sábado, 18 de julho de 2015

FAZ. POÇO DE PEDRA




      UM PRESENTE DE CASAMENTO DO CAPITÃO JOSE GENUÍNO CORREIA DE QUEIROZ O CAPITÃO CAZUZA PARA SUA FILHA OLINDINA QUEIROZ CASADA COM PATRÍCIO FREIRE MARIZ MARACAJÁ. CONSTRUÍDA NA ÉPOCA POR UMA FIRMA DO RECIFE

sábado, 11 de julho de 2015

A GRAVIDADE E A RELATIVIDADE




A gravidade e a relatividade

Universidade de Michigan

Na sua obra mais importante, os Principia, Newton propôs uma teoria que, entre outras coisas, iria explicar o movimento dos planetas em torno do Sol por meio das órbitas elípticas que Kepler descrevera com grande cuidado. A teoria que explica este movimento tem duas componentes. Uma deles é a teoria da dinâmica — a teoria geral de Newton que relaciona os movimentos com as forças que agem sobre os objetos em movimento. Baseando-se no pressuposto de fundo de que há um espaço absoluto e uma taxa de tempo absoluta e definida, a teoria incorpora o princípio de Galileu segundo o qual os objetos que não sofrem a ação de quaisquer forças permanecem num estado constante de movimento uniforme. Postula depois que a mudança de movimento (aceleração) será proporcional às forças que agem sobre um corpo e inversamente proporcional à propensão intrínseca de um corpo para resistir a mudanças de movimento, conhecida por “massa inercial”.
A outra componente da teoria de Newton diz respeito à força responsável pelos movimentos observados nos corpos astronómicos (e em muitos outros fenómenos, como as marés e a queda dos corpos em direção à Terra). Baseando-se uma vez mais na importante observação de Galileu segundo a qual, pondo de parte a resistência do ar, todos os objetos sofrem uma aceleração uniforme em direção à Terra quando estão em queda livre perto da sua superfície, Newton postula uma força geral de gravidade que atua entre todos os objetos materiais. A gravidade é sempre uma força de atração. Considera-se que a magnitude da força exercida entre os corpos é proporcional à massa inercial de cada corpo e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. A terceira lei do movimento de Newton afirma que a força exercida pelo primeiro corpo sobre o segundo será compensada por uma força com intensidade igual — com a mesma direção, mas sentido oposto — exercido pelo segundo corpo sobre o primeiro.
O facto de a força aumentar proporcionalmente à massa inercial, mas de a resistência do corpo à aceleração ser também proporcional à massa inercial, produz imediatamente o resultado obtido por Galileu de que todos os corpos aceleram de modo idêntico quando estão sujeitos à força gravitacional exercida por um corpo fixo, caso os objetos experimentais estejam no mesmo lugar relativamente ao objeto que exerce a força gravitacional. Newton demonstrou que a combinação das leis da dinâmica com a lei da força gravitacional por ele postulada conduzirá às leis do movimento planetário de Kepler, ou melhor, a uma versão ligeiramente corrigida dessas leis.
Não é assim surpreendente que Einstein, depois de ter demonstrado que era preciso ter um novo sistema dinâmico e de o ter construído de uma maneira consistente com o novo espaço-tempo da relatividade restrita, tenha enfrentado o problema de construir uma nova teoria da gravidade. Esta teoria, claramente indispensável, tem de ser consistente com as novas ideias sobre o espaço-tempo. A teoria de Newton, por exemplo, considera que a interação gravitacional entre os corpos é instantânea, mas segundo a relatividade todos os sinais se propagam a uma velocidade igual ou inferior à da luz. É possível construir muitas alternativas à teoria newtoniana compatíveis com o novo espaço-temporelativista. Na verdade, um programa de investigação contínuo da física experimental consiste em testar comparativamente essas alternativas, procurando possíveis observações que excluam algumas das possibilidades. No entanto, a nova teoria gravitacional que enfrentou melhor as experiências realizadas e a mais elegante teoricamente é a do próprio Einstein. É conhecida por “teoria da relatividade geral”. É também a teoria que postula uma natureza do mundo de grande interesse para os filósofos. No que resta desta secção vou esboçar algumas das ideias que conduziram Einstein a esta nova teoria da gravidade que, como veremos, consiste numa nova teoria sobre a estrutura do próprio espaço-tempo. Vou esboçar algumas das componentes básicas da teoria e explorar algumas das suas consequências importantes para os filósofos.
Einstein parte da observação de Galileu segundo a qual a aceleração induzida num objeto pela gravidade é independente do tamanho do objeto e daquilo de que ele é feito. A gravidade difere de qualquer outra força por ter este efeito universal. Consideremos o caso em que um objeto que gravita, localizado suficientemente longe, força o objeto a acelerar, de tal forma que o campo gravitacional é efetivamente constante no laboratório. Einstein faz notar que um pequeno objeto experimental, situado num laboratório, ficaria em aceleração em relação a esse laboratório exatamente da mesma maneira que ficaria se nenhuma força estivesse a atuar sobre ele e se o próprio laboratório estivesse uniformemente em aceleração na direção oposta à da aceleração da partícula. No último caso, qualquer objeto experimental com qualquer massa ou composição pareceria acelerar uniformemente em relação ao laboratório. É a universalidade da gravidade que nos permite substituir a força gravitacional por uma aceleração do sistema de referência.
Talvez, sugere Einstein, seja possível reproduzir todos os efeitos da gravidade numa tal aceleração do laboratório. Isto conduz à hipótese de que a gravidade terá efeitos sobre outras coisas que não a matéria constituída por partículas. Se emitirmos um feixe de luz que atravesse um laboratório em movimento de aceleração, é de esperar que o feixe não siga uma trajetória em linha reta relativamente ao laboratório. Não deverá então a gravidade defletir os feixes de luz que passam perto de um corpo que gravite?
Talvez a conclusão de que é de esperar que a gravidade tenha um efeito sobre medições de intervalos de tempo e de espaço, tal como relógios e réguas idealizados as revelam, seja ainda mais surpreendente. O argumento a favor do efeito temporal é o mais fácil de seguir e construir. Imagine- se um laboratório em aceleração que tem um relógio na sua extremidade superior e outro relógio idêntico na sua extremidade inferior. Enviam-se sinais do relógio inferior para o superior, e compara-se a taxa de emissão dos sinais, determinada pelo relógio inferior, com a da sua recepção, determinada pelo relógio superior. Quando um sinal enviado da parte de baixo atinge a parte de cima, o relógio de cima está em movimento relativamente ao sistema de referência em movimento uniforme onde o relógio de baixo estava em repouso quando o sinal foi enviado. Quer se argumente a partir do efeito de dilatação do tempo da relatividade restrita quer a partir do chamado “efeito de Doppler” — que, mesmo na física pré-relativista, mostra que um sinal enviado de uma fonte com uma dada frequência parece ter uma frequência mais baixa quando é observado por alguém em movimento de afastamento relativamente à fonte — torna-se plausível afirmar que o relógio de baixo parecerá estar a atrasar-se relativamente ao de cima. Ou seja, a frequência do sinal recebido pelo relógio de cima é, segundo o relógio de baixo, inferior à frequência do sinal emitido.
Mas considere-se agora um laboratório que não está em aceleração, onde todo o dispositivo está em repouso num campo gravitacional. Pelo argumento de Einstein (frequentemente conhecido por “princípio da equivalência”), seria de esperar que o relógio situado mais abaixo no campo gravitacional pareça atrasar-se, do ponto de vista do relógio situado mais acima. Note-se que isto nada tem a ver com a força gravitacional sentida pelos dois relógios; ao invés, é determinado por quão abaixo está um relógio em relação ao outro no “declive” gravitacional. Assim, é de esperar que a gravidade tenha efeitos na medição de intervalos de tempo. É possível oferecer argumentos semelhantes, mas um pouco mais complexos, que nos levam a prever que a gravidade também afeta as medições espaciais.
Considerados conjuntamente, estes argumentos conduziram Einstein à sugestão assombrosa de que a maneira de lidar com a gravidade num contexto relativista é tratá-la não como um campo de forças que atua no espaço-tempo, mas antes como uma modificação da própria estrutura geométrica do espaço-tempo. Na presença da gravidade, defendeu Einstein, o espaço-tempo é “curvo”. Para saber o que isto significa, no entanto, temos de olhar um pouco para a história da geometria tal como esta última é estudada pelos matemáticos.

Geometria não euclidiana

Na geometria canónica, tal como Euclides a formalizou, derivam-se todas as verdades geométricas a partir de um pequeno conjunto de postulados básicos alegadamente auto-evidentes. Embora a axiomatização da geometria realizada por Euclides não seja realmente completa (isto é, não é suficiente em si mesma para permitir a realização de todas as derivações sem se pressuporem outras premissas subjacentes ocultas), é possível completá-la. Durante um longo período de tempo, o postulado de Euclides conhecido por “postulado da paralela” foi gerador de perplexidade. Este postulado é equivalente à afirmação de que, passando por um ponto que não esteja numa dada linha, só pode traçar-se uma única linha que esteja no mesmo plano da linha e ponto dados e que não intersecte a linha dada em qualquer direção, por muito que as linhas se prolonguem. Os geómetras consideravam que este postulado não possuía a auto-evidência das outras hipóteses, que são mais simples (como “Iguais adicionados a iguais dão iguais” e “Uma linha reta é determinada por dois pontos”). Poderia este postulado “suspeito” ser derivado a partir dos outros postulados, tornando-se desnecessário enquanto pressuposto independente? Se pudéssemos mostrar que a negação do postulado da paralela era inconsistente com os outros postulados, poderíamos mostrar que esta derivação era de confiança pelo método da reductio ad absurdum. Mas poder-se-ia mostrar tal coisa?
Podemos negar o postulado da paralela de duas maneiras. O postulado diz que existe uma e apenas uma linha paralela que passa pelo ponto; para negar isto podemos afirmar que não existe qualquer linha paralela ou que existe mais do que uma. Em 1733, Saccheri mostrou que o postulado da inexistência de paralelas era realmente inconsistente com os restantes axiomas, pelo menos quando os entendemos da maneira habitual. Mas foi incapaz de mostrar que a negação do postulado das múltiplas paralelas também era inconsistente. No século XIX, Bolyai, Lobachevsky e Gauss compreenderam que podemos construir geometrias consistentes que adoptem os postulados de Euclides, mas que tenham um postulado de múltiplas paralelas em vez do postulado da paralela. Riemann mostrou então que, se os outros axiomas forem ligeiramente reinterpretados, poderemos construir uma nova geometria, também logicamente consistente, onde um postulado da inexistência de paralelas ocupa o lugar do postulado da paralela. As reinterpretações necessárias são as seguintes: “Uma reta é determinada por dois pontos” tem de ser lida de maneira a que por vezes mais do que uma linha reta contenha um dado par de pontos; “Uma linha pode ser prolongada arbitrariamente em ambos os sentidos” tem de ser lida como a afirmação de que uma linha não encontraria um ponto último se fosse prolongada, mas sem implicar que uma linha tão prolongada quanto possível tenha um comprimento infinito.
Mais tarde compreendeu-se que, quando se tomam estas novas geometrias não euclidianas como geometrias planas bidimensionais, pode-se entendê-las à maneira euclidiana como a geometria das curvas de menor distância (geodésicas) em superfícies curvas bidimensionais. Em particular, a geometria axiomática de Riemann era apenas a geometria das figuras construídas por arcos de círculos máximos (geodésicas) na superfície de uma esfera. Mas essas geometrias não euclidianas, tridimensionais e logicamente consistentes poderiam ser tomadas como sendo sobre o quê? Ou seria que, apesar de logicamente consistentes, eram absurdas por outras razões? Gauss levou a geometria mais longe ao desenvolver uma teoria geral sobre as superfícies bidimensionais arbitrariamente curvas. Estas caracterizam-se por um número — conhecido por “curvatura gaussiana” — em cada ponto. A variação desta curvatura em função da distância, tal como é medida ao longo de curvas situadas na superfície, determina a forma da superfície curva. Segundo Gauss, estas superfícies curvas estão imersas no espaço euclidiano tridimensional comum. Um resultado importante do seu trabalho, no entanto, foi o de que se podia caracterizar alguns dos aspectos da curvatura (a curvatura “intrínseca”) por meio de quantidades que poderiam ser determinadas por uma criatura bidimensional imaginária que estivesse confinada à superfície curva e que nem sequer se apercebesse da existência do espaço tridimensional que a envolveria. A partir desta nova perspectiva, verificou-se que se pode entender as geometrias descritas pelos sistemas axiomáticos anteriores como casos próprios. A geometria euclidiana bidimensional, a geometria do plano, é a geometria da superfície cuja curvatura de Gauss seja zero em todo o lado. A geometria de Riemann, a geometria das superfícies bidimensionais das esferas, é apenas a geometria de uma superfície cuja curvatura de Gauss seja constante e positiva. A geometria de Lobachevsky-Bolyai é a geometria de uma superfície bidimensional cuja curvatura de Gauss seja negativa e idêntica em cada ponto. A curvatura negativa caracteriza um ponto como aquele ponto no centro do desfiladeiro de uma montanha no qual a superfície se curva “em sentidos opostos”, passando por ele ao longo de trajetórias diferentes.
Riemann foi então mais longe, e generalizou a teoria de Gauss das superfícies curvas a espaços de qualquer dimensão. Ao passo que Gauss pressupôs que as superfícies em questão estão imersas num espaço euclidiano plano, Riemann não presumiu tal coisa. Afinal, um dos resultados do trabalho de Gauss era o de que alguns aspectos da curvatura estavam ao alcance de uma criatura bidimensional que não soubesse da existência do espaço envolvente. A geometria geral de Riemann lida com estes aspectos da curvatura, os aspectos intrínsecos. (Não deve confundir-se esta geometria geral de Riemann de espaços n-dimensionais curvos com a anterior geometria axiomática de Riemann.) O pressuposto básico desta geometria é o de que o espaço n-dimensional curvo é susceptível de ser aproximado, em regiões suficientemente pequenas, por um espaço euclidiano plano e n-dimensional. Para superfícies curvas num espaço não curvo tridimensional, estas superfícies aproximadas podem ser representadas como planos tangentes à superfície curva num certo ponto; os planos estão também localizados no espaço tridimensional envolvente. Para um espaço geral de Riemann, curvo e n-dimensional, postula-se a existência destes “planos tangentes” só no sentido em que, no que diz respeito aos aspectos intrínsecos n-dimensionais, o espaço curvo n-dimensional pode ser aproximado num certo ponto por um espaço euclidiano não curvo e n-dimensional.
Quais são alguns dos aspectos dos espaços curvos? Como, por exemplo, poderia uma criatura tridimensional que vivesse num espaço tridimensional curvo descobrir que o espaço era realmente curvo? A curvatura intrínseca revela-se na medição de distâncias. Uma criatura n-dimensional pode realizar medições de distâncias entre pontos em número suficiente para se assegurar de que não há qualquer possibilidade de esses pontos estarem situados num espaço plano n-dimensional e terem as distâncias mínimas entre si ao longo de curvas que os pontos da criatura fazem. Uma verificação das distâncias aéreas mais curtas entre cidades terrestres, por exemplo, pode dizer-nos que a Terra não tem uma superfície plana, mas antes uma superfície que se aproxima da de uma esfera. Num espaço curvo n-dimensional, as curvas de menor distância, conhecidas por “geodésicas do espaço”, seriam linhas retas caso o espaço fosse plano. Estas linhas são também as linhas de “menor curvatura” do espaço. Intuitivamente, isto significa que as linhas, embora não possam ser retas devido à estrutura do espaço, não diferem das linhas retas mais do que aquilo que a curvatura do próprio espaço lhes impõe.
A curvatura pode também revelar-se de outras maneiras. Se pegarmos num segmento de reta orientado (um vector), por exemplo, e o movermos em torno de uma curva fechada num espaço plano, mantendo-o tanto quanto possível paralelo a si próprio enquanto o movemos, quando regressarmos ao ponto de origem o vector apontará aí na mesma direção e sentido do que quando começámos. Mas num espaço curvo este transporte paralelo de um vector em torno de uma curva fechada irá, de uma maneira geral, mudar a direção ou o sentido do vector, de tal forma que no fim do transporte ele apontará para uma direção ou sentido diferente da direção ou sentido que tinha no início do percurso.
Um espaço plano tridimensional tem uma extensão infinita e um volume infinito. Um plano euclidiano tem uma extensão infinita e uma área infinita. Mas a superfície intrinsecamente curva de uma esfera, embora não tenha limites, tem uma área finita. Uma criatura bidimensional que vivesse numa superfície esférica poderia pintar a superfície. Nunca encontraria um limite na superfície, mas depois de um tempo finito toda a superfície ficaria pintada e o trabalho estaria concluído. Do mesmo modo, uma criatura tridimensional que vivesse no espaço curvo tridimensional análogo à superfície esférica, vivendo naquilo a que se chama uma tri-esfera, poderia encher a região com um plástico espumoso. Embora nunca encontrasse uma parede que limitasse o espaço, concluiria o trabalho num tempo finito, quando todo o volume do espaço tridimensional ficasse ocupado por uma quantidade finita de plástico espumoso.
Parece assim claro que a noção de espaço n-dimensional curvo, onde se inclui a noção de espaço tridimensional curvo, além de ser consistente de um ponto de vista lógico, não é, manifestamente, absurda. Enquanto ficarmos pelas características intrínsecas da curvatura, não estamos a presumir que o espaço esteja imerso num outro espaço plano envolvente e com mais dimensões. E os aspectos da curvatura intrínsecos ao espaço podem ser manifestamente determinados por meio de técnicas diretas por uma criatura que viva nesse espaço. Será então que podemos verificar se o verdadeiro espaço tridimensional do nosso mundo é curvo, e não o espaço plano caracterizado pelos postulados básicos da geometria euclidiana tridimensional? Estas especulações acompanharam naturalmente a descoberta das novas geometrias.

O uso das geometrias não euclidianas na física


quarta-feira, 8 de julho de 2015

O SACRISTÃO DO PADRE JONAS

O SACRISTÃO DE PADRE JONAS *
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Serrote, cidadezinha trepada no altiplano da Borborema, tinha uma vida tranquila e saudável. Terra de fazendeiros e pequeno comércio; crescia lentamente como se não tivesse presa em coisa nenhuma. No conjunto parecia uma só família.
Agitava-se um pouco somente no dia das eleições e durante as festas da Padroeira, Nossa Senhora dos Milagres. Uma coisa, entretanto, despertava a atenção. Terra de mulheres bonitas. As moças, por isso, casavam cedo e raramente ficava alguma no caritó, quase sempre aquelas que se dedicavam a zeladoria da igreja e ouviam com maior insistência as pregações do padre Jonas, celibatário forçado pelas proibições da Igreja, coisa que ele maldizia, mas não podia dar jeito. Pensava muitas vezes em desabotoar a batina e passar a viver como viviam os outros homens que não haviam caído na bobagem de vestir aquela saia preta que o separava das caricias e dos requebros de uma mulher bonita. Quando, então, celebrava um casamento, aspergindo água benta sobre dois jovens que mais tarde, depois da festa, ficariam entregues um ao outro, perdia até o sentido das palavras, do latim que autorizava a entrega.
- “Estão casados e vão viver felizes”.
 Aquilo era uma marretada no seu destino, em sua vida eclesiástica. Por que o meteram no Seminário, ainda uma criança, desconhecendo as coisas boas da vida. Tinha que respeitar a castidade, viver só, dormir só e ler diariamente aquele Breviário enjoado. Considera uma burrada pretenderem separar a alma do corpo. Os dois desejam as coisas juntos. Um atiçava o outro. Quando Deus colocou Adão sozinho no Paraíso, logo percebeu que estava errado e deu-lhe uma companheira, insinuando ainda que não tocasse na maçã. E como não disse se era doce ou amarga; Adão resolveu prová-la.
Padre Jonas já estava cansado do Breviário. E qualquer coisa misteriosa fervilhava dentro dele. Numa cidade, de tanta mulher bonita, só ele não tinha direito de beber água na fonte cristalina do amor. Tinha que viver só, remoendo aquele latinório cansativo e enjoado. Só olhavam para ele como uma coisa intocável, santa, com um respeito que lhe causava repugnância. Era um homem igual aos outros, forte, sadio, sacudido pelos mesmos desejos. Havia de tomar uma decisão, contra esses absurdos da Igreja Católica Apostólica Romana. As suas paixões ocultas, paixões que somente ele sabia; paixões reprimidas que lhe chicoteavam sem piedade. Tinha ânsias de gritar para que a sociedade e o mundo o ouvissem que ele também necessitava de amor, de contato, de pecar como os outros, abraçado com alguém que lhe fizesse carinhos. Sentir o calor de um corpo, de mulher, a doçura de um olhar terno, receber, num sorriso, um convite para o amor. Que diabo de vida era aquela sua, proibido de todas as coisas boas da vida. E vez por outra se surpreendia desabotoando a batina para jogá-la fora, voltar a ser homem, ter direito de amar como as pessoas, os animais, desde os minúsculos insetos.
Todos se amavam honestamente, cumpriam o maior mandamento sagrado. “Crescei e multiplicai-vos”. Somente os padres são proibidos, por convenção religiosa, quando deveriam ser os primeiros a dar o bom exemplo do amor e de uma família organizada.
Padre Jonas, instintivamente, ia desabotoando a batina. – ou diabo, o que estou eu fazendo... Passou uma noite horrível, de insônias e desejos agudos reprimidos. Não, não era mais possível. E já no domingo seguinte a igreja amanhecera fechada.
Os misseiros aglomeravam-se desapontados à porta da Igreja.
- Vai, gente, vai saber o que houve com o padre Jonas. A casa paroquial também estava fechada.
- Coitado do padre Jonas. Deve ter morrido sozinho, sem vela e sem orações. Chama à delegada.
Arrebentaram a porta. Nem sinal do padre Jonas. Apareceu o sacristão:
 – Gente, minha filha fugiu. E agora estou vendo. Fugiu, fugiu com o padre Jonas. Foram embora os dois, na certa.
E a notícia criou asas na cidade:
- Padre Jonas, carregou a Dilene e sumiu. É nisto que dá padre não poder se casar. Agüentou enquanto pôde, Também, com a Dilene, um pedaço de mulher daquele. Nova, com aquele corpo, aquele rosto, aqueles olhos, aquele jeitinho de andar, não tinha padre que resistisse...
- E agora? A estas horas já beliscou a maça. Fome velha...
- E o noivo da Dilene! Vai se danar. Quando aparecer aqui. Coitado, trabalhando na roça e arrumando-se para casar.
- É. O padre Jonas foi mais esperto. Também a culpa foi da bichota.
- Ora, o padre Jonas cheio de dinheiro, bonitão como é, confessando a Dilene, facilmente conquistou-a. Ela pobre, filha do sacristão que vive do badalo do sino e de espanar poeira de santo, coitado, povoou a cabecinha de santos e bateu as asas.
O sacristão trancou-se em casa. Preferia que ninguém o visse. A filha havia fugido com o vigário. Coisa horrível. Certamente já existia alguma coisa feia entre os dois. Era melhor morrer do que sair com um padre. Não tinha mais jeito. O embrulho já estava feito e agora era esperar o resultado da doidice da menina.
- É, nunca poderia imaginar que padre Jonas – o santo – fizesse tal coisa. Enganar uma tolinha e passar os garfos nela. Um safadório era o que ele era.
Chegou um padre novo para a freguesia do Serrote. Não quis nada do padre Jonas. Dispensou o sacristão e comprou paramentos novos. Coitado do sacristão! Não tivera culpa em nada, carregaram-lhe a filha e ainda perdia o lugar. Iria viver de que. Era sua mamãe quem lavava a roupa do padre Jonas. A vida apertou-se ainda mais. Tinha que tomar uma decisão.
Deodato era inteligente e de uma memória fantástica. Sabia tudo decorado. Missa, batizado e os sermões que o padre Jonas fazia. Resolveu-se, então.
- Pronto, mamãe. Não iremos morrer de fome. A senhora tem aí guardados os paramentos e batinas velhas de padre Jonas. Vou sair por aí pregando, casando e batizando.
- Estás endoidecendo, meu filho. Um sacrilégio!...
- Sacrilégio é a gente passar fome por causa de um padreca, como esse. Estou mesmo decidido. Dê-me o que tiver do padre Jonas, por aí. Não irá lhe faltar nada. De onde estiver, mandarei dinheiro.
E Deodato caiu fora. Encontrou um lugarejo sem padre, lá nos confins do sertão. Chegou entonado na batina velha do padre Jonas. Improvisou as coisas e deu início a sua programação. Arrumou a capelinha, organizou festividades, fazia casamentos e batizados e simulava as missas, mandou o latinório que havia decorado. Não se falava noutra coisa. Era padre Coco pra cá, padre Coco pra lá e o dinheiro correndo, além dos presentes que recebia. Fazia bonitas pregações que atraiam gente de longe. Já havia um verdadeiro fanatismo pelo padre Coco.
A notícia começou a correr longe. Chegou aos ouvidos do pároco de uma freguesia distante. Quem ia e quem vinha, não falava noutra coisa. Padre Coco fazia milagres. Era necessário levar ao conhecimento do Senhor Bispo. E padre Ambrósio botou-se para lá.
O bispo consultou suas anotações e não havia nada sobre o tal do padre Coco. Só se veio de outra prelazia. Precisava mandar apurar. Poderia ser um mistificador.
E chamou o monsenhor Messias.
- Vai lá homem de Deus e passa isso tudo a limpo.
Monsenhor Messias tocou-se para lá.
Mas nesse momento alguém soube da fiscalização e mandou urgentemente avisar ao padre Coco.
- Deixe vir...
Monsenhor Messias foi recebido debaixo de passeata religiosa. Hospedado, a propósito em casa do padre Coco. Houve quase uma romaria. Era impressionante o prestígio do padre Coco. Estava preparada uma pregação para a noite em homenagem a monsenhor Messias.
Padre Coco já havia reunido bastante dinheiro. Tomara 20 contos e prepara uma caixinha especial.
À hora do sermão, começou a disputa.
- Fale primeiro o senhor padre Coco.
- Não, o senhor que vem de fora.
Afinal, padre Coco falou. Era o que ele queria. Repetiu um dos sermões de padre Jonas. E para arrematar, virou-se para o monsenhor Messias, e em voz pausada, acentuando bem as palavras anunciou.
- Eis aqui meus irmãos, todo o dinheiro arrecadado nas festividades, são vinte contos de réis que passarei às mãos do monsenhor Messias em beneficio das obras sociais da Igreja. E fez a entrega da caixinha recheada.
Monsenhor Messias fez sua pregação. Era exímio em transmitir a palavra do Senhor. E para concluir exaltou o trabalho do padre Coco e disse a que tinha vindo.
- Denunciaram o padre Coco. Diziam que padre Coco não era padre. Mas, meus irmãos, padre Coco é padre até no inferno!
Encerrou a pregação acariciando a caixinha com os vinte contos de réis que iriam agradar o bispo.
- O bispo chama o Monsenhor e diz: - Olha Messias, esse padre Coco será promovido a cônego. Cuide dos papeis. Essa gente gosta de caluniar os outros... Que pecado feio!...
- Padre coco, um modelo de fé. Já está promovido...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


VELHOS BRINQUEDOS

VELHOS BRINQUEDOS*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Há, na certa, gente que depois de crescida, gosta de fantasiar sua vida de menino. Ou por outra, começa a mentir, aparentando que teve uma infância dourada, repleta de brinquedos e diversões as mais variadas. Outras contam dissabores e uma vida lastimável de menino pobre. Saíram do nada e se fez gente a custa dos próprios esforços. Comigo e meus irmãos não se deu nada disso.
Tivemos uma infância comum, sem luxos, nem riquezas, mas também sem miséria. Sempre tivemos o essencial: casa, comida, roupas e o campo para nossas brincadeiras. Ninguém teve bicicleta, nem pistolas de plásticos ou automáticas ou outras espécies de brinquedos que saíram das fabricas. Minhas irmãs, essas tinham bonecas, geralmente de louça que eram um mimo e de plástico também. Mas não eram muitas.
Em compensação não faltavam outras diversões que não trocaríamos por nada neste mundo e que a meninada das cidades não possuía e invejavam. Caçar ninhos de passarinhos, armar arapucas e esparrelas para apanhar concriz, galos de campina e sabiás; montar a cavalo e em bezerros, andar trepado nas árvores, tomar banho nos açudes e lagoas, apanhar cumatí, murta, umbu e brincar de fazendeiro. Com vacas e bezerros de osso, inclusive vaqueiros. Era uma coisa rústica, mas gostosa. Sempre se ambiciona aquilo que não se tem. E as brincadeiras de esconde-esconde, de apostar careira, armar fojo para pegar preás, tantas coisas que ainda hoje nos deixa saudades.
Só o que nos contrariava era deixar tudo isso para ir à escola. As brincadeiras tinham mais força e a gente mesmo as inventava. Não nos faltava companheiros. As meninas de tia Aninha, de Manuel Gonçalves, de Robertinho, os negros de Nicolau, os Patrícios e muitos outros. Uma figura inesquecível era o Antônio de seu Pedro Vital, compridão, tolo e molenga. Nos dias de sábado e domingo quando o meu pai ia à feira ou a missa, a turma juntava-se para trancar os bezerros no curral, laçar, montar e cair. Era coisa para valer. Meu pai amansava carneiros para a gente montar. Chegou até a mandar fazer uma selinha de carneiro. Era uma delícia, e os meninos da rua davam uma perua ao diabo para uma semana na Arara¹ ou no Algodão. Sebastião e Egídio Lima tinham esses privilégios. O Egídio era moleirão, mas adorava. Lá em casa todos trabalhavam, fosse no que fosse. Não tinha essa história de viver penteando macaco. Na roça, em casa, levando recado. As coisas às vezes eram duras, mas meu pai e minha mãe sabiam muito bem o que estavam fazendo.
O Joaquim, o mais velho era meio escorão e cedo, inventou de negociar na cidade. E foi. Era um armazém de cereais e legumes que não durou muito. Passou para outro tipo de comércio. Positivamente naquela fase, não gostava de roça. Era metido a homem. Embirrento. Foi toda a vida assim.
Heleno queria ser o mais inteligente e mais sabido. E eu acho que era mesmo. De minha parte, sempre fui um boboca, mas arengueiro a toda prova.
Queria fazer pouco de mim e lá iam as brigas. Mas era tudo como fogo de palha. Passava logo.
- Vai João para ali, vai João pra acolá - e o besta ia.
Matias e José formavam uma canga. Fazia suas artimanhas às ocultas. Chegavam até a arrombar o açude velho e meu pai nunca soube... Das mulheres, as brigonas e valentes eram, Ana e Olivia. As outras, Mãezinha, Maria, Helena, Izabel e Rosa, eram nossa tabua de salvação. Olivia e Ana, também boas amigas, geniosas e de mãos pesadas... Tinha-se de pisar macio.
Tivemos todos uma infância agradável. Trabalhava-se e ninguém se maldizia. As festas, passava-se na cidade todos de roupa e sapatos novos. As mulheres tinham que ter um vestido diferente para cada noite de novenário. Fora da escola e da preguiça nada mais me afligia.
Os outros, bem se notava, eram mais dedicados. O Heleno não era também muito afeiçoado a estudos. Gaseava quando podia e me agradava àquela solidariedade. José e Matias abandonaram cedo os estudos. Inventaram que não tinham boas cabeças para os estudos. Quem complicou a minha vida foi o Seminário. Quando o larguei, meu pai disse que eu não queria estudar. Cai na besteira de afirmar que queria, só não no seminário. E tive que sustentar a palavra. Terminei um estudioso, com pouca memória e inteligência comum. A moral de meu pai levou-me a formatura agronômica. Afinal, até agora não me arrependi. Creio que não paguei o quanto os meus pais e meus manos fizeram por mim. Quem sabe se o esforço foi pouco...
A vida na roça é saudável e divertida. Dispensa artifícios e coisas fabricadas a troco do metal sonante. Os fabricantes não pensam em distrair ninguém. A propaganda falsa interessa só para impingir os seus artifícios. Dia da criança, dias das mães, dos pais, dias de todo o mundo, é puro comércio, legítima exploração comercial. Uma vergonha nacional. Isso faz lembrar o escritor Ariano Suassuna, que criava uma seriema no quintal e não possuía televisor.
Um vendedor que o advertiu da falta de um televisor para distrair os filhos, que deveriam ter inveja dos filhos do vizinho. Ele replicou:
- É. Venha cá. Os outros têm televisões, mas não tem uma seriema como esta no quintal!
No campo há de tudo que é bom e divertido. Riachos correndo, lagoas cheias, açudes sangrando, pássaros, campos floridos, abelhas zumbindo, pássaros nos ninhos, milho verde, pitomba, ubaia, murta, goiaba, cavalos para montar, leite puro no curral, oxigênio para encher os pulmões e sem as poeiras da civilização. Se não fora o sacrifício da danada da escola, a felicidade da infância teria sido completa. É certo que depois, usufruem-se as vantagens de ter frequentado à escola, embora arrastado como bode para dentro d’água.
Minha ojeriza pela escola era tal que pedia a Deus que matasse todos os professores de uma porretada só. Enquanto existissem não haveria paz no reino das crianças...
E quantas vezes engoli as consequências de um primário chamuscado. Havia tanta distração no campo, que odiava à escola e dos professores que comiam à custa do sacrifício dos meninos que os pais empurravam para a escola, a fim de não criá-los burros.
Uma velha brincadeira era a gangorra ou o João-Galamarte². Balançar no sobe e desse ou rodar até cair tonto. As grandes fogueiras do São João e do mês das flores de maio, faziam parte de nossa vidoca de menino da roça. As bacias com água para ver o rosto e saber quem alcançaria o outro são João, os copos com água com clara de ovo para saber quem casa ou não. Se formasse uma capelinha era casamento certo. Tinha cabra nervoso que não via o rosto e saia com a certeza de não ver a outra festa.
Era motivo de vaias e galhofas. E não ficava nisso. Enfiar faca nas bananeiras para no dia seguinte tirá-la com as iniciais do nome do noivo ou noiva. Tudo isso era uma poesia encantadora.
Quem viveu na roça não conheceu os encantos da vida nas fazendas. Nas cidades tudo é artificial, irreal, sofisticado.
Em 10/04/85


Nota do digitador:
¹ Fazenda Arara fica no Município de Esperança Paraíba, onde meu pai nasceu e se criou.
² Galamarte
Brinquedo que estava presente em quase todas as regiões do estado e muito lembrado com uma boa dose de nostalgia por todos aqueles que com ele brincaram. O galamarte, ou galamacho (Tibau do Sul), ou ainda, João Galamarte (Florânia), consistia numa tora de pau, com mais ou menos três metros de extensão, e com um furo no meio, justamente no seu centro de gravidade. Próximo às suas extremidades enfiava-se um pedaço de pau, que era o torno, uma espécie de suporte para as crianças se segurarem. Fazia-se uma base para recebê-lo, fincando-se no chão um pau bem resistente, geralmente pau-d’arco ou jucá, com a ponta afiada para encaixar no buraco feito na tora de pau. Essa base servia de eixo para a tora girar em círculo ou em movimento de cima para baixo, como uma gangorra.
A madeira para confecção do galamarte variava de região para região, e de acordo com a matéria-prima disponibilizada pela natureza: na região Oeste do estado, usava-se o tronco da carnaúba; na região do Seridó, a madeira utilizada era o pinhão; e, no litoral, era o galamache, árvore típica da mata atlântica. Cavalcante (2007) ressalta que o furo, para receber o eixo, era feito com ferro quente, para não haver risco de rachar.
A brincadeira consistia em girar o galamarte com duas crianças sentadas nas suas extremidades. O equilíbrio do peso, segundo Figueiredo (1966), se dava pela aproximação ou distanciamento das crianças dos extremos das hastes móveis.
Medeiros de Barros (2006), que teve sua infância em Tibau do Sul, nos fala que a brincadeira se “tornava boa”, porque ficava uma criança no meio, empurrando o galamarte, e, quando pegava velocidade, o desafio era tentar sair, sem que o pau nela batesse. Isso se tornava difícil, porque, à medida que a criança girava, ficava tonta, dificultando sua saída, já que tinha que correr em velocidade para escapar da tora. Às vezes a solução era deitar no chão para escapar, ou então, subir na tora, e ficar girando junto com as outras duas crianças. Em Florânia, o desafio era ver quem aguentava mais tempo girando. Girava-se o galamarte até uma das crianças cair tonta ou desistir do desafio. Acontecia, às vezes, de uma ou outra criança enjoar e vomitar. Assim Figueredo (1966) se refere ao galamarte:
[...] As crianças do sexo masculino brincam montadas, enquanto as meninas antigamente sentavam-se, à maneira inglesa de cavalgar. Agora, com o uso de calças masculinas entre mocinhas, todos montam-se no Galamarte, sem distinção de sexo. O brinquedo pode provocar sérios acidentes. Quando a criançada lhe dá movimento rápido demais, fora do comum, constitui verdadeiro perigo.
Usava-se carvão e sebo para diminuir o atrito da junção entre o eixo e a tora rodante, o que provocava um barulho muito parecido com os de um carro de boi. Cavalcante (2007) descreve o processo de preparação do carvão com o sebo:
[...] o melhor sebo é o de carneiro. Aí, nós pilava o carvão bem picadinho, pega o sebo e estendia [..] misturava bem misturadinho, o sebo com o carvão [...], quando acabava tacava dentro do buraco do galamarte. Aí vinha para a ponta do pião, colocava um bolão na ponta, dentro do galamarte colocava outro bolão, aí sentava em cima.
Esse rangido era muito peculiar, tanto que todas as pessoas que brincaram, fazem referência ao barulho provocado pelo Galamarte. Diziam que o “galamarte cantava”. Cavalcante (2007) lembra que na Cidade em que viveu, o rangido do galamarte era denunciador de que as crianças estavam brincando. O barulho era tão forte, que o galamarte era construído distante das casas e, mesmo assim, toda a vizinhança ouvia o barulho. Ele morava a uma distância considerável do local onde brincava com seus amigos, mas, ainda assim, o barulho do objeto lhe denunciava ao seu pai, que não queria que ele brincasse no galamarte, pois achava perigoso.
Melo, M. (1953, 104) descreve o galamarte:
Entre as brincadeiras dos meninos, há uma igualmente curiosa e interessante. É a do João-Galamarte (23). Pegava-se uma banda ou lasca de carnaúba, plainava-se por dentro, tiravam-se os nós que havia por fora, e no centro abria-se buraco a formão e a fogo. Feito isto, enfincava-se um pau preparado no chão: estava pronto o Galamarte. Os meninos montavam nas duas extremidades e começavam a rodar. Para que o Galamarte cantasse, usava-se sebo, carvão e gás.
Ainda sobre a brincadeira, havia um versinho que dizia:
João Galamarte
De pau e colher
Que vendeu a mulher

Por um dedo de mel

PADRE CELESTINO




PADRE CELESTINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Havia sido coroinha do vigário da freguesia, que o encaminhara ao Seminário. Fora nascido para ser padre, e sem que fosse necessário proibir-lhe o casamento. Nunca sentira qualquer atração pelas mulheres. Frio, frio, como uma pedra de gelo e ademais criado como coroinha, no cheiro do incenso e nos borrifos de água benta, completara as suas tendências antimatrimoniais. Também não sentia nada.
Foi para o Seminário da Paraíba, pelas Vocações Sacerdotais. Como não pensava em mulheres, dedicava-se somente aos estudos e não fora mau aluno. Só pensava mesmo nos caminhos do céu e imbuiu-se da filosofia de que as mulheres eram a perdição do mundo. Havia muito cabra no inferno e penando no purgatório, só e só, por causa delas. Eram um bichinho pecaminoso e, além disso, cheias de artimanhas. Andava por aí mostrando as pernas, de braços nus e até de saias curtas para chamar atenção. E o pior eram os decotes, insinuando coisas... Uma perdição; e o mundo estava também perdido. O diabo teria que construir novas cidades para alojar a multidão dos desviados da Santa-Madre-Igreja. Era uma pouca vergonha.
Observava que muita gente ia à igreja, não para rezar, mas para exibir vestidos e ternos novos e puxar namoro. Quando se ordenasse iriam ver quem era padre celestino. Revoltava-se quando via os padres ou os seminaristas conversando com moças e casadas, sem a menor cerimônia, aparentando até certas intimidades. Onde é que estava o espírito religioso daquela gente. Que coisa. E achava estanho que nas igrejas, mais de oitenta por cento eram só de mulheres. Homens, mas velhotes e o resto era de fedelhos, bigodetes que iam ali somente namorar. Nenhum deles com um rosário ou um livro de rezas. Não sabiam nem se benzer. Além disso, não paravam os cochichos, os olhares pra um lado, para outro, como se estivessem procurando alguma coisa ou com medo de alguém. Uma pouca vergonha.
E nas leituras que fazia, certo dia descobriu que certo santo havia levado parte de sua vida amasiado e teria sido um desregrado na mocidade. Mesmo assim tornara-se santo, um dos mais importantes da igreja. Passa, então, a não entender mais de nada. De nada mesmo. Um sujeito que se metera com mulheres, com desregramento emocional e afetivo considerado um “doutor da igreja” e santo.
Não lhe restava à menor dúvida de que teria de lutar muito para consertar a vida de sua futura paróquia. Não quis mais estudar vida de santo para não ter novas decepções. Nem atinava para que criaram mulher. Uma coisa para ele sem sentido.
 Afinal, chegou a ordenar-se. E no dia da ordenação a Igreja estava apinhada de mulheres. E do bispo aos padres e seminaristas sempre de olho nelas, furtivamente. Via tudo àquilo com certa tristeza. Não, não dava pé. E se perguntava que graça poderiam achar naquela coisa de rosto empoado, boca pintada, busto saliente e cheia de salamaleques. Alguma coisa deveria estar errada. Seria que somente ele não sentia nada ou era mesmo perversão. Mulheres. Que mulher que nada. Safadeza. Iriam ver um padre legítimo. Eva laçou Adão e botou-o a perder. E foi quem inventou o pecado. Começou daí o desmantelo. Também entregaram uma mulher completamente nua, a um cabra que não tinha uma tanga. Só podia dar mesmo em safadeza. Aquela história de cobra é conversa fiada. Mas, comigo não vai ter acordo. Vou botar tinindo!
Padre Celestino ganhou uma paróquia na cidade perto da área mais perigosa. Entrou na igreja para a missa do domingo preparado para introduzir bons costumes e respeito. Antes da celebração virou-se para os fiéis e examinou-os detidamente e soltou o verbo:
- Quem não estiver decentemente vestido como manda a Santa-Madre-Igreja, queira retirar-se.
Ninguém se mexeu. Repetia advertência e o silencio foi o mesmo. Renovou a determinação. E foi, então, que uma mais despachada, perguntou em voz bem clara como era a decência mencionada.
- Sem mangas curtas, sem decotes, sem mostrar as pernas. Aqui é a casa de Nosso Senhor e estas coisas não combinam com os preceitos cristãos.
- E o que é que tem essas bobagens com a fé que se tem. Quando Deus fez Adão e Eva deixou-os nus no Paraíso, com tudo de fora. Pois daqui, reverendo, não vai sair ninguém. Celebre se quiser.
- Não admito, não admito e não admito. Aqui quem manda sou eu! A casa de Deus merece todo respeito.
- E nos também. Aqui não tem ninguém fazendo nada errado. E de que planeta veio o reverendo? E cuide em dizer a missa, senão iremos falar como bispo.
- Podem falar até com o papa!!! Onde já se viu uma coisa desta. Podem sair que vou mandar o sacristão fechar a igreja. Não haverá missa.
- Missa de um padreca ignorante de sua marca, não queremos mesmo ouvir. Em todo caso, no próximo domingo lhe atendemos.
- Bem, com esta promessa, vou celebrar. Sabia que iriam me entender.
E no domingo seguinte, padre Celestino entrou na igreja com ar de vitorioso. Mas de repente teve um susto de cair para trás. Os decotes haviam baixado as saias muito mais curtas e os vestidos não tinham mangas. Alarmou-se. Deu um pinote e entrou na sacristia mordido. Aquilo era um canalhismo e um deboche. Iria excomungar até o caco de sal. Mas veio-lhe uma meditação. A coisa estava dura. No domingo anterior não arrecadou para o café. Havia se esquecido até dos batizados. Tinha dois casamentos a fazer e de nada se lembrou. Mais uma semana de crise e iria pedir esmolas sem ter quem lhe desse. A coisa estava pretíssima. Passar fome seria terrível. Havia de dar uma solução. Refletiu maduramente, paramentou-se e foi para o altar aparentando tranqüilidade. Celebrou sem uma referencia ao disparate e ao desrespeito. Quando se virava para o povo, era com um rizinho solene.  E uma coisa lhe chamou a atenção. A sacola andava de ala em ala, recebia donativos. Chegou o momento da prática religiosa. Fez um sermão. – “Venham à igreja como acharem melhor. O calor intenso reclamava roupas sumárias. Nosso Senhor não queria saber de roupa de ninguém. Queria era o coração, a pureza d’alma”. - E de ver tanto decote, tanta perna bonita, - chegou ao exagero de lembrar os índios que apesar de despidos eram puros de intenções. Deus, na verdade, não fizera ninguém vestido, mesmo por que não havia teares e nem fibras para tecelagem no céu. A maldade era dos próprios que viam “coisas” atiçadas pelo demônio.  Mas isto era problema de cada um.
 No meio daquela gente, lá estava à mulata Florinda, quase mostrando os peitos. Os joelhos de fora. A boca pintada como uma fruta madura de facheiro. E foi aí que padre Celestino acordou. Começou a sentir-se diferente, com uma coisa ardendo dentro dele. Não sabia o que era, mas sentia que não era mais o mesmo. Lembrou-se de santo Agostinho que vivera amigado por muito tempo e tornara-se o doutor da Igreja, além de santo. Naquela noite não conseguiu dormir. Havia uma coisa bulindo com ele. Fechava os olhos e o que lhe aparecesse era o decote doido da morena. Sua vida de pureza periclitava. Tentou controlar-se, mas tudo completamente inútil. Mordia os lábios, fechava novamente os olhos mais aí é que a mulata lhe aparecia, não mais decotada, mas completamente pelada. Estava perdido. Nunca havia prestado atenção naquelas coisas desparafusadas. Antes, não lhe despertavam qualquer atração, De qualquer forma haveria de resistir, confirmando o juramento que fizera.
Nunca havia sentido que as coisas belas despertam atração e desejos. E começaram os maus pensamentos sem que pudesse se livrar deles. E como as coisas do mundo estavam mudando aos seus olhos. Adão e Eva já não eram as mesmas pessoas bíblicas, e nem Eva havia sido criada só e só para fazer companhia a Adão e tanto era assim que eram muito diferentes no físico e principalmente no sexo. E padre Celestino descobriu mais uma novidade. Poderia ver mil homens nus sem sentir qualquer atração. No entanto, um decote numa mulher, um pedaço bom de pernas a mostrar era como se tomasse um cálice de uma bebida afrodisíaca. E aquelas coisas estranhas foram crescendo dentro dele a ponto de perder o sono e o apetite.
E no dia seguinte teve a sensação de ter visto sua arrumadeira pela primeira vez. A notar-lhe as curvas e as saliências do corpo ainda jovem, embora já profanado. Tomou o breviário e leu o quanto pode pra fugir ao assalto daqueles pensamentos ilícitos e perigosos. Mas não havia jeito. Tornara-se impaciente, intranqüilo, passando a perceber que lhe estava faltando qualquer coisa ainda meio indefinida, mas ligada aos decotes, e as pernas das mulheres. Estremeceu, pensou no purgatório e no inferno, benzeu-se, fechou os olhos e quanto mais fechava mais via o corpo da arrumadeira e o decote atrevido da morena da igreja. Resolveu, então, ir ao convento dos frades para ser ouvido em confissão pelo frade Moises que ele considerava já santificado. Precisava de orientação, de conselhos que o livrassem das artimanhas do capiroto. Contou tim-tim por tim-tim o que se passava com ele. Não tinha dúvidas que só poderiam ser mesmo tentação do maligno.
- É meu filho. Todos nós passamos por essas fases difíceis, essas tentações. É, pois, coisa muito natural. Mas, afaste-se disso. Você; está visto, não dá para essas coisas não. É um inocente, sem experiência. Fique mesmo com suas rezas. Pois não é! Um homão desses ainda me vem confessar bobagens. Isso é iniciativa de cada um. E não me amola com essas coisas não, que já passei da idade e não quero ficar recordando o passado. Vai, vai rezar...
Padre Celestino saiu ainda mais confuso. O que queria dizer, “não ter mais idade”. Será que já passei também dos bons tempos? E entrou em casa sem ter noção do que deveria fazer. A arrumadeira lhe apareceu para dar-lhe um recado. Deveria ir fazer uma confissão num lugar suspeito, numa ponta de rua onde padre era proibido de freqüentar. Mas, havia de ser. Era no cumprimento de seus deveres sagrados.
- Minha gente, aonde vai padre Celestino. Certamente perdeu a cabeça.
- Só poderá ser alguma confissão. É um vigário irrepreensível. Em todo caso, não boto minha mão no fogo por seu ninguém.
- Olha aí! Está entrando em casa da desavergonhada da Títa.
- Com toda certeza, passa mal. Essa gente também adoece, e a Títa nunca perdeu missa.
- Padre Celestino; pedi para o senhor vir aqui para lhe pedir perdão de uma coisa, isto é, ter ido tão decotada para a Igreja. É isto. O uso de casa vai à praça.
- Ora, tem nada não, menina. O que vale é a boa intenção. Assista sua missa como melhor puder se vestir.
- Mas eu vi o senhor olhando tanto para mim, que julguei estar me censurando. Naqueles dias, cheguei a pensar que eu era a culpada de tudo. Era a mais decotada e de saia e mangas mais curtas. Pode me perdoar?
- Não! Porque não há de que.
- Pois é, mas naquele domingo eu me parecia completamente nua no meio do povo.
- Minha filha, a nudez é relativa. Os índios, por exemplo, andam nus e nem por isso os padres deixaram de catequizá-los. E o que é uma mulher tem demais que não se possa ver. Eu mesmo nunca vi. Sei mais ou menos, isto é, faço apenas uma idéia. Deve ser bonito, pois todo mundo anda atrás de ver. Mas Deus me livre. Deve ser uma tentação do demônio.
- Mas aqui estamos somente nós dois. E Títa desabotoou a blusa.
- Não, não faça uma coisa dessas!... Disse padre Celestino coma voz tremula.
E a blusa saiu, a saia curta também e o resto. Padre Celestino caiu de costas na cama, todo se benzendo e fazendo que não tinha visto nada.
- Se vista menina.
- Não, padre, vestida não presta...
E o padre Celestino retirou-se depois do batismo de fogo. Ia se sentindo leve de corpo e de alma. E muitos curiosos, avisados, esperavam a saída do reverendo. E alguns chegaram a ver Títa, pelo desvão da porta, se despedindo.
- Então, padre Celestino, doença grave?
- Gravíssima. Sei não. Fui-lhe confessar, talvez viesse a morrer em pecado mortal. E é necessário que alguém vá lhe prestar assistência. Só por ser uma menina de vida livre, não quer dizer que se deixe morrer a míngua.
E o padre se foi, ou se mandou, antes de mais conversa. E dois dos mais compadecidos foram à casa da Títa. Precisavam mesmo dar assistência. Afinal de contas ela também era gente. Empurraram a porta como de costume e lá estava a menina ainda em trajes de Eva, com uma toalha no ombro e uma saboneteira na mão. Ia tirar o cheiro enjoado de incenso.
- Ora! Desculpa Títa. Pensei que estavas à morte. Pelo que o reverendo falou, havia te dado a extrema unção...
- Tenho nada não. Nunca estive tão bem.
Estava visto que havia tramóia. Mas teria que calar a boca para não prejudicar Títa. Afinal, ela vivia dessas visitas e o freguês novo tinha boas granas. Ele que se livrasse do sapateiro, que era arreado pela Títa. Mas isto era problema exclusivo dos dois. E o pior era que o padreca era de raça pesada e, pelo que se sabia, não largava uma FN de seis tiros. Em todo caso era melhor preveni-lo. Fazer-lhe uma cartinha de advertência. O sapateiro também não era moleza e paixão por mulher da vida ainda, era a pior paixão. O homem recebeu o aviso, mas não se impressionou. Paixão era a dele. Quem quisesse que mudasse de caminho. Fora Títa que o tirara do Limbo e enfrentaria até uma legião de demônios.
E planejou uma solução. Um emprego para Títa na Prefeitura. Assim deixaria a vida livre e passaria a ser uma moça reservada. Mudaria de casa e estaria encerrada a questão. E tudo foi feito.
Mas o sapateiro não abriria mão. Foi se ter com a Títa, que não quis mais saber do bicho. Estava cansada daquela vida miserável.
- Então, casa-te comigo.
- Nada disso. Só sei viver só.
E o sapateiro ameaçou-a. Iria vigiá-la.
- Iras te dar mal. Vou falara com o delegado.
Mesmo assim, continuou rondando. E certa noite viu alguém entrando em casa da Títa. Aguardou a saída de botou-se ao intrometido. Ouviram-se dois tiros seguidos. E o sapateiro amanheceu de olho duro. Uma boa distancia da casa da Títa. Com não tinha parentes, a policia fez o enterro.
Padre Celestino fez a encomendação do corpo e terminou calmo e tranquilo, com as palavras de piedade. “Descansa em paz...”.
Na verdade era ele quem estava descansado do intruso. O delegado nem abriu inquérito. O sapateiro era turrão, metido a brabo e já havia brigado com a policia. Era apenas um de menos para lhe dar trabalho.
Títa sabia de tudo. Assustou-se com o reverendo. O bicho era perigoso e aquilo poderia virar pro lado dela. Resolveu sumir. Juntou os panos, pegou o dinheirinho economizado e não amanheceu na cidade.
Padre Celestino tomou um choque. Procurou informar-se veladamente, por intermédio do sacristão e nem noticias. Desapontado, retornou a casa e também não encontrou mais a arrumadeira. Certamente o diabo estaria conspirando contra ele. Se o avistasse o queimaria também. Mudou as balas da FN. Para que não falhassem. Já havia queimado um e queimaria uma dúzia.
 No quarto da empregada encontrou um bilhete. – “Sei de tudo”. Estou indo com a Títa. Ela é minha irmã. Não tive sorte com o senhor e mesmo a Títa, o senhor pagou mal. É um seixeiro. Mande pelo correio para recife, posta-restante o que ficou me devendo. E não mande pouco, se não iremos contar tudo ao senhor bispo, inclusive, a morte do sapateiro. Minha irmã também já estava enjoada de suas baboseiras. Vosmecê é um porco degenerado. E não demore.
- Chantagem. Vão todas para a casa do diabo. Por causa daquela sujeitinha e para escapar, queimei o estúpido do sapateiro. Foi medo. Somente medo do escândalo e de morrer. O maior desastre de minha vida. Tudo porque comecei a entender o mundo, tarde de mais. E é difícil ou impossível saber a razão daquela ojeriza pelas mulheres. Não fora isso tudo teria sido evitado. Mas não será tarde para ter uma vida normal, fazer como os outros. Em todo o caso; foi a diaba da Títa quem me acordou, ou por outra, mostrou-me o caminho da realidade. A bichota que tinha em casa e que respeitei, era uma simuladora. Nunca havia falado na Títa. Talvez ou certamente sabia de meu relacionamento com a irmã e tinha ciúmes. E a propósito, quem sabe se não me levou alguma coisa?
Examinou os quatro cantos da casa. Tudo nos seus lugares. Havia sido honesta. Uma boa menina.
- Perdi-a de burro que fui.
E por que diabo tinha tanto medo de perder a Títa. Marinheiro de primeira viagem. Só isto. É por essas coisinhas que muita gente não entende, muitas vezes, o que se passa com os outros. Só mesmo quem está dentro de si mesmo é quem sabe. E, mesmo assim, nem sempre.
Não deveria mais abusar da batina. Ela lhe merecia todo respeito. Quando fez a primeira viagem, comprou um terno cinzento e sapato marrões e chapéu cinza. Ninguém o reconheceria. Poderia dar suas saídas como um cidadão livre qualquer. Ninguém diria mais: - “Olha aonde vai entrando o padre Celestino” – Acabou-se isso.
E andava bem feito de corpo, quando recebeu uma carta da Títa. Pedia desculpas. A carta anterior havia sido escrita pela irmã. Soube depois. Lamentou mais não havia mais jeito. A irmã estava casada e tinha se ido. Estava abandonada, passando miséria. Não estava mais feia. Era a mesma Títa. Poderia voltar se ele quisesse. Seria boazinha. E mesmo que não a desejasse mais, se poderia ajuda-la de alguma forma. Mas queria mesmo era voltar. Havia saído com medo, depois do que acontecera com o sapateiro. Vira tudo, mas nunca revelaria nada. Seu sofrimento era, sobretudo o isolamento. Passa dias de fome, mas isso era o menos. Não tinha ao menos com que voltar.
E padre Celestino teve pena de sua “professora”. Poderia ser um tanto perigoso, mas acima de tudo estava o seu espírito religioso e caritativo. E mandou-lhe dinheiro para a volta e para chegar decente. Não queria vê-la desarrumada. Teria remorso por haver causado sua fuga intempestiva. E ficou na expectativa. E já mais de um mês e nem noticias. Desta feita havia caído mesmo numa chantagem. Mais uma vez havia bancado o cavalocípede. E andava desapontado.
Celebrava a missa do domingo, sem pensar em nada além do santo sacrifício. Chegou o momento da prédica. Virou-se para os fies e começou a pregar o evangelho do dia, na maior compenetração religiosa. E de momento fez uma pausa. Não, não era possível o que os seus olhos viam. Lá no meio do povo, estava a Títa, sem decote, vestida como uma moça de família, um véu banquinho cobrindo-lhe a cabeça e os ombros. Até duvidou que não fosse uma santa. Com esforço, recomeçou o sermão, não sem despertar certa atenção. Alguns pensaram que lhe havia faltado a imaginação e o dom da palavra. Títa olhava para o altar embevecida. Mas nem era o altar. Era o padre Celestino que não tirava os olhos dela e havia perdido o controle. Encerrou o sermão. Virou-se para o altar e pronunciou as últimas palavras. Tinha pressa. Quando procurou Títa, não a viu mais. Botou-se para casa, sem saber onde pisava, só farejando os arredores. Deus que o perdoasse, mas não era ele, era a força dos instintos. Entrou em casa desalentado.
Tomou café, que não havia açúcar que adoçasse. Acendeu o seu costumeiro charuto Florinha e saiu para a varanda, como quem fazia uma sondagem pelo infinito. E de repente, Títa lhe aparece com o rosto meio encoberto. Preferia não ser vista em conversa com o vigário. E depois dos cumprimentos, as perguntas:
- Por que voltastes Títa. E onde estás?
- A carta disse tudo e estou na mesma casinha velha onde me viu a primeira vez.
- Faz a volta e entra pelo quintal. Comer alguma coisa, conversar mais um instante. Sabes, já ando com medo das mulheres. Por causa delas o sapateiro viajou.
- Não serei mais quem eu era. Vou tentar um trabalho limpo. Minhas portas só estarão abertas para uma pessoa, se essa pessoa quiser ainda aparecer. Podia até me empregar aqui, mas o povo iria falar...
- Falar o que e de quem. Em minha casa, quem manda sou eu. Acabou-se o encolhimento. Tenho que ter minha vida como Deus manda. Ninguém pode mesmo com a língua do povo, ora esta. Ficarás aí se quiseres. E porque nunca dissestes que a Linda era tua irmã?
- Nada não, ela era uma moça e poderia se envergonhar se soubesse que era minha mana. Foi bom assim. Está casada. Mas teve muita mágoa porque o senhor nunca quis saber dela.
- Respeito pela casa paroquial. Respeito bobo Títa. Gostava muito dela. Tinha medo, também. Poderia aparecer novidade, entendes.
- É foi bom assim. Eu iria ter ciúmes.
- Agora, cuida em ir arrumar o meu quarto. Vou te mostrar onde é e como é que o quero.
E daí para frente, o que acontecia é que a cama estava sempre desarrumada...
- Títa voltou. É a nova arrumadeira do padre Celestino.
- Estas brincando, comadre.
- Ora brincando... E o padre Celestino brinca em serviço. Dizem que foi ele quem matou o sapateiro por ciumada.
- Lava tua boca, linguaruda. Não se diz tudo quanto se pensa ou se sabe. A Títa também é gente e precisa viver. E viver não é somente, comer, andar, dormir. O mais importante não e necessário dizer... E depois, qual seria a moça que havia de querer ficar sozinha em casa de padre. Só se estivesse mesmo procurando sarna para se coçar.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





terça-feira, 7 de julho de 2015

LACIR

LACIR*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)  

Jurema, cidadezinha de poucas ruas, perdida lá nos confins do sertão da Paraíba, não perdoava amores que não fossem honestos e para casar na igreja. Casamento apenas no juiz era amigação, indecência, imoralidade, falta de vergonha. E o padre Santiago fazia questão de advertir seus fiéis contra qualquer liberalidade.        
Os namoros eram rigorosamente fiscalizados e o simples fato de uma moça mudar de namorado já era pecaminoso.
- Está vendo ai, a Mariana. Acabou o namoro e está se pegando com outro. Podem esperar pelo desmantelo. É uma doidinha. Como pode. O vigário se cansa de pregar, mas é a mesma coisa que falar no deserto.
- É isto mesmo, minha comadre. Os tempos estão mudados. Falta de respeito.
Lacir ouvia todos os dias aquela catilinária, inclusive, aos domingos, o sermão do padre Santiago, um puritano por conveniência profissional. Tinha que acompanhar as tendências do povo que dava água, pão, boas conversas e casa para morar.
Moça estudada na capital, não se acomodava com aquele puritanismo exagerado. Não era que pretendesse subverter a ordem normal da cidade, mas havia zelo demais e o convencionalismo asfixiava a população mais nova.
Algumas dúzias de velhuscas azinhavradas e carolas andavam de olho na rua e nas camarinhas e de nariz aceso sentindo cheiro de pecado por toda parte. Jurema deveria ser canonizada, cidade Santa. Uma moça que olhasse duas vezes para um rapaz já estaria se comprometendo e caminhava para a indecência.
E o padre Santiago era capaz até de citar os nomes lá de cima da escadaria do altar. Lacir estudava um meio de quebrar o rigorismo e libertar a cidade do bafio de santidade, antes que fosse tarde demais. Teria que juntar a mocidade e atirá-la contra o regimento do puritanismo fanático.
Deveria ser sigilo total no início, para evitar o amortecimento do impacto. Percebia-se que havia movimentos desusados em Jurema, mas desconheciam-se as causas e os objetivos.
As velhotas do comando tentavam descobrir qualquer coisa, mas nem ao menos sabiam de onde vinha o cheiro do xarope que estava sendo preparado. Rapazes e moças afiavam os cutelos para cortar até as raízes das velhinhas sociais de Jurema.
Acabar de uma vez com o puritanismo exagerado que pretendia manter a cidade na mais pura castidade. Enquanto Lacir prepara as moças e o ambiente para o desfecho do plano, Hortêncio cuidava da rapaziada e de um golpe que sacudiria Jurema como um terremoto.
A quarta-feira estava um dia esplêndido de sol e claridade. Às duas horas da tarde não se via um jovem pelas ruas. Nem moças, nem rapazes. As velhotas reunidas faziam comentários, os mais variados, com hipóteses, que, afinal, andavam bem longe da realidade. A líder da vigilância ia da sala de reunião á porta da rua, de nariz no ar a ver se sentia o cheiro de alguma coisa. E foi numa dessas idas e vindas que a bomba estourou. Apontava na entrada da rua principal uma passeata trepidante.
O ruído enchia o espaço. Não ficou viva alma dentro das casas. Moças, rapazes, numa algazarra infernal e de braços dados, na maior intimidade, avançavam rua adentro, rindo, cantando gritando como se estivessem fora de si.
As velhotas correram á casa do vigário, alarmadas.
- Corre seu padre, vá ver Jurema mergulhada na devassidão. Foi-se pelos ares todo o nosso trabalho. Do senhor também.
- Meu, meu, como?
-Tudo quanto o senhor pregava foi inútil. Vá, vá a rua ver a bandalheira, o deboche e tudo que há de pecaminoso. Parece até um bacanal. E o pior, Padre Santiago, é que o povo está assistindo e aplaudindo. Uma reviravolta na vida de Jurema.
- Acuda Padre, senão perderemos todo o nosso latim.
- Chame as autoridades, o delegado, para dissolver essa passeata imoral.
- Só se vendo. Marcham agarrados, abraçados e a canalha da rua engrossando a patifaria. Já fecharam até as casas comerciais para assistir o desfile cretino.
- Ora, dona Querumbina, quem pode com o povo, com a juventude. Deixem à turma dar expansão as suas alegrias.
- Mas estão mudando tudo, subvertendo a ordem religiosa. Só o senhor poderá dar jeito de conservar os princípios cristãos e agradar a Deus e as onze mil virgens.
- Não sei como não caiu pedaço de céu. E era bom que desabasse para esmagar a cambada que está zombando da moral religiosa e social.        
- Estarei com o povo e a juventude. Jurema estava carecendo de uma transformação radical. Isto aqui estava cheirando a mofo. A cidade parada, tudo proibido e somente reza e fofoca. O melhor é que caiam também no frevo, misturem-se com a mocidade para sacudirem a poeira e a teia de aranha. Olhem ali que coisa bela, a mocidade vibrando de braços dados. Agora sim, Jurema começa a viver. E sabem de uma coisa curta e certa, não me venham mais aqui com chateação.
Neste exato momento entra de casa adentro uma das fofoqueiras que havia faltado. As ventas acesas, as carótidas puladas, os olhos esbugalhados.
- Acudam! Que a cidade está perdida. Não se salvará mais e todo o nosso trabalho se foi na enxurrada.
- As mulheres da vida em Jurema! Seu Floriano acaba de me dizer. E foi obra dos rapazes. Quatro mulheres estão instaladas lá na ponta da rua. Quatro meninas que não se sabe de onde vieram, diz seu Floriano que novas e bonitas. Uma perdição. E estão agora mesmo lá atrás da passeata.
- Deus nos acuda e salve. Mande abrir a igreja seu vigário e vamos orar para ver se salva alguma coisa.
- Corra Padre!
- Correr para onde. Sumam-se daqui. Já estou cansado de viver no monturo que vocês criaram. Que se divirta a mocidade e a cidade se renove. Mulheres da vida, hein! Era disto que jurema estava se ressentindo. Vou é rezar uma missa solene de ação de graças. Entenderam! E já lhe disse, junte-se à turma renovadora se querem sobreviver. Uma cidade sem meninas livres é um perigo. A falta de relacionamento amoroso é contra a moral social. Vão ver sinhas peruas, como jurema vai crescer e florescer. Vocês não permitiam nem o namoro dos rapazes e moças.
- E não é pecado, seu vigário?
- Pecado coisa nenhuma. Quanto mais namoro, mais casamento, mais menino para batizar e crismar. A cidade está cheia de preconceitos bolorentos criados por vosmecês, pensando talvez que com isto, ganhariam o reino do céu. Pois perderam o tempo. Vão ver como a cidade vai ser visitada e como se tornará alegre. Quantas mulheres?
- Quatro! Está vossa reverendíssima achando pouco.
- Pouquíssimo, ora esta. A atração de uma cidade é o mulherio alegre. Quatro mulherzinhas não chegam para provar. E para fim de papo, vão a igreja ouvir meu sermão de domingo. Falarei sobre Jurema de ontem e de hoje. E é bom que abram bem as ouças.
- Vamos embora, e não poremos mais os pés nem no adro da igreja. Perdido já está, perdido fique.
E saíram resmungando e o assunto era o descaramento do padre Santiago. Era por isto que sempre mantinha em casa, arrumadeiras sapecas. Aquele não entra nas portas do céu nem feito rapé num corrimboque.
- Cala tua boca, comadre. Estás falando assim porque não tens mais farinha ou estás com inveja. A pessoa frustrada fica como um doente mental que vê tudo pelo avesso. Jurema foi até hoje uma cidade fechada para o progresso e só por culpa dessa turma de velhas que só esperam do mundo as tabuas do caixão e um buraco no cemitério. Além disso, empenhadas a fazer dos jovens um poço de água estagnada que não serve nem para reprodução de muriçocas. E o Padre Santiago deixou se envolver pela fofoca e dava asas à falsa santidade de todas vocês. Vocês sempre foram uns demônios.
- O que! Verás daqui pra frente em que vai se tornar Jurema. Vai apodrecer na libidinagem, na safadeza, na corrupção. Isto aqui que é o santuário da Paraíba, passará a ser o inferno. A cidade vai se encher de prostitutas e as famílias não terão mais sossego. Vai apodrecer com essas rameiras e os casados sem-vergonhas vão chifrar as mulheres. O diabo está solto em Jurema.
- O padre não é o que se pensava. Um fingido. Estás vendo. Saiu dizendo que iria observar a passeata, mas na certa está é metido no meio, farejando alguma coisa. É bem certo o ditado: quem não te conhecer que te compre.
- Quem era Jurema, e, o que vai ser. Um antro de perdição. Creio em Deus Padre todo poderoso...
- Que nada. Agora é que a cidade vai viver. Aberta e arejada. Já viram por ventura as quatro moças que chegaram para diverti a turma. Pois olha, são quatro coisinhas de causar inveja. Três moreninhas e uma aloirada.
- Francamente, se eu fosse um bicho macho já teria me enfiado lá.        
- Tesconjuro, velhota degenerada.
- Aqui só havia simulação e mentira.
O desfile vinha de volta, cada vez mais estridente e mais fogos. Era como se o açude secasse de repente, quando todo mundo estava morrendo afogado.
Padre Santiago, não aparecia e ai estava à coincidência. Das quatro mariposas passaram apenas duas morenas e a aloirada. A outra moreninha havia sumido. Onde andariam os dois?
No dia seguinte, jurema era outra cidade. As velhotas desapareceram do mapa. E não se falava noutra coisa senão nas quatro meninas e em namoro aberto. Padre Santiago fez um Sermão memorável, enaltecendo a ação da juventude sua visão em favor do bem estar de Jurema, dentro de uma nova filosofia de vida. Jurema não era mais do que um curral, onde se passava uma terrível sede de amor e procurava fazer uma escada para o céu, desprezando as leis da natureza.
Deus não queria ninguém no seu reino, conduzido pelas mãos e a vontade dos outros. Queria que se elegessem com liberdade e por si próprios. Venha à igreja quem queira vir. Vá para o céu quem entender que é melhor, contando que não seja pressionado, como se fazia com a boa gente de jurema.
Um grupo de puritanas, já fora de uso, querendo impor santidade, privando a juventude e a todos dos prazeres com as coisas agradáveis da vida. Jurema é hoje uma cidade renovada, liberta e aprazível.
Aqui se esperava o bem, vivendo no inferno das restrições e da violência contra os prazeres do amor, a coisa mais bela que Deus criou no seu momento de maior inspiração. Quem não quiser viver num mundo cor-de-rosa, que se tranque a quatro chaves dentro de sua burrice e incapacidade de amar.
Quando Nosso Senhor fez as mulheres belas e graciosas, não foi à toa. Criou Eva, uma perfeição de mulher e entregou-a a Adão, despertando-lhe a cobiça, quando lhe disse: não me toque na maçã. E como a maçã era fruta mais apetitosa do Éden, Adão preferiu arriscar-se e trincou-lhe o dente. Mas, quem já passou do tempo, amola-se, irrita-se e combatem-se aqueles que começaram a viver os seus sonhos de felicidade.
Tudo andou em Jurema. As velhas fofoqueiras e moralistas tiveram que aderir ao movimento renovador e uma delas montou uma pensão de mulheres, começando das quatro pioneiras nas varandas do amor livre.
- Mas Gargolina, assim também é demais.
- Ora, Januária, este é o melhor e mais fácil negócio de Jurema. Já te esquecestes de quando éramos novas! Casa cheia, e se enchendo mais. Qual é o ramo em que se ganha dinheiro deitada, enganando os bestas. As meninas bebem e fuma de graça, o dinheiro corre solto e estou vivendo folgada. Toda a questão é ter habilidade de arranjar meninas espertas e atraentes. Então, os casados abrem à bolsa.
- Quanto mais maduro o freguês, mais liberal. E por isto as meninas os preferem. E para solteirões e noutros casos especiais, trabalha-se a domicilio...
- E é pena que já não sirvo mais para dar de beber a quem tem sede. Imaginar somente é muito pouco...
- Por culpa de imbecis, perdi meu tempo e pelo que ouvi do vigário, o céu é aqui mesmo. O outro é conversa fiada...
- Se o céu fosse tão bom assim, cristo teria nascido lá...


Em, 11/09/1986

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.