domingo, 24 de setembro de 2023

 

Dia desse me lembrei do Bar do Relógio, lá da minha segunda “pátria”, Maceió. Que saudades!

Me lembrei porque li uma mensagem sobre a mulher; quando o marido chegava em casa e como devia prestigiar a querida esposa, depois de um dia e uma meia noite, no trabalho e na boemia.

Eu, Aldemaro Calheiros e Alfredinho, como de costume, de vez enquanto, com exceção do sábado e do domingo que era destinado aos fazeres compromissais das namoradas. Praias, cinemas e visitas aos parentes das pretendida para ver se éramos aprovados.

Eu e Alfredinho trabalhávamos, o Aldemaro, naquela época, falava sobre Cavalhadas, das suas vitórias e ensinado os bons manejos. Porém ao término do sol poente e fim do expediente cada qual tomava seu rumo. Eu assistia uma aula na Escola de Comércio de Maceió e apressadamente descia para o bairro do Poço atrás de uma morena bonita e bem feita, filha de um plantador e fornecedor de cana de açúcar, metido a rico e Semianalfabeto Tinha até piano na grande sala da frente. Foi aí que conheci o tal de Waldick Soriano que para deleite de todos cantou e tocou no danado do piano, que eu pensava que era só para enfeitar.

Aldemaro seguia atrás das suas paqueras. Alfredinho ficava por perto da Praça dos Martírios onde tinha um caso com uma das diversas namoradas.

Onze horas! Houvesse o que houvesse, os três periclitantes lisos e metidos a boêmios, largávamos tudo e seguíamos para o bar do relógio.

Local definido não sei por quem; ideal para o fim das noitadas dos notívagos e avulsos, prófugos, estroinas, temulentos e muitos mais eteceteras. Não sei em qual me enquadro.

A cachaça cantava por todos os lados. Violão, poesias, filosofias descritas por intelectuais já calibrados, dor de cotovelo. Era uma torre de babel da peste. Porém todo mundo se entendia. Ninguém saia de tomar umas, mesmo sem dinheiro. Ainda me lembro de um desses intelectuais que trazia o tira gosto de cenoura dentro do bolso do paletó.

O bar do relógio ficava na descida para a praia da Avenida, de lá se sentia o cheiro bom das águas espumantes do oceano atlântico como também erámos obrigado a ouvir a rádio Gazeta de Alagoas que por sinal era que determinava a hora do fechamento. Nos dozes badalares, o locutor danava Édith Piaf cantando Mea Culpa. Escutávamos empolgados e quando findava essa inesquecível música, o bicho do apresentador dizia:

- Vamos encerar nossa programação ao final dessa música, porém quando chegarem em casa dê um beijo no cachorro e um chute na mulher.

 Pronto estava encerrado a fase daquele saudoso encontro. Então fazíamos as contas para ver se dava para comer alguma coisa com mais sustança a caminho dos cabarés no velho Jaraguá. Era uma verdadeira festa aquela rua. Cheia de gente, boates em todos recatos; nas calçadas vendedores de tira-gosto, pipocas, e toda sorte de troço que a noite exigia; raparigas de segunda classe, bêbados e o diabo a quatro. As luzes cintilavam como chama para a orgia nas boates: Alhambra, Night and Day, Tabariz, São Jorge, as que me lembro. Marcávamos presença conversamos miolo de pote e subíamos em direção ao farol onde nos recolhíamos cansados, mas satisfeitos.

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

 

Hoje, 20 de setembro de 2023, meu pai estaria completando 120 anos, se não tivesse partido para outros sertões, a vinte anos atrás.

Para não esquecer que ainda continua vivinho da silva, segue abaixo mais um pequeno romance com cento cinquenta páginas, que será publicado logo mais.

 

PARAÍBA NOSSA TERRA NOSSA GENTE

 

João Henriques da Silva

 (In Memoriam – 20/09/1901 - 16/04/2003)

Escrito em 1986

 

Januário, estudante de direito, havia saído dos sertões das Espinharas e sempre pensando em voltar para sua terra, onde lhe havia enterrado o umbigo e desejava também que enterrassem os ossos. Era só terminar o curso e já estaria com o pé no caminho. Não conseguia adaptar-se ao ambiente sofisticado das cidades do litoral. E não era só. O clima mais úmido e aquele calor abafado das grandes cidades davam-lhe certo mal-estar. O bom mesmo era encher os pulmões com os ares do sertão, conviver com a natureza virgem, ter diante de si vastos horizontes. Tinha saudades do badalar dos chocalhos, das acauãs, dos gaviões peneira pendurados no espaço, e das jandaias e graúnas a cantarem nas copas dos carnaubais. Nunca mais tinha visto o sol nascer e nem se pôr na fímbria do horizonte. As ruas estreitas e compridas, o casario escondendo a visão e o mundo, aquela gente desconhecida indo e vindo apressada com quem está fugindo de alguma coisa, causava-lhe medo e desalento. E o pior de tudo é que ninguém compreendia ou aceitava o seu apego ao sertão. Aquilo era coisa de matuto que não se encontrava com a civilização. E daí advinha às discussões quase sistemáticas com os colegas que, afinal de contas, só conheciam o sertão através dos jornais que noticiavam os horrores das secas e o cangaço, dos antigos sertões sem rodovias, sem açudes, arrebentados pelos longos verões, ignoravam tudo.

Januário ouvia, já sem comentar, histórias que faziam do sertão, uma terra arrasada pelo próprio homem, que devastou as primitivas matas e afugentou as chuvas. Terra de gente indolente e atrasada. Por todos os seus males, o homem era o responsável. Não podia entender aquela facilidade de afirmações, originadas de quem jamais tivera a preocupação de pesquisar as causas do subdesenvolvimento da região.

 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

 

Pedro Careca

 

Existia na cidade de Sumidouro, um pouco longe, um pequeno bodegueiro que nunca ia para frente nos seus negócios. Porém nunca desistia. Dizia que era mau olhado ou algum trabalho feito para acabar com seu negócio. Era desses cabras que acreditava em tudo que lhe dissesse. Só vivia na picuinha.

Bodega de três portas estreitas como comumente são essas casas do interior ou do tempo antigo. Tempos passados, tinha sido uma farmácia homeopática do seu Florentino, homem metido a todos os afazeres que lembrasse doença ou saúde.  Havia herdado o ponto de um tio que o criara, num tempo de seca medonha, quase abandonado pelos pais que não possuía meios para criar mais um bruguelo.

Na frente da bodega, entre uma porta e outra, nunca faltava três potes com arruda, pinhão roxo e espada de São Jorge. Dentro da desarrumada e meio suja mercearia, não faltava uma vela de sete dias, acesa tendo como castiçal uma lata de tinta toda borrada pelo escorrimento da cera, formando uma verdadeira estalactite colorida; porque para cada santo que oferecia tinha uma cor diferente; a vela ficava trepada numa prateleira numa certa altura e no canto esquerdo para evitar que os ventos ou os olhares estanhos a apagasse.

Lá para os fundos ficava sua morada, oficina e depósito das mercadorias que nunca vendia. No quintal um pé de tamarindo, bananeiras, latas cheias de terra com mudas de ervas para chá e mau olhado. O cachorro Pereba, sempre zangado e impedido de ir para frente, latia com todos que entrasse no comércio do seu patrão.

Pedro Careca, era um homem de altura média dos nordestinos, alvo, barriga acentuada que impedia de afivelar o cinturão. Camisa aberta ao peito, apenas abotoado pelo último botão, calça arregaçada como se tivesse passado nalgum riacho. Nos pés um par de alpercatas de sola e na cabeça, para encobrir a carecona, um tipo de boné jogado à toa sobre os restos de cabelos grisalhos.

Vendia de tudo, ou pelo menos tentava. E nas horas vagas ou sem freguês, coisa que acontecia sempre, fabricava bugigangas. Do abano até candeeiro de flandres aproveitado de latas de óleo. De madeira, fazia carrinhos, mamulengos, porta toalhas. De barro, fabricava um bocado de utensílios para cozinha e até cachimbo.

Bastava alguém chegar perguntando se tinha tal objeto para vender ele dava logo uma resposta plausível. Tá para chegar semana que vem. Metia a ideia na cabeça e ia fabricar a tal peça. A pessoa nunca mais voltava para procurar o objeto e o estoque aumentava cada vez mais.

Algum dia aparece um filho da égua que goste disso, - dizia sempre que se lembrava da encomenda esquecida.

A bodega se enchia de trastes inúteis; se esvaziava de freguês e de dinheiro.

A cidade se espichara e a pobre bodega foi ficando para trás. Ontem era uma das ruas principais, hoje era arrabalde. Por isso na vendia quase nada. Bairro das pessoas mais longe do dinheiro.

- Bom dia seu Pedro, como vão as coisas?

- Não sei por que pergunta, seu Lourival – este tinha sido realmente criado pela vó *. Não tá vendo a grande freguesia, não?

- Ave maria, não precisa me morder não, homem!

- Todo dia me vem com a mesmice besteira de saber da minha vida e do meu negócio, como quisesse ajudar ou fazer algum milagre. 

- Não homem de Deus, não é que essa noite tive um sonho com o senhor e sua fábrica de peças. Coisa engraçada, via direitinho tudo o que vou lhe contar. O senhor contratava um magote de meninos e mandava de um em um perguntar pelas outras mercearias da cidade, se tinha, - vamos supor: cachimbo de barro; já que o senhor tem uma grade quantidade. No outro dia mandava outro menino fazer as mesmas perguntas nas mesmas casas e as mesmas pessoas, aconselhava que desse preferência ao dono ou gerente. Depois de uma semana o senhor arranjava um cabra mais vistoso e mandava oferecer a cuja dita mercadoria. No sonho via que vendia todos os seus inventos e as coisas, na sua vida, ficavam uma maravilha!

- Ou homem besta, vá pra lá com esse teu sonho de ilusão.

- Pois tá bom se não acredita vou desparecer noutro canto onde sou mais aceitável.

Essa noite Pedro Careca não dormiu, só pensando no sonho do Lourival. Será que dava certo, ou ia só se lascar de raiva e ainda por cima ter que pagar a molecada para mentir. Passou uma semana e a ideia continuava a perseguir para onde andasse ou pensasse.

Foi até a Rua do Emboca, que ficava por trás do seu prédio, e chamou seis meninos entre oito a dez anos para uma conversa na sua casa comercial logo depois do almoço.

- Bem, hoje é segunda feira quero que vocês todos os dias dessa semana saiam à rua procurando todas as mercearias ou outros tipos de comércios que vendam as coisas parecidas com as da minha loja.  Não saiam juntos, tem de ser separados um dos outros para ninguém desconfiar do que vou pedir para fazer. Hoje mesmo vão procurar nesses pontos de venda se tem esses artefatos que produzo. Na volta darei a cada qual dois reais.

Pedrinho, diga que foi seu pai, tio ou avô que mandou saber o preço de cachimbo de barro.

Zezinho, vai perguntar se tem abano de palha feita do milho para sua mãe.

Abel, pergunta quanto custa cofre de barro.

Chiquinho, vai se interessar por pegador de brasa.

Adelmo, saia a procura de fogareiro de lata de querosene.

Júca, que é o mais velho, diz que quer aprender tocar berimbau.

Podem passar nas mesmas lojas não tem importância. Todos os dias façam a mesma coisa, a mesma conversa, porém, vão trocando os tipos de objetos entre vocês para os donos das bodegas não desconfiarem.

Duas semanas desse rojão com a meninada, achou que já era tempo de mandar um vendedor oferecer seus produtos encalhados.

Contratou Dioclecio, que já tinha trabalhado na padaria de seu Germano e vendido pão e bolacha pelas ruas na bicicleta de três rodas. Montou um carro feito de banda de geladeira, com todas as bugigangas do seu estoque, danou uma buzina de borracha cromada que tinha tirado da velha bicicleta e mandou o sujeito ganhar o mundo oferecendo nas mesmas lojas que os meninos já tinham passado.

Seis horas da noite, chega de volta o Dioclecio na porta da Casa São Judas número 13, onde encontra seu Pedro sentado num tamborete pé de priquito, ansiosamente a espera do seu vendedor.

Quando viu a carroça meio vazia, perguntou:

- Foi roubado?

- Não senhor, vendi quase tudo. Vamos fazer as contas.

Nunca mais deixou de inventar seus piquaios e nem parou de usar o método do sonho de seu Lourival. Vivia arrodeados dos meninos, seus secretários e o seu vendedor preferido. Nunca mais faltou dinheiro para todos que trabalhavam no serviço de divulgação e venda do Empório do Careca.

 

25/08/23

Carijalva

 

 

*(Quando pulou da barriga - escritor pobre sai da barriga e não da cabeça as ideias -, o nome de Lourival, me lembrei dessa música cantado por Linda Batista no ano de 1945 de autoria de Marabá.)

 

O Lourival sempre foi abobalhado.

Dele até eu tenho dó.

Sabe por que

Ele é assim, minha gente?

Porque foi criado com vó. (bis)

 

O Lourival sempre foi assim,

Cheio de dengo, cheio de mágoa.

Toma café e depois de algum tempo

Ele pergunta:

"Vovó, eu posso beber água?"

 

Pode, pode, pode, Lourival!

Beber água não faz mal! (bis)

 

 

 

sábado, 24 de junho de 2023

3º CADERNO DO AGRICULTOR

 

3° - CADERNO DO AGRICULTOR

CAÇAS E CAÇADAS

Agroº. João Henriques

 

            Creio que todos estão percebendo o desaparecimento mais ou menos rápido de nossas espécies de animais silvestres. Aliás, não poderia ser de outra formar se não respeitamos as determinações do Estatuto da Caça e Pesca, que fixa a época das caçadas. E o objetivo da lei é justamente impedir que se matem os animais na fase de reprodução, evitando, pelo menos assim, que as espécies desapareçam, como já aconteceu com algumas em certas zonas. As emas, os veados, as perdizes e codornas, as pacas, os urús, as seriemas, os jacus, os tatus verdadeiros e outros animais úteis, já se tornaram raridades em muitos lugares ou mesmo não mais existem. E nas zonas onde ainda são encontrados, a perseguição é constante, tendendo também a exterminá-los. Torna-se, por isso urgente, inadiável, por em execução o Código de Caça e Pesca, como medida de proteção à nossa fauna silvestre. E não se justifica de forma alguma essa exploração desregrada de nossos mais belos recursos naturais. E não é razoável e nem justo que depredemos as riquezas naturais e deixemos como herança aos nossos descendentes, uma natureza espoliada, dilapidada, arrasada.

Há os que caçam para se alimentar e aqueles que o fazem por simples esporte, como uma diversão, para mostrar a perícia da pontaria. E por esses esportes detestáveis, pagam os inocentes animais, que vivem nas selvas e nos campos, sem nos dar preocupação e, ao contrário, muitos deles de grande utilidade à agricultura.

O hábito de caçar nos veio dos tempos primitivos quando a agricultura ainda não existia ou era rudimentar. O homem vivia da caça, da pesca e de outros recursos naturais, então abundantíssimos. Os processos de caça, porém, eram também rudimentares e resumiam-se a armadilhas e as setas dos índios, impotentes para a exterminação das espécies. A espingarda, porém, da qual há quem possua coleção, é rápida e mortífera, indo buscar ao longe, ora correndo, ora no voo.

Data: Num pretérito, muito passado.

 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

 

2° - CADERNO DO AGRICULTOR

AGRONÔMO JOÃO HENRIQUES

PÁSSAROS E INSETOS

 

Segundo a opinião dos naturalistas, o mundo vegetal seria destruído pelos insetos se não fosse continuamente defendido pelos pássaros e outros pequenos animais. Na verdade, a imensa proliferação dos insetos, cobriria a terra e encheria o espaço, se não fossem eles intensamente perseguidos e destruídos pelos seus inimigos naturais. Para se ter uma ideia, basta lembrar que um casal, apenas, do caruncho do milho, arroz e trigo, conhecido cientificamente por sitophilus crysae, em 15 gerações, produzira cerca de 1.000.000 de novos insetos. Sabendo-se que um saco de milho contém aproximadamente, 200.000 grãos, dentro de 5 meses, destruiriam eles, pelos menos 5 sacos de milho, considerando-se, unicamente, uma semente para cada caruncho... E observando a rapidez com que as lagartas destroem os arrozais, os milharais e aos algodoais e as culturas de maracujá, quando, quase sempre, o lavrador nem sequer se apercebe que as borboletas e mariposas estão fazendo solertemente, a sua postura. Aparentemente, alguns insetozinhos, apenas, esvoaçando entre as culturas, não oferece perigo. E é por isso que a crendice popular supões que as lagartas se originam espontaneamente, que saem da terra ou de qualquer lugar misterioso. Mas é que cada borboleta, cada mariposa deposita seguidamente, nas folhas das plantas, dezenas ou centenas de ovos que, dias depois, eclodem, dando origem a milhares e milhões de larvas.

Um só formigueiro possui até 2.000.000 de formigas, número igual à população de uma grande cidade.

Os agricultores procuram combatê-las, protegendo, assim, as suas culturas. Mas, ai de nós, se não fossem os pássaros e outros pequenos animais que as perseguem ininterruptamente, caçando-as como alimento. Há pássaros que destroem uma quantidade impressionante de insetos adultos e larvas e muitas espécies criam os seus filhotes quase exclusivamente com larvas de insetos. Os tatus, os tamanduás, os bem-te-vis, as galinhas, as andorinhas e os sapos, por exemplo, são grandes amigos do lavrador. O número desses protetores naturais da agricultura, é imenso e não caberia aqui cita-los. As galinhas, todos sabem, não poupam as formigas e muitas larvas do solo.

Como se vê, o agricultor deve, por todos os meios ao seu alcance, proteger a fauna, isto é, os pássaros e outros pequenos animais, pois, assim estará protegendo a flora e as suas lavouras, em suma, a suas economias e o bem estar da humanidade.

Eles nos ajudam a manter o equilíbrio biológico da natureza.

 

Data: Num pretérito, muito passado.

domingo, 18 de junho de 2023

1º - CADERNO DO AGRICULTOR

 

PRIMEIRO - CADERNO DO AGRICULTOR

Agrº. João Henriques

 

Lá vem o Velho chico descendo dos contrafortes da serra da Canastra, numa longa e constante caminhada, cortando o planalto-central, varando as caatingas secas, despenhando-se em Paulo Afonso, para trazer-nos as suas águas límpidas ou barrentas e férteis. E o Velho Chico, no salto da cachoeira, nos manda também a energia, no impulso das suas águas, naqueles 80 metros de queda. E depois de transpor a garganta das corredeiras, espraia-se e corre manso entre os barrancos que se distancia à medida que se aproxima do litoral. E mais largo e mais tranquilo, refluindo nos remansos, vem, afinal, derivando as suas águas para as várgeas e lagoas, as terras dos farturosos arrozais.

Mas o Velho Chico de nossa intimidade, é ainda um rio inconformado, inconformado porque não cumpriu a sua destinação. Não nasceu e avolumou-se para ser tragado pelo mar.

O São Francisco, Deus o criou para a integração política, social e econômica nacional. Abriu-lhe caminho pelos sertões, para que os brasileiros pudessem conquistar as imensas áreas de sua dilatada bacia fluvial e aí florescesse uma civilização dinâmica, fundamentada no sulco dos arados, na hidroeletricidade e, sobretudo, na irrigação.

A energia hidrelétrica, já percorre sertões, caatingas e litorais, iluminando cidades, impulsionando industrias, criando riquezas, dinamizando atividades. Mas a utilização de suas águas no amanho do solo, na implantação de agricultura intensiva, está ainda na sua fase primaria. O barranqueiro não se apercebeu ainda do imenso potencial que são as águas do Velho Chico, fator de desenvolvimento das atividades rurais. E no dia em que com a energia hidrelétrica do próprio rio, as águas subirem as barrancas e as terras não sentirem mais a sede e os campos se conservarem sempre verdes e exuberantes, esta região privilegiada, tornar-se-á o maior celeiro deste nordeste. E o lavrador e o criador verão que as águas do São Francisco, são, na verdade, um manancial de ouro líquido que ainda está esperando pelas bateias do lavrador.

No dia em que cada agricultor ribeirinho tiver a sua motobomba molhando as terras que cultiva, sem se preocupar que venham ou não as chuvas, então o rio São Francisco, o nosso Velho Chico, sentirá cumprida a sua predestinada missão – IRRIGAR.

Quando o Velho Chico transbordar, inundando as terras dos combros, e aí deixando a sua “colha” que enriquece o solo e aumenta as colheitas, ele nos dá uma boa lição, fazendo lembrar e sugerindo o seu aproveitamento na irrigação dessas extensas áreas ribeirinhas, de produção intermitente e escassa.

O rio sobe, o rio desce, estala o verão, as terras se ressecam, as lavouras definham, as pastagens se empobrecem e as águas vão passando como se delas não precisássemos, como se não fossem a maior riqueza do lavrador ribeirinho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

DIVINO SOL

 

DIVINO SOL

AUGUSTO Carvalho Rodrigues DOS ANJOS

Extraído do livro Antologia dos Imortais

Francisco Candido Xavier e Waldo Vieira

Noite. Retorne À Terra. Entre os aflitos

Que a luta impele aos últimos degraus,

Sinto a perturbação que envolve o caos

E a exalação de todos os detritos.

 

Entre o mundo e meu pranto, a sós, vagueio,

Na torva indagação que me constringe.

A vida é aterradora e imensa esfinge

No horror que me tortura de permeio.

 

Ao coro estranho de sinistros ventos,

Ergue-se a angústia num milhão de vozes...

Do choro mudo a imprecações ferozes,

Há turbilhões de trágicos lamentos.

 

Paixões embatem com medonha fúria.

O fel da provação verte sem peias...

O homem é como alguém que abrindo as veias

Tenta fugir debalde à carne espúria.

 

Em toda a parte, a dor comprime o cerco,

E os que dormem, quais míseros cativos,

Assemelham-se a tristes morto-vivos,

Agonizando em túmulos de esterco.

 

Acorrentada entre os horrendos muros

Dos seus próprios grilhões imanifestos,

A Humanidade escuta os vãos protestos

Dos sonhos que morreram nascituros...

 

Mas, dissipando a sombra por rompê-la,

Na gleba que de lodo se engalana,

Como sinal de Deus na furna humana,

Surge sublime e resplendente estrela.

 

Há nova luz de amor que tudo invade.

E percebo, no pântano entrevisto,

Que a redenção virá, brilhando em Cristo,

Ante o Divino Sol da caridade.

sábado, 20 de maio de 2023

 


A   V A S S O U R A D A

 

É grande, a necessidade de uma varredura neste país.

O Brasil está contaminado de tubarões, de homens sujos, infetados e corrompidos.

O povo está viciado em furtar.

Continua em todos os Estados, a gatunagem.

 São os próprios empregados que tem as suas repartições viciadas, sujas e corruptas.

 Querem enriquecer clandestinamente.

 O furto é grande.

Os engravatados são os mais larápios, os próprios ratoneiros.

Vai haver dificuldade para colocar o País, nos seus eixos.

No entanto colocado, vamos nos aguardar o que poderá aparecer de melhor.

O osso, então, ficará duro para se roer.

 

24/2/61                                          Raulino Maracajá

 

Meu avô era um apaixonado pelas ideias do candidato Jânio Quadros. Porém, depois de eleito, “acho” que se decepcionou. Até eu nessa época morando em alagoas, postava na camisa por sobre o peito com muito orgulho um broche de uma vassoura dourada. Sempre foi um sonho achar um candidato civil que tivesse força para apagar de vez a corrupção impregnada no mais profundo recando da alma da gente brasileira. É uma pena!

"O governo de Jânio Quadros durou apenas sete meses, sendo ele, por isso, o presidente da república que ficou menos tempo no poder. Apesar da curta duração, seu governo foi marcado por medidas esdrúxulas, como as proibições de rinhas de galo e do biquíni. Em um mundo bipolar como o da Guerra Fria, a política externa independente foi o principal destaque desse governo.

Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciava à presidência alegando “forças terríveis” contra o seu governo. Esse ato inesperado provocou uma crise militar que, por muito pouco, não terminou em guerra civil."

Campina Grande, 20 de maio de 2023

Grijalva Maracajá Henriques

 

 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

ILUSÕES DA VIDA

 



ILUSÕES DA VIDA

FRANCISCO OTAVIANO

Quem passou pela vida em branca nuvem,

E em plácido repouso adormeceu;

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu;

Foi espectro de homem, não foi homem,

Só passou pela vida, não viveu.

 

Francisco Otaviano (Francisco Otaviano de Almeida Rosa), advogado, jornalista, político, diplomata e poeta, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 26 de junho de 1826, e faleceu na mesma cidade em 28 de junho de 1889. É o patrono da cadeira n. 13, por escolha do fundador Visconde de Taunay.

Era filho do Dr. Otaviano Maria da Rosa, médico, e de Joana Maria da Rosa. Fez os primeiros estudos no colégio do professor Manuel Maria Cabral, e no decorrer da vida escolar dedicou-se principalmente às línguas, à História, à Geografia e à Filosofia. Matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1841, na qual se bacharelou em 1845. Regressou ao Rio, onde principiou a vida profissional na advocacia e no jornalismo, nos jornais Sentinela da Monarquia, Gazeta Oficial do Império do Brasil (1846-48), da qual se tornou diretor em 1847, Jornal do Comércio (1851-54) e Correio Mercantil. Foi eleito secretário do Instituto da Ordem dos Advogados, cargo que exerceu por nove anos; deputado geral (1852) e senador (1867). Como jornalista, empenhou-se com entusiasmo nas campanhas do Partido Liberal e tomou parte preponderante na elaboração da Lei do Ventre Livre, em 1871. Já participara da elaboração do Tratado da Tríplice Aliança, em 1865, quando foi convidado pelo Marquês de Olinda para ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros, mas não a aceitou, ficando em seu lugar Saraiva. Por ocasião da Guerra do Paraguai, foi enviado ao Uruguai e à Argentina, substituindo o Conselheiro Paranhos na Missão do Rio da Prata. A ele coube negociar e assinar, em Buenos Aires, em 1º de maio de 1865, o tratado de aliança ofensiva e defensiva entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai, no combate comum a Solano Lopez, do Paraguai. Recebeu o título do Conselho do Imperador e do Conselho Diretor da Instrução Pública.

Poeta desde menino, não se dedicou suficientemente à literatura. Ele mesmo exprimiu com frequência a tristeza de haver sido arrebatado à poesia pela política, por ele chamada de “Messalina impura”, num epíteto famoso. Apesar da carreira fácil, respeitável e brilhante, cultivou sempre a nostalgia das letras. Sua obra poética representa uma espécie de inspiração do homem médio, mas não banal, o que lhe dá, do ponto de vista psicológico, uma comunicabilidade aumentada pela transparência do verso, leve e corredio. Em torno do eixo central de sua personalidade literária se organizam as tendências comuns do tempo, num verso quase sempre harmonioso e bem cuidado.

Nas suas traduções de Horácio, Catulo, Byron, Shakespeare, Shelley, Victor Hugo, Goethe, revela-se também poeta excelente. Ficou para sempre inscrito entre os nossos poetas da fase romântica, como autor de duas ou três peças antológicas, mesmo que não tenha exercido a literatura com paixão, e o patriota que foi dá-lhe lugar entre os grandes vultos brasileiros do século XIX.

https://www.academia.org.br/academicos/francisco-otaviano/biografia

 

 

 

 

 

domingo, 2 de abril de 2023

BUCHO D'ÁGUA

BUCHO D’ÁGUA

 

 

Estava certo dia assistindo aula de zoologia, na Universidade Federal da Paraíba; curso de Zootecnia em Areia, nesse tempo de meu Deus, de dois mil e vinte e três, aula sobre protozoários; quando a professora danou na tela um slide, com uma cabra de cabelo liso, mostrando um sorriso de tristeza melancólica, uma pele de cor de jumento quando foge, nem branco nem amarelo, nem negro e nem branco. Cor de nevoeiro do nosso cariri no tempo de seca, quando o tempo se mete a enxerido e que à boca da noite, sai aquele fumaceiro que a gente não sabe donde vem.  Tinha uns moleques que diziam que era a fumaça dos cigarros fumados por comadre Fulozinha ou o Saci Pererê. A barriga do cabra parecia que por dentro tinha uma lamparina acessa, daquelas feitas com lata de óleo Dom Dom; alimentada com gasóleo que produz uma luz amarelada.

A fessora disse que aquele cabra, estava infectado pelo protozoário Schistosoma mansoni – Esquistossomose ou a tal da barriga d’água.

Pedi a uma colega que viaja de carona para Campina Grande, que me lembrasse daquela foto.

 Pois de repente minha velha memória, sorriu! Votei ao ano de mil novecentos e setenta e um. Em Penedo Alagoas, sítio Cerquinha das Laranjeiras, terra pequena e desarrumada talvez umas cinco tarefas que meu pai havia comprado. Casa muito singela, que servia de moradia ao seu Zé Vicente e família; uma velha casa de farinha ainda funcionando que os vizinhos a usavam pagando uma Conga pela farinha produzida. Muitas laranjeiras semi-sufocadas pelos enxertos de passarinhos e muitos galhos mortos. Lá pra baixo onde o rio Perucaba encerrava os limites do sítio e os alagados, tínhamos um pequeno porto e uma canoa que ainda fora incluída na compra da terra. Este rio banha os municípios de Girau de Ponciano, Arapiraca, Lagoa da Canoa, Feira Grande, São Sebastião, Igreja Nova, beirava nosso sítio e se derramava no Rio são Francisco, em Penedo. Os alagados nossos vizinhos se estendiam por muitos hectares, donde os ribeirinhos tiravam o de comer e as vezes quando sobrava vendiam nas feiras. Camarão, carne de jacaré (a macaxeira – parte da calda), pequenos peixes, e o escorregadio Mussum. Já que estamos falando também em zoologia, vou apresentar o camarada que provocou está narrativa:

 

Mussum (Synbranchus marmoratus)

 

O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada sob a cabeça. O peixe de água doce chamado Mussum é conhecido popularmente como Enguia-do-Pântano e Cobra-d’água.

Nome científico Synbranchus marmoratus.

Distribuição geográfica. Sua espécie é distribuída em todo o Brasil.

Habitat. O Mussum é um peixe que habita lagos, córregos, brejos, pântanos e rios, podendo sobreviver a longos períodos enterrado na lama.

Alimentação. É um peixe carnívoro, com hábitos noturnos, alimentando-se de presas vivas, principalmente crustáceos, moluscos e pequenos peixes, mas também insetos, minhocas e materiais vegetais.

Reprodução. O peixe Mussum, durante o período de reprodução, põe seus ovos em tocas, que servem de ninhos. Cada ninho pode conter até 30 ovos e larvas em diferentes estágios de crescimento, indícios de que este peixe produz múltiplas ninhadas, ao longo da estação reprodutiva. É o macho quem protege a prole.

Características. O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada sob a cabeça. Sua forma corporal lembra uma cobra. Seus olhos são pequenos situados bem à frente da cabeça. Sua coloração vai do cinza-escuro ao castanho, com manchinhas mais escuras esparsas pela cabeça e pelo corpo. Não apresenta nadadeiras peitorais nem pélvicas, e as nadadeiras dorsal e anal continuam com a caudal. Sua respiração também é aérea, ou seja, ele pode respirar fora da água, graças à faringe altamente vascularizada, que funciona como um pulmão. Pode atingir mais de 1 m de comprimento. (O danado também se alimenta com os pequenos caramujos já contaminados pela silenciosa e invisível pestinha que de mão em mão passava de um hospedeiro a outro indo destruir seu finalmente agasalhador.)

 

Então, entretanto, contudo e, todavia, vamos continuar a narrativa.

Todas as sextas feiras eu ia pagar os auxiliares do sítio Cerquinha e como sempre fui um bom boêmio, levava uma garrafa de Serra Negra, aguardente na moda nos anos que esses fatos se deram. Partia de Penedo em direção à vontade de tomar uma com camarão e ouvir as palestras de seu Zé Vicente, nordestino, camarada inteligente e um verdadeiro contador de presepadas matutas. Íamos até tantas horas nesses embalos fulgurais. Conversa vai e conversa vem, sempre se falava em bons tira-gostos. Por coincidência numa dessa feita, passava por nossa porteira, vizinhos que sempre entravam e nos cumprimentava, participando dos causos narrados no momento.

Mané buchudo, convidado a entrar e tomar uma das boas não se fez de rogado. Nas nossas conversas jogadas fora, sobre principalmente tira-gosto, nos convida para ir comer uma “Mussunzada” na sua casa na próxima sexta-feira.

Dito e feito na data marcada estava meu irmão Robério, intelectual até as profundas da medula e eu analfabeto que fazia raiva, fazendo o pagamento da folha do pessoal e já iniciando o ritual da pinga com camarão; quando seu Zé Vicente nos alertou do compromisso com a mussunzada, e, aí acompanhado por Geraldo (gago que só uma peste) filho de seu Zé Vicente, começamos uma descida numa escuridão que a bíblia nos diz: “Na escuridão, nós não sabemos onde estamos” em direção ao começo das águas úmidas. Caminho escuro, esburacado e apertado entre duas barreiras feitas pelas correntes d’águas, que nos invernos cada vez mais se aprofundavam.

- Boa noite seu Manoel. Chegamos! Fizemos essa tentativa três vezes, até que a meia porta se abriu e vimos sair de dentro uma figura que parecia mais um quadro do Rembrandt aqueles famosos auto-retratos. A gente de fora no escuro, e Mané Buchudo de dentro da casa, iluminado pelas lamparinas de luz amareladas, embaças e meladas de fumaça.

- Entrem, a casa e de vosmecês! Desculpem não atender logo, eu e Mariquinha estávamos entretidos ouvindo a novela no radinho. A gente estava ansioso para saber quem tinha matado a escrava Isaura.

Entramos! E vi logo de cara na parede dependurado várias estampas de santos. Conheci logo Santa Barbara, Jesus, Maria e José. São João e São Pedro mais abaixo. Ao lado esquerdo uma mesinha com várias imagens. Padre Cícero pintado de branco, porém já escurecido pela fuligem da fumaça das lamparinas. Outras imagens que no momento não lembro. Ao lado direito, várias fotos de familiares. Um calendário marcando 1971 de uma casa comercial. Ao chão num canto um pote pequeno danificado com uma touceira de comigo ninguém pode. É indicada contra o mau-olhado e para afastar a inveja. Também protege o lar de energias negativas e de pessoas mal-intencionadas. Só queria saber quem iria ter olho grande numa situação de pobreza medonha como aquela.

Passamos para o outro cômodo anexo ao primeiro. Uma mesa, quatro tamboretes, um pote com um caneco de alumínio dependurado. Um fogão a lenha, aceso e panelas debruçadas sobre o cujo dito. A camarinha ficava ao lado esquerdo separado por um cortinado de tecido cor e marca indefinidas. Ao lado do fogãozinho corajoso e teimoso quase se desmanchado, uma porta que dava saída para o terreiro. Não havia janelas.

Foi o que me lembro e que a maldita da Covid teve pena.

Sentamos à mesa. Os três visitantes e o dono da casa, a patroa continuava na peleja das panelas. Coloquei em cima da mesa a garrafa de cana e uns limões, esperando o dito tira-gosto. Sem muitas delongas, dona Mariquinha danou uma panela de barro recheada de mussum, cozinhado ao molho de água do velho Perucaba, temperado com Schistosoma, sal e não sei o que mais diabo a quatro. Esparramou em cima da mesa pratos de ágata meios pinicados pelo uso. Acho que era a melhor louça de casa, só para os visitantes. Vários copos de vidro e alumio e uma frasco usado de Bromil à guisa de pimenteira.

Começamos a peleja. Caras feias na hora de tirar o gosto da maldita cana com o desconhecido peixe. Mas, mesmo assim fomos emburacando a cana e o tal petisco. Acabou a pinga e o escorregadio, como chamavam os índios de antigamente.

Conversa vai, conversa vem, saiu o assunto de doenças.

- Estão vendo meu estado? Morto, quase morto. – disse seu Mané. Não tenho mais força para nada. A danada da maleita chega devagarinho à boca da noite e deixa o cabra destinhorado. Além de queda coice – mostrando a barriga enorme – e mais essa peste de bucho cheio d’água que parece que carrego um bruguelo de bode. Aqui em casa só se fala em mazela. Fui ao doutor e o homem não resolve nada, só fica passando cachete do tamanho de uma bolacha que pra descer tenho que tomar meia quartinha d’água. Não sei mais o que vou desarnar para resolver minha vida.

Nisso, meu irmão Robério disse em cima da bucha. Rindo como sempre fazia suas presepadas para animar a turma.

- Oxente e Grijalva já não é quase um médico. Vai lhe receitar e dizer com certeza a causa desse incômodo. Veio mesmo a calhar a gente vir comer o mussum. Só assim o senhor vai ficar bonzinho.

O que a cachaça não faz nas pessoas. Eu apenas tinha feito o vestibular para medicina na Universidade Federal de Pernambuco e estava aguardando vaga. Tínhamos ficado quinze estudantes de fora esperando um lugar ao sol ou como era chamado na época, de excedente. A classe só permitia trinta vagas. No final, após muita luta não conseguimos o intento.

Mas como se diz que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, não contei conversa e fui logo mandando o buchudo tirar a camisa e comecei a apalpar a pança que alumiava mais do que um balão de sopro. Passei meia hora examinado e diagnosticando o pobre do amarelo. Dei minha abalizada opinião, passando umas meizinhas; folhas de losna, boldo, chá dente de leão e agrião d’água (já que o assunto estava sendo apreciado) e logo nos despedimos; deixando muitas esperanças em todos de uma cura milagrosa.

Tentamos planejar a volta para Cerquinha da Laranjas. A escuridão era total, nem sinal de estrelas. Apelei para ver as Três Marias, estrelas pertencentes à constelação de Órion, uma constelação que fica completa no nosso céu, durante toda a noite, para nos guiar. Nada. Breu total. Geraldo então teve uma ideia. Pediu emprestado um velho pangaré para nos levar de ladeira acima. Selaram o bicho e com muita luta subimos no Rocinante. Robério que era mais velho foi na sela e eu na garupa. Geraldo com mais conhecimentos geográficos, puxando pelo cabresto velho pé de pano. De vez enquanto eu descia forçosamente pela garupa e danava o espinhaço no chão duro. Acho que aquelas quedas ainda hoje me acompanham com dores insuportáveis de herança, que fiquei como seu beneficiário. Gritava que tinha caído e a caravana parava para me recolher com muita dificuldade. Esse tirinete aconteceu umas três vezes antes de vislumbrar a nossa salvação. Pegamos o Jeep e finalmente fomos para nossa casa em Penedo.

Semana seguinte voltamos para fazer o pagamento do pessoal como de costume. Os cumprimentos costumeiros, as perguntas sobre o andamento do plantio de maracujá, O que tinha de frutas para levar para minha mãe e claro, tomar uma garrafa de pinga com o velho camarão, que dona Cícera ia mosquear.

- O homem morreu, e já foi enterrado – disse seu Zé Vicente, de supetão.

- Que homem seu Zé?

- Seu Manoel Izidoro.

Ai Geraldo, gaguejando disse - também depois de tanto aperto e mexida naquele barrigão, não tinha diabo que aguentasse. Espoucou!

Ficamos sem jeito e com medo de sermos parcialmente responsável pelo ocorrido. Acabou a vontade de tomar a aguardente com camarão, pimenta e muito limão. Com a boca cheio d’água, dissemos até logo e fizemos meia volta e nunca mais consultei ninguém. Pelo menos que tivesse infectado pela esquistossomose e nunca mais comi tira-gosto de mussum...

 

 

 

 

           

 


terça-feira, 14 de março de 2023

A RUA QUE NÃO ACONTECEU - ROBÉRIO MARACAJÁ HENRIQUES


 

A RUA QUE NÃO ACONTECEU

 

Robério Maracajá (in memoriam)

 

Aquela manhã não era do meu tempo, muito mais antiga. Uma manhã velha fazendo-me reconhecer a marca das idades, como se me revelasse páginas amarelecidas pelo tempo. A rua, a calçada, o casario, os passageiros, tudo ancestral. E a inquietação minha por sentir-me novo, recente, uma violência dentro daquelas imagens remissivas.

O menino vinha ao meu encontro, uma paródia de meninos anteriores, olhos mortos de pálpebras imóveis, passos cansados de séculos, uma imagem recém – saída de um calendário esquecido. Um vulto sem emoções como uma estampa desbotada. Uma agressão ao meu tempo de barco sobre ondas azuis e iluminadas. A dor de um encontro absurdo, indesejável.

O casario abria as janelas, olhos de múmias, bocas desdentadas de palavras, hálito de recantos escondidos no silêncio das paredes assombradas de vazios. E eu me via naqueles interiores e assustavam-me os meus habitantes, então reencarnando todos os meus eus. Um pavor maior, vendo-me em tantas posses, meus olhos de infinitas dimensões, as mãos de centenas de dedos, todas as minhas almas que não assumi.

O menino e o casario completavam-se à sombra das árvores que nem existiam mais, ramos de aves sem pouso, o corpo dos troncos maltrapilhos, raízes contorcidas no leito de orgasmos incompletos. Os jardins anêmicos sem as rosas de dezembro, asas de borboletas esfarrapadas, zumbis de cores secas, cigarras de cantorias estiadas, uma vertigem.

O menino era a alma das árvores, dos pássaros e do casario e me roubava do meu tempo, violentando a minha idade, agora um aborto desmembrado, dispersado por caminhos perplexos. Afundava o meu barco de águas azuis e iluminadas, era a minha morte em profundezas agoniadas. A agonia dos meus habitantes e dos meus despovoados. A angústia das minhas casas desdentadas e de bocas sem palavras, das árvores sem aves, dos meus olhos de múmia, de um hálito de silêncio.

Um violino, um piano, um violão vinham das noites desaparecidas, de uma sala nenhuma, de uma sacada qualquer, onde uma moça qualquer premia os seios e o coração, uma serenata cortada ao meio, numa meia noite. E as fantasias / fantasmas, no gume da rua nua, apedrejavam telhados desalmados.

Aquela manhã, dia / noite, que não era do meu tempo, intrometeu-se em mim como uma noite desperdiçada. Carregando todos os meus escondidos e indesejados. Pela primeira vez, recusei uma manhã, desacordando-me. Um amanhecer amarelo, fosco, esfumaçado, idoso. Um acorde de restos embaralhados, confusos, sem fronteiras, na alma e no tempo.

Aquela manhã que nunca existiu e, se existiu, foi tanto que não havia mais nada além dos olhos mortos do menino espiando de dentro de um velho calendário.