprietário, possuir vacas, rebanhos de cabras e ovelhas. Parecia-lhe até um sonho. E lá ficou Epaminondas. No momento o trabalho era prender as vacas, tirar o leite, entregar ao comprador e tratar da roça já em vias de florar. E continuava chovendo. Ano, poucas vezes visto no Cariri. Epaminondas estava proibido de pedir qualquer coisa, inclusive cigarro. Havia ficado com dinheiro para manter-se. Mesmo assim, estava achando difícil quebrar o velho hábito. Os vizinhos gostavam do Epaminondas e o orientavam no manejo da fazendola. Tudo parecia ir muito bem. Mas um belo dia chega Epaminondas à casa comercial do sobrinho, e, meio desconfiado, ficou por ali como quem queria alguma coisa. Talvez o dinheiro houvesse se acabado e como estava proibido de pedir, acanhava-se de falar.
- O que é que há meu tio. Como vai a fazenda?
- Tudo bem, sobrinho. O gado está gordo, as lavouras floradas. Já se vê bonecas de milho, canivetes de feijão e vingas de melancia.
- Então está satisfeito e veio dar um passeozinho.
- Não, nada disso. A coisa lá está me dando muito trabalho. Aqueles bichos todos, a roça de milho e feijão, tiragem de leite, sair para entregar o leite na queijaria, olhe um trabalhão dos diabos. Francamente, Epaminondas está cansado de tanta obrigação. Está provado que não dou para essas coisas complicadas. Estou aqui para entregar tudo. Pode dar seu presente a outro. Muito obrigado. Bem que é certo o ditado: De esmola grande, cego desconfia.
- Mas meu tio. Tudo é seu. Comprei para lhe dar, só com a intenção de melhorar sua vida.
- Muito boa à intenção, mais o certo é que piorou muito. Epaminondas nunca teve obrigação e agora é aquela coisa danada, corre pra aqui corre pra li. Já pariram duas vacas, cinco ovelhas e três cabras. Já pensou no trabalho que estão me dando. Os bichos novos exigem muito cuidados. Não, não dá pra mim. A pior coisa do mundo é fazer aquilo que a gente não gosta. Um inferno. Dois meses e mais um pouco nessa luta de doido.
- Mas o gado é seu, a terra é sua, meu tio.
- Não quero nada, nem preciso.
- É mais agora tem que querer. Quem não quer sou eu.
- Pode tomar conta. A coisa atrapalhou completamente minha vida. Abandonei as famílias que me davam comidas e roupas, os conhecidos todos, os meus cantinhos, para viver metido com vacas e bodes, que só me dão trabalho. Incomoda de mais ter as coisas. Antes nunca tive essas preocupações. Obrigadinho pelo seu presente. De a outro.
Epaminondas saiu tranqüilamente. Voltou à vida de antes, embora com uma variante. Arranjou uma companheira igualzinha a ele. Altura, físico, simpática e simples. Pareciam irmãos gêmeos. A vidoca era a mesma, comer, dormir, passear.
Certo dia Epaminondas pediu a um amigo de seu sobrinho. Que conhecia muito bem a sua história.
- Dou não, seu velhinho preguiçoso. Pensa que não sei que largou a propriedade que lhe foi dada de mão beijada. Vá trabalhar.
- Dê se quiser, mas não me venha com sermão. E sabe de uma coisa. Sou mais feliz do que o senhor. Não faço nada. Não tenho preocupações. Durmo à beira das estradas em qualquer sombra, nos outões das casas, ninguém mexe comigo. O senhor, com a sua riqueza toda, dorme debaixo de sete chaves, assustado e às vezes nem dorme com medo. Não troco minha vida pela sua, tá bom? Pois é assim. Dê se quiser. Pode guardar a sua riqueza e deixe Epaminondas com a sua preguiça. Vamos ver quem vive mais. Nunca tive uma dor de cabeça. Até logo.
O parzinho simpático estava sempre nas ruas centrais da cidade. Não gostava de subúrbios. A convivência com gente de classe era o seu fraco. Epaminondas sempre foi um pedinte modesto. Sua forma de pedir também era simpática e deixava a pessoa à vontade – Pode dar uma ajudazinha a Epaminondas? E sem cara de tristeza. E por isso quase todos davam. Sabia onde comia. Cada casa uma vez durante a semana. Não pesava a ninguém. Agora com a mulherzinha, usava a tática de almoçar duas vezes quando a comida era pouca para os dois.
Não tinha outra coisa para fazer. Era até uma distração. Mas onde morava mesmo Epaminondas? Pagava o aluguer de um quartinho, onde colocara uma cama com um colchão que lhes deram. Praticamente só aparecia por lá à noite, depois de assistir uma sessão de cinema. Disso fazia questão. E pagava? Não. Conseguira entrada grátis e permanente. Isso não atrasava ninguém. Quando podia levava uma galinha gorda ao proprietário do cinema.
- Nunca esteve doente, Epaminondas?
- Doente! Adoecer por que. Não tenho dinheiro, nem fazendas nem casa comercial. Não me preocupo com coisíssima nenhuma. Como é que iria adoecer. Também não tenho raiva de ninguém.  O sujeito sem ambição sempre vive com ótima saúde. Além disso, não bebo. O meu vício é este cigarrinho, uma vez ou outra. Quem faz doença, meu velho, é esse tal de trabalho, e a ganância de ter as coisas, a ambição. Epaminondas, graças a Deus, não tem nada disso. Minha comida é variada. Cada casa um tempero diferente. Nunca me enjoa. Também não me casei antes. Quando queria vou à casa das negras. Como é que iria adoecer. Escovo os dentes e ando limpo. Nem a pasta que uso não sei quanto custa. Tudo de graça. Adoecer por que. Meu sobrinho rico só vive achacado...
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...Veja a vida de cachorro que leva, preocupado com tudo e com todos, desconfia até da própria sombra. Não dorme direito, tem pesadelos, só faz refeições correndo, por que o tempo não dá. Vai pra lá com esse negócio de trabalho. Nunca vi um preguiçoso morrer de nada, só morre de velho e é o que espero que aconteça comigo. Adeus, passe bem e se dane com sua esmola chorada!

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
O final, após a linha pontilhada foi completado, faltava a última página do original.